O PT é parte do problema, não da solução

Luiz Sérgio Henriques, um dos organizadores da obra de Gramsci no Brasil, defende, neste artigo, que o maior desafio da democracia brasileira nos próximos anos é “esvaziar a extraordinária dimensão de massas que adquiriu entre nós a direita autocrática”. Ele ficou realmente impressionado com os milhões de votos recebidos por Bolsonaro nas duas últimas eleições.

Pelo menos, o articulista não esconde sua cabeça na terra e faz de conta que está tudo bem. Quando milhões de pessoas decidem sufragar um sujeito como Bolsonaro para presidente da República (e Bolsonaro teve mais votos em 2022 que em 2018), é que alguma coisa está muito fora do lugar. Bolsonaro e as tais “massas autocráticas” são apenas o sintoma de uma doença que está sufocando a democracia brasileira. Este problema chama-se PT.

Henriques arranha a causa do problema ao reconhecer que o grande acordo nacional que teve por objetivo encerrar o período ditatorial no Brasil não teve o apoio do PT, mais preocupado em fomentar um “patriotismo de partido”. Eu acrescento que, quando o PT teve a oportunidade de mostrar suas credenciais democráticas, preferiu chamar de “golpe” a um impeachment absolutamente dentro das regras constitucionais. Bolsonaro questionando o resultado das eleições é apenas o outro lado da mesma moeda.

O articulista reconhece que o sistema político que impeça o surgimento dessas “massas autocráticas” não existe. Mas ele se mantém na esperança de que o PT no poder “lance pontes e faça alianças”, montando um sistema de contenção para a democracia. É a versão política da carta dos economistas tucanos, que declararam seu voto em Lula com a esperança de que o PT fizesse uma gestão responsável da economia. Na política, as “pontes” lançadas pelo PT foram o Mensalão e o Petrolão. Na economia, a “responsabilidade” resultou na maior recessão da história brasileira.

O articulista e os economistas têm esperança de que “desta vez será diferente”. Ambos erram em um ponto fundamental: o PT é parte do problema, não da solução. Enquanto o PT for tratado como um ator democrático legítimo, as tais “massas autocráticas” terão longa vida.

O caminho de volta do politicamente correto

Três textos publicados no Estadão de ontem e hoje estão intimamente relacionados, e demonstram como os americanos já estão voltando pelo caminho que nós aqui ainda estamos percorrendo.

O primeiro é do colunista Fareed Zakaria, publicado ontem, conclamando os democratas a prestarem mais atenção a pautas que realmente fazem a diferença na vida das pessoas e a deixarem de lado os “pronomes neutros”, a imigração ilegal, a demonização da polícia e outras pautas que interessam a minorias minúsculas e irritam uma parcela significativa da população que, de outra forma, estaria disposta a votar nos democratas.

O segundo texto é da Economist, traduzido hoje no Estadão, defendendo exatamente a mesma ideia.

O terceiro texto é de Luiz Sérgio Henriques, acusando a “extrema-direita” brasileira de atacar “valores seculares da modernidade”. Sob esse rótulo, sabemos que se abrigam exatamente as mesmas ideias que Zakaria e a Economist estão agora conclamando os liberais americanos a colocarem em segundo plano para terem alguma chance eleitoral.

Aqui no Brasil, a sorte de nossa esquerda é ter um Lula, e não um Biden, liderando a agenda. Lula pode ser tudo, menos politicamente correto. Isso que Zakaria e a Economist estão defendendo, Lula sabe de velho. Se fosse depender de intelectuais como Luís Sérgio Henriques, Bolsonaro não teria com que se preocupar, venceria todas as eleições com os pés nas costas.

Uma versão edulcorada da história

Luiz Sérgio Henriques, organizador das obras de Gramsci no Brasil, trás, novamente, o paralelo entre a aliança anglo-soviética contra Hitler na 2a Guerra e uma suposta aliança entre “forças democráticas” para derrotar o extremismo de direita no Brasil, representado por Bolsonaro.

Segundo essa versão edulcorada da história, Stálin teria articulado uma “clarividente política de alianças” contra um inimigo comum, ainda que, admite o articulista, os “ventos da democracia” não tenham soprado para dentro do sistema soviético, o que seria quase que uma contradição em termos.

Bem, haveria contradição se a versão edulcorada da história fosse a real. Uma pena que não seja. A real é a seguinte: Stálin celebrou um pacto de não-agressão com Hitler, e ambos retalharam a Polônia entre si. O plano de Hitler, desde sempre, era atacar ao leste, onde estava o “espaço vital” para o povo alemão e onde se encontravam os malditos “judeus bolcheviques”. Mas, antes disso, precisava celebrar um armistício com a Grã-Bretanha, de modo a poder concentrar suas forças no ataque à União Soviética. Tendo encontrado pela frente um sujeito bem mais teimoso e clarividente que Chamberlain, Hitler não conseguiu seu intento.

