O cheiro de napalm pela manhã

O cheiro de napalm pela manhã – Folha de SP

O eleitor vota no fanfarrão só para tirar um sarro da cara dos adultos – João Pereira Coutinho

Em 2016, pouco antes da eleição de Donald Trump, dizia-me um colega universitário: “Detesto Trump. Mas, se eu fosse americano, teria votado nele”.

Caí da cadeira. Ou quase. Ele explicou melhor: “Votaria nele só pelo prazer de criar confusão”. Registrei.

A partir daquele dia, nunca mais levei a sério as explicações clássicas para o chamado “populismo”. Sim, a crise econômica tem a sua importância. O desemprego também. E o medo do crime e da imigração irrestrita ajudam a festa.

Mas existe algo de infantil, de inconscientemente infantil, no eleitorado que gosta de votar no fanfarrão só para tirar um sarro da cara dos adultos.

É o momento “Apocalypse Now”, em homenagem ao coronel do filme que amava o cheiro de napalm pela manhã. Há muitos eleitores que votam como votam só para sentir esse cheiro de vitória.

Um simples palpite meu? Longe disso. Li recentemente um estudo publicado no Journal of Social and Political Psychology (ver pormenores técnicos no fim) no qual os pesquisadores avaliaram o impacto do “politicamente correto” na vitória de Trump. Por “politicamente correto”, entenda-se: a imposição de restrições comunicacionais para não ofender grupos, minorias etc.

Os autores concluem que o “politicamente correto” tem um impacto positivo no curto prazo: a “moralização” do discurso faz com que a maioria se adapte às expectativas da sociedade. Exemplo: “Trump? Que horror!” E depois vem a longa lista de vícios do homem (racismo, homofobia, misoginia, mau gosto capilar etc.).

O problema é que o “politicamente correto” tem resultados desastrosos no longo prazo. Isso se deve a uma reação emocional dos eleitores: cansados das restrições impostas pelos sacerdotes do “politicamente correto”, os indivíduos reclamam a sua liberdade e votam no candidato que nunca se submeteu aos ditames da polidez. Mesmo que esse voto seja contrário aos melhores interesses da democracia.

Por outras palavras: Donald Trump não foi eleito apesar dos seus defeitos. Ele foi eleito por causa deles. Quando o presidente americano afirmava, com típica soberba, que podia matar qualquer pessoa na 5ª Avenida e ser eleito na mesma, ele não exagerava.

Aliás, podemos dizer mais: quanto maiores os defeitos, maior o apoio. Isso explica o motivo por que Trump, depois de eleito, não adotou uma postura mais “presidencial”.

Essa metamorfose seria o suicídio de uma carreira triunfal. Seria tão absurdo como Coutinho (o jogador de futebol, não eu) dar um tiro no próprio pé.

Mas não é apenas o “politicamente correto” que leva muitos eleitores a experimentar o cheiro de napalm pela manhã. Desconfio que a “sinalização da virtude” também tem um papel relevante.

A primeira vez que encontrei essa expressão foi num artigo de James Bartholomew para a revista The Spectator, corria 2015. Argumentava o autor que “ser virtuoso” é diferente de mostrar aos outros que somos virtuosos.

Pessoas virtuosas nunca publicitam as suas qualidades. E a virtude, nelas, exerce-se por meio de gestos anônimos e até sacrificiais (cuidar de um familiar doente; alienar uma carreira de sucesso para ajudar os mais pobres etc.).

A “sinalização da virtude” é uma corrupção da verdadeira virtude. É mera exibição de “bons sentimentos” para ganhar aplausos (ou likes).

Para usar a linguagem da economia, a “sinalização da virtude” procura transformar a virtude em “bem posicional” —algo que nos distingue dos demais e que nos traz vantagens (simbólicas, sociais, econômicas etc.).

O problema, argumentava Bartholomew, é que os “bens posicionais” despertam a concorrência e levam os outros a tentar suplantar o que era exclusivo em nós.

Exemplo: aquela estrela milionária de Hollywood não está propriamente aterrorizada com Trump. Mas ela sente necessidade de sinalizar o seu horror pelo presidente, em termos cada vez mais elaborados, para se promover como defensora do “bem”.

Esse moralismo militante, onipresente e sufocante cria a atmosfera perfeita para que o napalm seja jogado na cara do establishment.

Dizem os eruditos que o século 21 será o século dos populismos. Talvez tenham razão. Mas, para explicar o fenômeno, não bastam as teorias habituais.

É preciso mergulhar na psicologia das massas para encontrar um velho ditado: na política, como na vida, há momentos em que é preferível perder um amigo a perder a piada.

P.S.: O estudo citado intitula-se “Donald Trump as a Cultural Revolt Against Perceived Communication Restriction: Priming Political Correctness Norms Causes More Trump Support”, de autoria de Lucian Gideon Conway III, Meredith A. Repkea e Shannon C. Houck (Journal of Social and Political Psychology, 2017, Vol. 5 (1), págs. 244-259)

João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

O futebol como ele é

Texto de João Pereira Coutinho

O futebol como ele é

Toda a gente conhece a piada: o beisebol só é suportável porque existe a cerveja.

