Eliane Catanhêde teve uma ideia genial: Lula abriria mão da cabeça de chapa e, do posto de candidato a vice-presidente da República, costuraria um grande entendimento pacificador nacional.
Bem, não sei direito por onde começar. São vários erros diversos e combinados em uma única “ideia”. Mas vamos tentar.
O primeiro erro é achar que Lula e o PT vão abrir mão da cabeça-de-chapa. Mesmo em situações em que o PT não tem a mínima chance eleitoral, o partido não abre mão de ter os cordões do poder em suas mãos. A composição ocorre somente com os outros partidos sendo vassalos de seu projeto de poder. Imagine em uma situação como a que se coloca, com Lula tendo efetivas chances de eleição.
O segundo erro é supor que Lula e o PT estão dispostos a “pacificar” o cenário político nacional. Como se não tivesse sido Lula a apontar a “herança maldita” de FHC e ter inventado o “nós contra eles”. Não, Lula e o PT são sectários, a única paz que lhes interessa é o da submissão.
Por fim, causa espécie que um político que esteve preso com prova provada de seus crimes, com sentença confirmada por 3 instâncias da justiça brasileira, e que só está solto com base em “provas” obtidas ilegalmente, ainda seja tratado como um contendor legítimo na arena política, e não como um pária.
Esse tipo de “raciocínio” da jornalista nos diz algo muito importante: Lula não está solto porque alguns ministros do STF resolveram assim. O STF é apenas o operador político de uma vontade da inteligentzia brasileira, que nunca engoliu o fato de que Lula é um larápio como outro qualquer, e não o herói de seus sonhos juvenis de justiça social. Nada é por acaso: Lula está de volta porque assim quiseram pessoas como Catanhêde, que sonham com um Brasil pacificado, próspero e livre de arreganhos autoritários.
São essas mesmas pessoas que não conseguem entender como uma figura como Bolsonaro conseguiu se eleger presidente.
Não leio chinês, por óbvio, então tasquei um Google Translator. A entrevista é longa e repleta das mistificações próprias do demiurgo de Garanhuns. Vou destacar apenas três trechos, somente corrigindo a gramática em algumas passagens. Se alguém souber chinês a ponto de ler no original, poderá eventualmente corrigir algumas imprecisões. Mas o sentido, vocês verão, é absolutamente claro. Faço comentários às respostas de Lula ao longo da entrevista.
A primeira pergunta do entrevistador refere-se à sua prisão:
– É uma história incrível e perturbadora. O que aconteceu com o judiciário em seu país? Na sua opinião, seu caso sofreu interferência de países estrangeiros?
– Lula: O Departamento de Justiça dos EUA orientou os procuradores dos EUA a participar do processo contra mim. Eles vieram ao Brasil para se reunir com o Ministério Público brasileiro, e os juízes e promotores foram aos EUA para discutir minha condenação. Gravamos um depoimento que mostrou promotores dos EUA comemorando minha prisão. A única explicação que encontro é que o Brasil está se tornando um importante player internacional.
Essa acusação aos EUA não é nova. Tudo sempre é interferência duzamericano. O que me chama a atenção é que a Lava-Jato começa em 2014, ainda no governo Obama. Ou seja, Lula acusa o ministério da Justiça de Obama (e, depois, de Trump) pela sua prisão. Como alguém quer ser presidente da República fazendo esse tipo de acusação a um país dito amigo? Qual será a sua relação com os EUA durante o seu governo? É o mesmo que querer aliados no Congresso depois de chamar os congressistas de golpistas. Criticamos Bolsonaro por ser ofensivo em relação a um grande parceiro comercial como a China. Onde estão as críticas a Lula por fazer acusações tão sérias aos EUA?
A entrevista continua:
– Quando a globalização começou nos anos 1990 e início dos anos 2000, todos esperávamos que se seguíssemos uma prescrição específica de desenvolvimento, todos os países em desenvolvimento se tornariam países desenvolvidos. Mas, décadas depois, é claro que a China conseguiu muito mais. A maioria dos outros países em desenvolvimento e a maioria dos países do BRIC, incluindo o Brasil, estagnaram e não conseguiram progredir. Então, o que há de errado com os países em desenvolvimento? Por que só existe uma China? Como podemos mudar isso?
