Servindo a humanidade como ela quer ser servida

Economia é uma ciência relativamente simples. Grande parte dos fenômenos econômicos (senão todos) pode ser resumido a um equilíbrio entre oferta e demanda, sinalizado pelos preços dos produtos. Esse simples raciocínio evitaria que jornalistas como Lourival Sant’Anna, de resto muito competente em outras áreas, passasse vergonha ao falar sobre o mercado de combustíveis fósseis.

Segundo Lourival, o mundo não conseguiu superar a resistência dos países da OPEP de se comprometerem a fazer o phase out da produção de petróleo. Isso é uma bobagem em dois níveis.

Em primeiro lugar, a OPEP existe justamente para controlar o nível de produção de petróleo de seus participantes, de modo a manter o preço valorizado. Se a OPEP não existisse, os produtores não estariam restritos por cotas e a produção de petróleo seria muito maior, com preços muito menores, estimulando ainda mais a demanda.

E é justamente a respeito da demanda que o raciocínio do jornalista não para em pé. Isso que vou dizer é uma tautologia, mas as vezes é preciso insistir no óbvio: é a demanda por combustíveis fósseis que mantém a produção em alta. A oferta está ali apenas para atender a demanda. Qualquer ameaça de redução da oferta (como foi o caso da guerra da Ucrânia, por exemplo) provoca uma corrida dos países “não negacionistas” em direção a subsídios para os combustíveis fósseis. O fato é que os discursos são belos, mas é difícil encontrar político que aguente a pressão de combustíveis mais caros.

Lourival Sant’Anna não está sozinho. A imprensa e os ativistas, de modo geral, colocam a culpa do aquecimento global nas costas dos países e empresas produtores de petróleo, como se a redução da produção afetasse tão somente os seus balanços. É uma forma confortável de encarar o problema, que sempre é causado por um agente externo perverso.

A realidade nua e crua, no entanto, é que os combustíveis fósseis são ainda, de longe, a fonte mais segura e barata de energia, em um mundo sedento por conforto a preços módicos. Os produtores estão ali apenas para servir a humanidade como ela quer ser servida.

Punição coletiva ou baixas de guerra?

Considero Lourival Sant’Anna um dos melhores jornalistas internacionais do país. Suas análises são sempre ponderadas e profundas, enriquecendo o entendimento dos diversos problemas da arena global. Mas mesmo Sant’Anna não escapou da tentação de igualar coisas inigualáveis.

Na ânsia de equilibrar a balança, o jornalista afirma que Israel está infringindo a lei internacional, ao impor uma “punição coletiva contra civis”. Ora, as palavras têm sentido. “Punir” significa “castigar em decorrência de um crime”. Sant’anna está afirmando que Israel estaria deliberadamente impondo um castigo aos civis da Faixa de Gaza por crimes que estes teriam cometido.

Ora, desde o início o governo israelense tem afirmado que seu único objetivo é neutralizar o Hamas. A acusação feita pelo jornalista implica supor que as autoridades israelenses estão mentindo, e que seu real objetivo é atacar a esmo a população de Gaza, com o objetivo de puni-la por seus crimes.

É só óbvio que, como em qualquer guerra, lamentavelmente há baixas civis. Mas daí a afirmar que essas baixas são propositalmente buscadas por Israel como forma de punição, vai uma distância amazônica. Se nem um jornalista ponderado como Lourival Sant’Anna consegue distinguir uma coisa da outra, então Israel está realmente a pé no front das relações públicas.

A faca no pescoço

Trecho da coluna de Lourival Sant’Anna sobre a visita de Fernández a Lula (lembre-se, não foi da Argentina ao Brasil) narra as dificuldades de se chegar a uma “equação” que permita financiar os argentinos sem correr o risco Argentina. Trata-se de encontrar a quadratura do círculo. Nem a solução de sempre, a China, sempre disposta a ajudar generosamente os países vítimas do imperialismo, parece disponível no momento. Com a China, só na base do escambo.

A propósito, reportagem da Bloomberg nessa semana aborda justamente esse ponto. Em uma conferência internacional, a presidente do FMI, a búlgara Kristalina Georgieva, dá a entender que a China estaria mudando a sua postura em relação aos países que não podem pagar os seus empréstimos. Segundo Georgieva, os chineses estariam mais dispostos a “negociar”, o que pressupõe que os chineses não estão tendo a mesma boa vontade do FMI. Países como a Zâmbia, em que 75% da dívida é com os chineses, estão com a faca chinesa no pescoço.

O FMI foi criado, ente outras coisas, para ajudar na estabilização financeira de países que passam por dificuldades. A ideia é emprestar dinheiro e ajudar na implementação de medidas saneadoras. Se um país particular fizesse isso (por exemplo, EUA ou China), poderia ser acusado de ingerência sobre os assuntos internos de outro país, além das resistências políticas domésticas, em países democráticos, a iniciativas desse tipo. O FMI, representando o conjunto dos países, tem essa missão e legitimidade. Além disso, cabe destacar, o FMI não age sem um convite formal do país a ser ajudado.