Concordo. Já tive a experiência. Pena que os chatos, que dominam o mundo, em geral, e o esporte, em particular, queiram fazer o mesmo com o futebol.

Um exemplo: Simon Jenkins, uma das vozes lúcidas do The Guardian, sugere que os pênaltis devem ser abandonados. O futebol é um jogo de equipe?

Então é injusto fazer repousar a decisão de um jogo na sorte (ou no azar) de um indivíduo.

Jenkings não pretende regressar ao mundo pré-1978 quando os empates eram decididos por uma moeda lançada ao ar. É possível olhar para as estatísticas (a equipe que chutou mais no gol; a equipe que teve mais posse de bola; a equipa que cometeu menos faltas etc.) e decidir o vencedor. Embora a opção do colunista seja outra: alargar o tamanho do gol, por exemplo; ou, então, remover do campo o goleiro no tempo da prorrogação.

Sou contra. Frontalmente. Eu gosto dos pênaltis. Eu gosto da injustiça do momento. Eu gosto da dimensão trágica que desce ao gramado. Eu gosto da angústia dos jogadores, dos falhanços épicos, do choro e da ruína.

Nesses momentos, o futebol consegue atingir o patamar da grande arte. E a grande arte é sempre uma metáfora da vida —da beleza, do desastre, da imperfeição que a define.

E quem fala em tragédia, fala em comédia. Nunca entendi a hostilidade a Neymar. O jogador gosta de fingir? Gosta de simular dores homéricas quando alguém sopra para cima dele?Pois gosta —e ainda bem: todos os gênios têm sempre algo de farsante. Só cabeças quadradas não entendem. Uma delas, aliás, publicou um artigo ridículo no Wall Street Journal sobre as “estatísticas” de Neymar.

Na Copa, e antes do jogo fatídico com a Bélgica, o craque teve 43 quedas; esteve no chão 8 minutos e 15 segundos; o maior período de abstinência (tradução: sem fingimento) durou 34 minutos e 16 segundos (contra o México).

E parece que Neymar caiu mais quando o Brasil estava empatado (média de 9 segundos no gramado) embora tenha demorado mais tempo a recuperar quando o Brasil estava vencendo (média de 15 segundos).

Terminei o artigo com uma pergunta: que tipo de mente perturbada compila esses números?

Eu sei que tipo de mente: a mesma que recebe de braços abertos o lamentável juiz de vídeo. A esse respeito, um pouco de nostalgia: comecei a gostar de futebol por causa de um jogador português que, normalmente, não figura nos grandes livros de história. Não é um Eusébio, um Figo, um Cristiano Ronaldo. Para mim, é maior que esses todos.

O nome é Paulo Futre e lembro-me de o ver jogar, vestindo a camiseta da minha equipa (o FC Porto), com o meu saudoso pai ao lado. Teria uns 10 anos.

Recordo a velocidade. Os dribles. Os gols. Mas recordo, sobretudo e acima de tudo, o seu talento para cair na grande área. “Cair” não é o verbo; é “morrer” mesmo. Quando o defesa da equipe adversária se aproximava dele, Futre conseguia contorcer o corpo de uma forma tão agonizante que o público gritava: “Mataram-no!”

Havia choro. Havia luto. Mas, subitamente, como nos filmes de Carl Theodor Dreyer, Futre erguia-se e regressava ao mundo dos vivos. Era um milagre —e as bancadas desabavam em hossanas.

Houvesse juiz de vídeo em 1986 e esses momentos de pura cinefilia seriam impensáveis. E Futre, o primeiro Lázaro que conheci, não teria espalhado a sua arte pela Europa, onde o vi morrer mil vezes. E mil vezes ressuscitar.

Se essa Copa ensina alguma coisa é que a salvação do futebol não passa por “rigor”, “justiça” ou “verdade”. Precisa de caos, injustiça e muita falsidade. Como proceder? Três medidas urgentes.

Primeira: abandonar o juiz de vídeo. Na vida, não podemos recuar no tempo para rever e corrigir os piores momentos. Vivemos com eles porque isso é um imperativo de caráter. O mesmo vale para o futebol.

Segunda: no empate, manter os pênaltis. Ou, preferência minha, promover confrontos individuais: o jogador, radicalmente só, avança com a bola a partir do meio do campo. À sua frente, um adversário, igualmente só, da outra equipe. Manter o goleiro. No fundo, uma reatualização dos duelos medievais.

Terceira: não permitir que os jogos sejam narrados por “eruditos”. Você entende: jornalistas sem paixão que confundem futebol com física quântica. Em caso de dúvida, escutar no YouTube o jornalista da TV argentina que festejou o gol de Maradona frente a Inglaterra na Copa do México em 1986. Falo do segundo gol, quando Maradona driblou uma equipa inteira (goleiro incluso). Ali está a Maria Callas do futebol como ele é.