– Lula: […] Mas por que a China pode fazer isso? Porque a China tem um partido político. A China foi o produto de uma revolução liderada pelo presidente Mao em 1949, e seu partido político tem o poder e um governo forte que o povo respeita quando toma decisões. Isso é algo que não temos no Brasil, e tivemos o impeachment da nossa presidente, Dilma Rousseff, por uma mentira. Indiscutivelmente, a elite financeira do nosso país muitas vezes se intromete na política, e precisamos enfrentá-los para mostrar-lhes o importante papel que o governo deve desempenhar. Muitas das políticas sociais que o povo precisa só podem ser alcançadas quando o governo é forte, e somente quando o governo tem o comando. Foi lamentável que o papel dos governos tenha se enfraquecido nos países latino-americanos e do terceiro mundo, com cada vez mais empresas estatais privatizadas e cada vez mais funções governamentais privatizadas. A China, por exemplo, é capaz de combater o coronavírus tão rapidamente porque tem um partido político forte e um governo forte porque tem controle e comando. O Brasil não tem isso, assim como outros países. […] Portanto, acho que a China deu um exemplo de desenvolvimento para o mundo inteiro e é um modelo para o mundo inteiro. Espero que outros países possam aprender com a China, para que todos possamos ser ricos, fortes, distribuindo mais riqueza, mas também ter um mundo mais humano.
Bem, Lula elogia nada mais, nada menos, que a ditadura mais bem sucedida do planeta. Alô, FHC. Alô, Eugênio Bucci. Alô, intelectuais democratas do Brasil. Este é Lula, aquele que vai salvar a democracia brasileira. Um partido forte. Um estado forte. Uma ditadura do bem. Precisa dizer mais alguma coisa?
Continuando:
– Muita coisa aconteceu na América Latina, Colômbia e Peru, e agora há algo incomum no Brasil. A situação está mudando, como você acha que você, seu partido e as “forças do sul” devem influenciar essas mudanças?
– Lula: Venho dizendo que a mídia teve um grande papel na América Latina, especialmente no Brasil, nos golpes no Brasil, na derrota eleitoral da argentina Cristina Kirchner há quatro anos, e na Bolívia contra Evo Morales.
A mídia! O que “a mídia” está fazendo nessa resposta? O que Lula pretende fazer com “a mídia”? Bolsonaro agride jornalistas. Lula também não gosta da mídia, mas seus métodos para controlá-la são, digamos, mais eficazes. Seria a China um exemplo aqui também?
Estão aí, em três respostas, os pendores democráticos de Lula. Ok, ele está falando a um jornal chinês, não poderia deixar de ser elogioso ao país. Mas, depois de 14 anos de governos do PT, depois do mensalão e do petrolão, não parece restar dúvidas sobre a visão de mundo de Lula e do PT a respeito das instituições democráticas. Criticar a falta de credenciais democráticas de Bolsonaro sem fazer o mesmo com Lula é escolher uma ditadura a seu gosto. Desde que seja “do bem”, vale qualquer coisa.
Outro dia, foi uma entrevista de Eduardo Paes, rasgando elogios a Lula (não cheguei a comentar aqui por falta de tempo).
Agora, é Rodrigo Maia que participa de um almoço oferecido por Eduardo Paes em homenagem a Lula e, segundo a jornalista Malu Gaspar, oferecendo seus préstimos ao ex-presidiário.
Eduardo Paes migrou para o PSD, partido de destino de Rodrigo Maia depois de ser expulso do DEM. PSD de Gilberto Kassab, que já foi ministro de Dilma, de Temer e de Doria, e que anunciou outro dia que seu candidato à presidência é o atual presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (risadas de seriado ao fundo).
As raposas da política estão abandonando essa história de “terceira via” antes mesmo de começar. O aperto de mão de FHC e Lula não foi um acidente de percurso, foi um movimento nessa mesma direção. As forças políticas do país estão se aglutinando entre os dois polos, Lula e Bolsonaro. O DEM assumiu o lado de Bolsonaro na eleição para a Câmara, e Rodrigo Maia pulou para o outro barco. Não há solução intermediária.
Claro que podemos continuar sonhando, afinal falta ainda mais de um ano para as eleições, e o Inesperado sempre pode dar as caras. Mas o desenho é claro: se 2018 foi a eleição do lulopetismo vs. anti-lulopetismo, 2022 será a eleição do anti-lulopetismo vs. anti-bolsonarismo, decidida por aqueles que não são nem lulopetistas e nem bolsonaristas.
Estou cada vez achando mais graça nesse debate sobre a tal “terceira via”, que nos livraria de ter de escolher entre o demônio e o capeta.
Ocorre que a maioria das eleições brasileiras desde a redemocratização se deu entre o capeta e alguém do chamado “centro democrático”. E o país escolheu o capeta 4 vezes. Seguidas.