A China, por razões geopolíticas, emprestou dinheiro como se não houvesse amanhã para uma série de países, principalmente na África, e agora está descobrindo que as elites desses países pegaram o dinheiro e se empirulitaram, como diria o Didi. A China não tem vocação para FMI e, portanto, não tem ânimo de negociação. O que Georgieva está dizendo, em sua linguagem diplomática, é que é bem mais fácil negociar com o FMI do que com a China. Talvez Lula pudesse bater um papo com seu novo amigo, Xi Jinping, sobre facas no pescoço.

Não se salva nada

Está se formando um consenso de que a parte geopolítica da viagem de Lula à China foi um desastre, ao confrontar, sem nenhuma necessidade, os Estados Unidos na questão do dólar, e o mundo ocidental democrático, na questão da Ucrânia. Até Eliane Cantanhêde, passadora de pano contumaz, chegou a essa conclusão.

Mas, pelo menos, a viagem serviu para aprofundar os laços comerciais, abrindo novas portas aos nossos empresários. Será?

O jornalista Lourival Sant’Anna levanta outro aspecto interessante das relações Brasil-China: a nossa dependência do gigante asiático. Em 2016, último ano do período PT no governo, o Brasil exportou US$ 35 bilhões para a China, ou 19,5% das nossas exportações. Seis anos depois, passados os governos Temer e Bolsonaro, o Brasil exportou, em 2022, US$ 89,4 bilhões, ou 26,8% das nossas exportações. A pergunta é: quanto mais nos interessa aumentar essa dependência? Do ponto de vista estratégico, não seria melhor Lula estar se dedicando a diversificar o destino de nossas exportações, ao invés de aprofundar ainda mais a nossa dependência da China?

Sob esse aspecto, a viagem de Lula também parece um equívoco. Ou seja, não se salva nada.

As sementes da destruição

Enquanto as atenções estão voltadas para os protestos contra a política de Covid-zero, o jornalista Lourival Sant’Anna chama a atenção para o ponto que julgo mais relevante para projetar a China do futuro: a relação do governo com a iniciativa privada.

O trecho destacado acima parece ter sido tirado diretamente do livro Why Nations Fail, de Daron Acemoglu. O economista lista uma série de exemplos de países cujas elites políticas sufocaram o surgimento de novas tecnologias, com o receio de perder poder. Talvez seja neste ponto que a democracia, com seus pesos e contrapesos e com pluralidade de representação, mostre-se o mais adequado sistema político para fomentar uma prosperidade de longo prazo.

As inovações são, por natureza, destrutivas. Destroem o status quo para substituir por outro mais eficiente, que cria mais valor com menos recursos. Esse processo, obviamente, encontra resistências, e a inovação somente segue em frente se o grupo dominante não tem poder suficiente para barrá-la.

A China é só o exemplo mais recente de elite política que se opõe à inovação, mesmo que isso pareça um tiro no pé. O PC chinês tem poder suficiente para fazê-lo e vai fazê-lo, porque essa é a lógica das instituições extrativistas.

Assim como aconteceu com a antiga União Soviética, pode levar décadas para que a China, tal qual a conhecemos hoje, desapareça e, no lugar, surja um país bem mais modesto. Mas é uma questão de “quando”, não de “se”. As sementes da destruição estão plantadas, é só uma questão de tempo para que floresçam.

Queda livre

Esse trecho do artigo de Lourival Sant’Anna hoje, no Estadão, me faz lembrar a piada do sujeito que se joga do 20o andar e, à altura do 5o andar, alguém abre a janela e lhe pergunta se está tudo bem. No que ele responde: “o vento está um pouco forte, mas por enquanto tudo bem”.

A dupla Chavez-Maduro está no poder há 20 anos, contra 12 anos da dupla Nestor-Cristina Kirchner e 13 anos da dupla Lula-Dilma. Brasil e Argentina estavam no 5o andar de suas respectivas quedas quando foram resgatados. Alguém tem dúvida do que aconteceria com mais 7 anos de governo do PT?

Obviamente o ponto inicial tem influência na análise. Enquanto no Brasil o governo Lula pegou um país com a casa relativamente em ordem, Nestor Kirchner pegou uma Argentina em frangalhos, levada por um sistema cambial fixo insustentável. Aqui no Brasil, FHC foi forçado a abandonar o câmbio fixo em 99, o que ajudou muito a absorver choques externos. Então, talvez o Brasil tivesse começado a cair do 30o andar, não do 20o, e estava à altura do 15o andar quando Dilma caiu. Mas era só uma questão de tempo.

Prova disso é que durou menos de um ano a tentativa de Dilma Rousseff dar um cavalo de pau ortodoxo em sua política econômica, com a indicação de Joaquim Levy para o ministério da Fazenda. Pressionada pelo populismo inerente ao seu partido, trocou Joaquim mãos-de-tesoura por Nelson Barbosa, o mais psdebista dos petistas. Era só uma questão de tempo para que um Belluzo ou um Bresser Pereira fossem convocados para a inglória tarefa de tentar interromper a queda.

A Venezuela é o exemplo acabado de como políticas ruins destroem uma economia. Não é uma questão de SE, como faz supor o artigo de Lourival Sant’Anna, mas de QUANDO o país se espatifa no chão. E nem esse impacto garante que a queda tenha um fim: é sempre possível se jogar para dentro de um poço. Que os venezuelanos o digam.