Uma boa desculpa para não fazer nada

O Estadão trouxe ontem uma entrevista com uma espécie de “inspetor de direitos humanos” da União Europeia. Segundo ele, as transgressões aos direitos humanos no Brasil serão relatados e poderão dificultar o acordo comercial entre a UE e o Mercosul.

São muitas as suas preocupações: a violência em geral e a letalidade policial em particular, a violência contra indígenas, povos ribeirinhos e os representantes desses e, como lembrou o arguto repórter, a violência contra os transexuais. Enfim, o cardápio completo.

Este ultimo ponto me chamou especialmente a atenção, porque, por trás de qualquer agenda sempre tem uma estatística solta que não faz sentido. Esse é o caso. Com 50 mil assassinatos por ano, o Brasil aparecerá com o maior número de assassinatos no mundo em qualquer corte social: brancos, pretos, amarelos, heterossexuais, transexuais, os que dormem de meia, etc. Então, essa estatística em si não quer dizer absolutamente nada. Além disso, seria necessário levantar se esses assassinatos estão ligadas à condição transexual ou foram, por exemplo, fruto de um assalto. Mas aí já é pedir demais.

Mas a coisa piora. Segundo o “inspetor”, o “discurso público” tem contribuído para tornar essas pessoas alvo da violência. Nem precisa dar nomes aos bois para sacar que ele se refere ao governo Bolsonaro. Mas aí, você vai ver os números, sempre eles, os chatos de plantão. De acordo com o Atlas da Violência, do IPEA, o número de denuncias de violência e lesão corporal contra membros da comunidade LGBT em 2019, o primeiro ano do governo homofóbico, foi o menor desde 2011. Bem, algo não bate.

De qualquer forma, este é apenas um detalhe que abrilhanta uma entrevista que tem como objetivo mostrar como a agenda anti-direitos humanos deste governo estaria impedindo um acordo UE-Mercosul. Existem duas mentiras à mostra e uma verdade escondida na matéria.

A primeira mentira é a que se refere a este governo especificamente. As negociações se arrastam há 20 anos, e o governo Bolsonaro vai completar 3 anos.

Sem contar que a violência não foi invenção deste governo. Aliás, o número de assassinatos diminuiu em 2019 e 2020 em relação aos números da década passada. Não foi necessariamente mérito deste governo, claro, foi o resultado de um trabalho de anos, mas os números são esses.

A segunda mentira à mostra refere-se à violência como um entrave ao acordo. Bem, o México conta com um acordo de livre comércio com a UE desde a década de 90 e, vamos combinar, o México não é exatamente um exemplo de país não-violento. Chiapas que o diga. Portanto, essa é uma falsa questão, e que nos leva à verdade oculta.

O que o “inspetor de direitos humanos” não diz é que há uma grande oposição ao acordo de livre comércio com o Mercosul por parte dos agricultores europeus. Fosse a agenda dos direitos humanos sincera, a melhor forma de fazê-la avançar é justamente um acordo de livre comércio, em que uma parte da riqueza obtida pela agricultura europeia seria transferida para os países mais pobres do Mercosul. O protecionismo europeu contribui para a pobreza e, consequentemente, para o quadro de desrespeito aos direitos humanos em países como o Brasil.

A ca-aga-ção de regras por parte do “inspetor de direitos humanos” não orna com as práticas protecionistas da UE. Sem dúvida, temos muitos problemas de proteção a direitos humanos no Brasil, isso não se discute. O ponto é que a UE ajudaria mais se agisse para estabelecer logo um acordo. O resto é discurso diversionista.

Assim caminha a humanidade

A UEFA não autorizou que o estádio de Munique, que receberá o jogo Alemanha x Hungria pela Eurocopa, fosse iluminado com as cores do arco-íris. A iluminação seria em protesto por uma lei recentemente aprovada pelo parlamento húngaro, proibindo a presença de homossexuais em propaganda para menores, além de outros pontos relacionados com educação. A UEFA ofereceu outras datas para o protesto, mas como este jogo envolve a seleção da Hungria, foi considerado pela entidade como um protesto político, contra, portanto, seus estatutos, que proíbem expressões políticas e religiosas em suas competições.

Não vou aqui entrar no mérito da decisão da UEFA. Trata-se de entidade privada, regida por regras aprovadas pelos seus membros. Se alguém não estiver contente, pode tentar fundar uma outra associação que, além de organizar futebol, também promova protestos políticos. Boa sorte.

Meu ponto é outro. A tal lei foi aprovada por 157 votos a favor e um contra.

O parlamento húngaro é formado por 199 deputados, dos quais 132 pertencem à base do governo de Viktor Orbán, o Bolsonaro deles. A oposição boicotou a votação, mas o que chama a atenção é que 25 deputados da oposição, de um total de 67, votaram a favor da lei. Ou seja, mais de um terço.

Então, são duas coisas:

1) Esses deputados que lá estão foram eleitos pelos cidadãos húngaros. Não estamos falando da Venezuela ou do Iraque. A Hungria pertence à União Europeia, que tem regras mínimas de governança para os seus membros. Em reportagem do The Guardian, uma deputada da oposição pede “imediata ação da UE”. O jornalista complementa, não sem uma ponta de sarcasmo, “sem dizer exatamente o que ela tem em mente”. Não há nada em mente.

2) Mesmo uma fatia relevante de deputados da oposição votaram a favor da tal lei. Seria interessante ouvir as suas considerações, o que, até onde eu tenha conhecimento, não foi feito por nenhum veículo da imprensa democrática ocidental.

Estamos aqui diante de um dilema típico das sociedades democráticas. Por um lado, cada sociedade tem suas idiossincrasias. O parlamento é somente o espelho dessas peculiaridades. Vale para o Brasil, vale para a Hungria. Por outro lado, é óbvio que desrespeitos flagrantes a direitos humanos devem ser rechaçados pela comunidade das nações e a autodeterminação dos povos deve ser sopesada com um mínimo de humanidade. A Hungria faz parte da União Europeia, o que, em tese, garante esse mínimo de humanidade ao longo do tempo, caso o país deseje continuar pertencendo a esse clube. Por outro lado, protestos fazem parte do jogo democrático.

Enfim, trata-se de tema espinhoso, que envolve muitas facetas. Ao contrário do que parece, não é a luta entre “o bem e o mal”. É somente o barulho causado pelo choque de duas agendas de costumes. Assim caminha a humanidade.