Em 2018, apareceu o demônio para desafiar o capeta. E o debate foi exatamente o mesmo que estamos tendo hoje: cadê a “terceira via”? Ora, a terceira via já havia perdido do capeta nas 4 eleições anteriores. Para desbancar o capeta, só o demônio.
Essa história de que a maioria quer uma “terceira via” é teoria. Se fosse maioria, tanto o demônio quanto o capeta já estariam de malas prontas para voltar ao inferno. Mas não. Tanto um quanto o outro tem legião de apoiadores.
Então, meus amigos, o tal “centro democrático” já teve a sua chance e a jogou pela janela. Agora, é a hora de belzebu.
PS.: eleitores dos dois lados vão protestar por chamar de coisa ruim o seu candidato de predileção. Paciência.
O que você acha menos pior, o amarelo ou a acelga?
Confuso? Pois é, o nosso debate político encontra-se nesse nível. Somos chamados a escolher o “menos pior”. Mas em que escala? Com relação ao quê?
Entre o amarelo ou o roxo conseguimos escolher o menos pior, assim como entre a acelga e, sei lá, o agrião. Claro que tem gente que ama de paixão o amarelo ou o o roxo, assim como tem gente que adora acelga ou agrião. Mas a grande maioria dos seres humanos, quando chamados a escolherem um ou outro, escolherão o menos pior. No entanto, como escolher entre o amarelo e a acelga? São coisas em dimensões diferentes, não tem como comparar.
Assim são Bolsonaro e Lula. Um é um sociopata, incapaz de mostrar empatia, flertando continuamente com rupturas institucionais e refratário a qualquer reforma que modernize o Estado brasileiro. Outro foi o chefe de uma quadrilha que tomou de assalto o Estado brasileiro, além de ter ideias pré-históricas sobre economia.
A escolha pelo “menos pior”, na verdade, é fruto de uma percepção muito particular: o que causa mais sofrimento, uma cor ruim ou uma verdura ruim? Cada um vai fazer sua escolha de acordo com essa avaliação subjetiva, própria, da realidade. Por isso as discussões sobre o que é “menos pior” são infrutíferas e, no final das contas, inúteis.
Vamos dividir este post em duas partes. Na primeira, comentarei o aspecto econômico. Na segunda, a questão política envolvida nessa nota conjunta.
Os resultados do Mercosul
Antes de mais nada, vamos à íntegra da nota conjunta:
Comecemos pelo fim: “é necessário manter a integridade do bloco, para que todos os seus membros desenvolvam plenamente suas capacidades industriais e tecnológicas…”
Bem, dá vontade de chorar. O Mercosul foi fundado em 1991, há 30 anos portanto. São 30 anos de protecionismo comercial conjunto. O que conseguimos com isso? Onde está o desenvolvimento das “capacidades industriais e tecnológicas” das indústrias protegidas?
Temos uma tara por fabricar tudo aqui. Lembro até hoje do depoimento de Marcelo Odebrecht a respeito da Sete Brasil, a empresa criada por Dilma para fabricar sondas de exploração de petróleo. Segundo Marcelo, a empresa não parava em pé, era inviável do ponto de vista econômico. Mas sabe como é, era desejo do governo ter “autossuficiência” nesse campo. Não tínhamos como competir com os coreanos, mas a Petrobrás foi obrigada a pagar mais caro pelas sondas, subsidiando uma operação inviável.
Temos produtos notoriamente defasados e caros. As próprias indústrias têm dificuldade de manter operações de ponta aqui porque não conseguem importar a preços competitivos. Somos um dos países mais fechados do mundo. Em artigo no Valor Econômico do dia 31/05 (Por que a indústria não exporta?), Edmar Bacha lembra de uma entrevista do então chairman da Renault-Nissan, Carlos Ghosn, em que lhe perguntaram porque a Renault fabricava carros com tecnologia mais avançada na Europa do que no Brasil, ao que ele respondeu: “deixem-me importar os componentes e os brasileiros terão carros tão avançados aqui quanto na Europa”.
Bacha invoca o conceito de “crescimento empobrecedor”, desenvolvido nos anos 60 pelos economistas Harry Johnson e Jagdish Bhagwati: as multinacionais, ao se instalarem no país, exploram o mercado doméstico com produtos mais caros e de pior qualidade, porque estão protegidos pelas tarifas de importação. Mas não conseguem exportar, justamente porque os produtos são mais caros e de pior qualidade. Temos então uma indústria isolada do resto do mundo, o que dá origem ao aparente paradoxo: mesmo com o câmbio extremamente desvalorizado e os juros em seu ponto mais baixo da história, a indústria não consegue exportar mais.
