Muito justo

Este levantamento do Tesouro, repercutido como manchete principal no Estadão, está eivado de má fé. Está certo que nosso judiciário é, de longe, o mais caro do mundo. Mas para uma análise isenta, é preciso olhar o outro lado da moeda: o nosso sistema é também, de longe, o mais eficiente do mundo.

Por exemplo, crimes, principalmente os de colarinho branco, são julgados muito rapidamente. Pá, pum, e o criminoso já está no xilindró.

Contamos com todo um sistema judiciário apartado somente para julgar causas trabalhistas. Assim, empresas e trabalhadores têm rapidamente suas pendências julgadas e resolvidas, diminuindo em muito o custo de empreender no Brasil.

A nossa democracia é forte e pujante porque temos tribunais dedicados somente ao monitoramento das eleições. Que outro país do mundo conta com essa garantia democrática?

Nosso juízes trabalham de sol a sol, com uma carga de trabalho tão estafante que precisam de dois meses de férias por ano.

Por fim, concordo com o nosso egrégio presidente do STF, quando diz que a insegurança jurídica no Brasil é uma lenda. Claro que toda essa segurança jurídica de que usufruímos, e que é exemplo para o mundo, tem um custo. Mas vale muito a pena.

Dormindo com o amigo

Fico cá imaginando como vai se sentir uma das partes de um julgamento, sabendo que o juiz de sua causa é casado com o advogado da outra parte. Não deve ser uma sensação muito confortável.

O argumento para o liberou geral é risível: seria “impossível”:fazer esse controle. Como se fosse difícil para o juiz saber onde seu cônjuge ou seus filhos trabalham. E, mesmo que fosse realmente difícil, a lógica não para em pé: se a norma é difícil de ser cumprida, não é acabando com ela que se resolve o problema. O representante da Transparência Internacional lembra que, hoje, é relativamente tranquilo fazer o tracking de relações entre CNPJs. Ou seja, há formas de lidar com a questão sem que o bom princípio seja jogado no lixo.

O STF inaugurou o país em que um juiz é considerado parcial com base em provas obtidos de forma criminosa, mas é considerado imparcial mesmo que o advogado de uma das partes durma em sua mesma cama.

Convescote em Lisboa

Reportagem do Estadão nos brinda com mais um caso de “eficiência” do sistema judiciário brasileiro. Trata-se do julgamento de desembargadores do ES, acusados de venderem sentenças. 11 anos depois, o processo está longe do fim.

Mas o que me chamou a atenção não foi nem a lentidão, já em si um escárnio. O detalhe sórdido é o porque o julgamento foi, mais uma vez, adiado.

A subprocuradora da República, escalada pela PGR para representar a acusação, não estava presente. E por que não estava presente? Porque viajou para Portugal. E é aí que o detalhe faz toda a diferença.

A subprocuradora foi a um evento organizado por um instituto de propriedade do ministro do STF Gilmar Mendes, com sede em Lisboa. Nem vou entrar aqui no labirinto dos motivos que levam um ministro do STF a ter um negócio em Lisboa. Meu ponto é outro.

Neste evento, está presente a nata da política brasileira, como Arthur Lira e Gilberto Kassab, além de magistrados dos mais diversos quilates, incluindo a subprocuradora da República. Todos reunidos em Portugal, com passagens e estadia pagas pelo erário brasileiro. Então, vou repetir para quem não entendeu: o imposto que você recolhe está servindo para pagar as custas dos participantes brasileiros de um evento em Portugal para discutir os “problemas brasileiros”. Enquanto isso, um processo contra desembargadores está parado há 11 anos nos escaninhos da República.

Bom dia pra você que, como eu, acordou em uma segunda-feira para ir trabalhar e gerar a renda que será gasta em convescotes em Lisboa.

O escândalo das nulidades

O Estadão publica hoje editorial em que se dedica a analisar porque o STJ anula tantas operações policiais, recebendo a carinhosa alcunha de “cemitério de operações”. Segundo o editorialista, o problema não estaria no STJ, mas nas forças policiais, promotores e juízes, que insistiriam em produzir provas ineptas para os processos.

Dois dos três exemplos apresentados envolvem o recebimento de “denúncia anônima” como base para quebras de sigilo e produção de provas e isso não seria lícito.