Levado pela sua megalomania, Hitler decidiu, então, abrir a 2a frente de batalha ao leste, atacando a União Soviética em junho de 1941. Foi somente então que Stálin, jogando a sua melhor chance de sobreviver, aceitou fazer aliança com Churchill. Nada a ver, portanto, com uma suposta “aliança de forças democráticas para derrotar a extrema-direita”. Quem leu a auto-biografia de Churchill sabe que o primeiro-ministro britânico não confiava nada em Stálin, e tinha consciência de que era a União Soviética o inimigo de longo prazo. É dele a expressão “Cortina de Ferro”, que denominava a área de influência dos soviéticos na Europa.

Alguém poderá dizer que, mesmo em sua versão hard, a história ainda se aplica. Não seria preciso reconhecer no PT uma força democrática para estabelecer uma aliança, dado que o inimigo comum, agora, é Bolsonaro. Tratemos da direita anti-democrática agora, diria Churchill, e depois vejamos o que fazer com a esquerda anti-democrática. Até poderia ser, se assim fosse. A correlação de forças é completamente outra. Será que Churchill faria uma aliança com Stálin se soubesse que este teria meios para conquistar a Europa Ocidental uma vez tendo sido Hitler derrotado? Na política brasileira não há compartilhamento de poder quando o PT ocupa o espaço. Essa história de “aliança democrática” só existe enquanto existe um inimigo comum. Depois, quem tem mais armas subjuga o antigo aliado.

O ser humano está sempre em busca de padrões, de modo a tornar a realidade mais inteligível. Fazer paralelos históricos é um desses mecanismos de busca de padrões. É tentador, nesse sentido, identificar Bolsonaro com uma versão aguada de Hitler, Lula com uma versão adocicada de Stálin e Alckmin (e o resto do “centro democrático”) com uma versão idealizada de Churchill. O problema, como disse Karl Marx, é que a história repete-se como farsa.

A maior ameaça à democracia

Luíz Sérgio Henriques, um dos organizadores da obra de Gramsci no Brasil, escreve o 54.897o artigo sobre a ameaça às democracias representada pela “ultradireita” (“extrema-direita”, pelo visto, já não é um termo suficiente). Dá como exemplo a reação de Trump, Netanyahu e Keiko Fujimori às suas respectivas derrotas eleitorais, colocando em dúvida a lisura do processo, o mesmo que já vem ocorrendo no Brasil.

Acho ridículo o “whataboutism”, que consiste em apontar os defeitos do contrário para tirar importância aos próprios. A frase que imortalizou o “whataboutism” no Brasil foi “e o petê?”, que serve como coringa para qualquer crítica ao governo Bolsonaro.

No entanto, correndo o risco de ser acusado de “whataboutism”, senti falta, no artigo, da menção a regimes que verdadeiramente suprimiram a democracia em seus países, como a Cuba de Miguel Diaz-Canel, a Venezuela de Nicolas Maduro e a Nicarágua de Daniel Ortega. O articulista prefere lembrar a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini, exemplos de quase um século atrás, e convenientemente esquece o que está acontecendo aqui e agora. Trump e Netanyahu podem ter tumultuado o processo, mas entregaram o poder. Diaz-Canel, Maduro e Ortega foram um pouco além do tumulto.

Henriques termina o artigo convocando “uma frente muito ampla em defesa das regras do jogo”, o que certamente inclui Lula e o PT. O mesmo Lula e o mesmo PT que apoiam abertamente regimes liberticidas como os de Cuba, Venezuela e Nicarágua. O mesmo Lula que, outro dia, em entrevista a um jornal chinês, elogiou o sistema de partido único e forte do país. São estes que vão defender a democracia brasileira?

Cada um, de acordo com sua própria escala de valores, vai avaliar qual dessas duas forças é mais deletéria para o sistema democrático e votar de acordo com sua própria consciência. O que não dá é, como faz o articulista, apontar Bolsonaro como a única ameaça às instituições democráticas do país.

Curiosamente, Henriques termina o artigo dando uma pista sobre qual é o maior perigo à democracia, ao afirmar que a tarefa de afastar a ameaça é relativamente simples, pois Bolsonaro “não disfarça e nem oculta seus truques”. Sem querer, o articulista mostra que gente como Trump e Bolsonaro são menos perigosos, por serem caricatos, golpistas de manual. Muito mais perigosa é a ameaça insidiosa, que se aproxima sem que se perceba. Um estudioso de Gramsci certamente sabe do que se trata.