Imagine que você descobre que um bando mantém uma pessoa em cárcere privado na casa vizinha da sua. Segundo o STJ você não pode denunciar anonimamente o bando. Não. Você precisa arriscar a sua vida com gente perigosa, que na primeira oportunidade vai querer se vingar. Se a polícia invade a casa com mandato judicial, aquele bando não pode ser condenado, porque, afinal, a denúncia foi anônima. Faz sentido?

Eu, por óbvio, não temo denúncia anônima. Se alguém fizer uma denúncia anônima contra mim e meus sigilos forem quebrados, a justiça não encontrará nada, pois sempre atuo dentro da lei. Somente bandidos se aproveitam desse tipo de chicana.

Anular todo um processo porque a origem foi uma denúncia anônima, ignorando as provas produzidas, é o paraíso daqueles que almejam uma justiça pura, imaculada. E o paraíso da bandidagem também.

A sobrevivência dos mais gordos

Bruno Carazza normalmente escreve excelentes artigos, mas neste ele se superou.

O tema: recente liminar concedida pela ministra Rosa Weber, obrigando a União a a alizar um empréstimo ao estado do Espírito Santo, no valor de US$400 milhões, que havia sido travado porque o Estado não havia cumprido dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal. Detalhe: foi o poder judiciário do Estado que gastou além do limite. A mensagem é: o judiciário pode gastar à vontade que o STF garante.

O artigo aborda como as entidades de classe do judiciário usam de seu acesso privilegiado ao centro de decisões para fazer valer a sua agenda particular. E termina de maneira magistral, evocando uma escultura em que uma mulher gorda está sobre os ombros de um homem esquálido. Ela tem pena, gostaria de ajudá-lo de alguma maneira, menos saindo de cima de seus ombros. O assunto da coluna é o poder judiciário, mas poderia ser sobre qualquer privilégio votado e aprovado às custas de quem não tem lobby em Brasília.

Os desdentados e descamisados do país têm muitos defensores que gostariam de ajudá-los. Desde que isso não signifique abrir mão de seus próprios privilégios.

O retrato do judiciário brasileiro

Nunca a citação “uma imagem vale mais do que mil palavras” fez tanto sentido.

A imagem abaixo descreve o sistema judicial brasileiro melhor do que mil palavras.

Por cima, visível ao grande público, uma justiça vetusta, respeitável, vestida com a capa da virtude e da imparcialidade.

Por baixo, invisível ao grande público, uma justiça nua, despudorada, pronta a atender aos interesses mais inconfessáveis.

Que fique claro que esta não é uma crítica ao magistrado em particular (que tem direito à intimidade como qualquer cidadão) ou aos magistrados em geral. Estamos falando do sistema de leis e interpretações que mantém a formalidade visível, enquanto se oferece nua, longe dos olhos dos cidadãos, a quem pode pagar mais.

Um conto de duas justiças

– No dia 20/08/2000, o então diretor de redação do Estadão, Antônio Marcos Pimenta Neves, assassina a ex-namorada, a também jornalista Sandra Gomide, com dois tiros pelas costas. Pimenta Neves é preso preventivamente por 7 meses, mas consegue liberdade provisória através de Habeas Corpus enquanto não é julgado.

– Em maio de 2006, Pimenta Neves é condenado em 1ª instância a 19 anos e 2 meses de prisão.- Em dezembro de 2006, o Tribunal de Justiça de São Paulo reduz a pena para 18 anos de prisão. Pimenta Neves recorre a um Habeas Corpus para continuar em liberdade enquanto todos os recursos não são julgados.

– Em setembro de 2008, o STJ confirma a sentença, mas reduz a pena para 15 anos de prisão.

– Em 24/05/2011, o STF confirma a pena das instâncias inferiores. Pimenta Neves começa a cumprir pena.- Em fevereiro de 2016, Pimenta Neves progride para o regime aberto por bom comportamento.

– Hoje o ex-jornalista tem 83 anos de idade, e cumpre pena em sua casa.


– Em 10/12/2008, os filhos de Bernard Madoff, um corretor bem-sucedido e diretor da NASDAQ, denunciam o pai às autoridades financeiras a respeito do que veio a ser a maior fraude do mercado financeiro norte-americano, um esquema que tungou bilhões de dólares de entidades de filantropia.

– Em 11/12/2008 Madoff é preso, mas paga fiança de US$ 10 milhões e fica em prisão domiciliar.- Em 12/03/2009, o juiz de 1ª instância revoga a fiança, e Madoff é preso em uma penitenciária regional. Os recursos para aguardar a sentença em liberdade não são aceitos.

– Em 29/06/2009, Madoff é sentenciado a 150 anos de prisão, a serem cumpridos em Penitenciária Federal. A sentença pode ser diminuída para 130 anos de prisão se houver bom comportamento.

– Hoje o ex-corretor tem 82 anos de idade, e cumpre pena em uma prisão federal em North Carolina, a cerca de 800 km de sua casa.


Vamos a um breve resumo dos dois casos:

Número de dias entre a confissão do crime e a sentença final:

– Pimenta Neves: 2.929 dias

– Madoff: 201 dias

Sentença:

– Pimenta Neves: 15 anos de prisão

– Madoff: 150 anos de prisão

Situação atual:

– Pimenta Neves: cumprindo pena em casa

– Madoff: cumprindo pena em penitenciária federal

Se você acha que a libertação de um traficante internacional de drogas com duas condenações em 2ª instância é apenas um acidente de percurso, pense novamente.

A justiça brasileira é uma piada de mau gosto. Mas, pelo menos, o Estado Democrático de Direito está preservado no Brasil.

Sistema falido

Não sou jurista. Sou apenas um cidadão brasileiro.

Li muita coisa nos últimos dias, e aprendi que um juiz da corte máxima do país fez uma leitura literal de um parágrafo introduzido pelo Congresso que não constava do projeto inicial do pacote anti-crime, e que foi aprovado sem veto pelo presidente e cuja exigência não foi cumprida pelo juiz de 1a instância responsável pela ordem de prisão preventiva.

Não sei de quem é a culpa nesta longa cadeia de responsabilidades. Só sei que, quando um chefe internacional do tráfico de drogas, com duas condenações em 2a instância, é colocado em liberdade, isso significa que nosso sistema judicial (leis e operadores) está falido.

Alguns são mais iguais do que os outros

Dias Toffoli pede, em ofício, reunião com o ministério da Economia. Pauta: furar o teto de gastos.

2020 será o primeiro ano em que o Executivo não compensará o Judiciário por gastos acima do permitido pela Lei do Teto de Gastos. Mas sabe como é: no Brasil, uma lei nunca foi barreira para fazer o que se quer fazer. Se dependesse das leis por aqui aprovadas, seríamos uma Suíça. Faltam só os suíços para cumprirem as leis.

O Judiciário é aquele poder em que os seus ilustres representantes gozam de férias de 60 dias, constroem sedes nababescas e têm o poder de transformar penduricalhos em salário. E, quando são pegos em “mal-feitos”, recebem como punição aposentadoria com salário integral. Isso tudo, para entregar uma justiça que demora décadas para resolver contenciosos, para a alegria dos bandidos que podem pagar bons advogados.

Sim, o judiciário não consegue viver com o Teto de Gastos. Afinal, na já antológica frase do procurador mineiro, como vão viver com esse miserê? O interessante é que a reação não veio da sociedade, ou mesmo de outros poderes, reconhecendo a necessidade de o Judiciário ter mais recursos. A reação veio do próprio Judiciário, que se auto-declara uma instituição tão importante que estaria dispensada de fazer sacrifícios. Não consigo pensar em definição melhor para a palavra corporativismo.

No ápice do desplante, Dias Toffoli exige “equilíbrio institucional”, pois os recursos do leilão do pré-sal teriam sido direcionados apenas para o Executivo. “Queremos mamar nessa boquinha também”, diz o presidente do Sindicato, quer dizer, do Supremo.

E com que autoridade o Executivo vai contrapor essa investida se, na primeira brecha, faz uma capitalização vergonhosa por fora da regra do teto para construir seus brinquedinhos de guerra?

A exemplo da Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei do Teto de Gastos vai acabar se tornando inócua, de tantas brechas e atalhos que vão encontrar. E isso, obviamente, não tem como acabar bem.