Mas quem defende o protecionismo quer uma indústria que produza aqui, não uma indústria que exporte. Assim, teremos “maior valor agregado” e “empregos de qualidade”, o mantra sempre entoado. Sim, com o consumidor pagando mais caro no final, seja pelos preços mais altos, seja pelos produtos de qualidade inferior.
Mas, pelo menos, com essa proteção tarifária, o fluxo de comércio entre os países do Mercosul deve ter bombado. Afinal, as alíquotas são privilegiadas para a importação e exportação entre esses países. Vejamos, então o gráfico abaixo:
Em 1997, a corrente de comércio (exportações + importações) entre o Brasil e os países do Mercosul representava quase 18% de toda a corrente de comércio brasileira. Entre 1997 e 2002, essa participação caiu para 10%, nível em que ficou pelos 15 anos seguintes. A partir de 2017, a participação do Mercosul começou a cair novamente, atingindo, em 2020, pouco mais de 6%, um terço do que era há 23 anos.
Esse gráfico é elucidativo, inclusive, para desmistificar uma crença generalizada, a de que foi o crescimento do comércio com a China o fator que fez encolher a participação do comércio com outras regiões. Não é o que vemos. O comércio com a China bombou a partir de 2003, com o início do superciclo das commodities. No entanto, a participação do comércio com o Mercosul já havia caído antes desse ano, o que indica um problema em qualquer outro lugar. Vejamos o gráfico abaixo:
Observe como a corrente de comércio com a China sobe de maneira espetacular somente depois de 2002, mas a corrente de comércio com o Mercosul cai de cerca de US$ 200 bilhões em 1997 para US$ 100 bilhões em 2002. O que aconteceu nesses 5 anos? Se lembrarmos, foi o período que compreendeu várias crises que atingiram em cheio os emergentes: crise dos tigres asiáticos, crise da Rússia, crise do Real (desvalorização) e, finalmente, a crise do Austral, com o abandono da paridade cambial com o dólar, que culminou, no final de 2001, com a renúncia de De La Rua e sua fuga da Casa Rosada de helicóptero. Enfim, o fluxo de comércio declinou por problemas internos dos países da região, não tem nada a ver com tarifas ou a falta delas.
O grande ciclo de commodities, a partir de 2003, por outro lado, fez com que a corrente de comércio brasileiro atingisse outro patamar. O comércio com a China decolou, mas não só. O comércio com Europa, EUA e Mercosul também cresceu de maneira relevante. Não houve, nesse período, nenhuma mudança tarifária relevante. Mais um exemplo de que é a economia que determina o fluxo de comércio, não as tarifas.
O pico do comércio com o Mercosul se deu em 2011, com quase US$ 500 bilhões de corrente de comércio. Hoje, 10 anos depois, temos metade desse valor, fruto dos problemas dos países da região nesta década. O comércio com Europa e EUA também caiu durante o período, mas em muito menor magnitude. Enquanto o comércio com a Europa foi o dobro em 2020 em relação a 1997 e com os EUA cresceu 150% no mesmo período, o comércio com o Mercosul foi apenas 25% maior em 2020 comparado com o nível de 1997. E note que nem estamos falando da China.
Enfim, o Mercosul, como zona de livre comércio com o objetivo de alavancar o poder industrial da região foi um rotundo fracasso. Podemos tentar continuar fazendo o mesmo que fizemos nos últimos 30 anos, ou podemos tentar mudar a estratégia. Neste ponto, entra a nota conjunta de Lula e FHC.
A questão geopolítica da nota
Vejamos novamente a íntegra da nota conjunta:
O que os dois ex-presidentes querem dizer é que não é o momento de chutar cachorro morto. A Argentina passa por (mais um) momento muito difícil, está em estado de calote com FMI e faltam dólares. Não é o momento, portanto, de agir pensando somente em si mesmo, mas sim, o momento de mostrar solidariedade com los hermanos.
Então, a questão é essa: queremos/devemos continuar associados a um país que está amarrado a um problema do qual não quer sair? A eleição de Alberto Fernandez foi o sinal mais claro de que a sociedade argentina não quer resolver os seus problemas. O governo brasileiro deve pensar no melhor para o seu próprio povo ou abrir mão de crescer mais em solidariedade ao vizinho?
Lula e FHC claramente fizeram a opção pela solidariedade. Lula, além disso, acredita que tarifas fazem bem para a economia, FHC nem tanto. Mas as considerações geopolíticas suplantaram suas eventuais reservas com relação à efetividade desse tipo de barreira ao comércio.
Mas é o aspecto político o mais interessante dessa nota conjunta.
A questão política da nota conjunta
A nota foi assinada somente por Lula e FHC. Assinaram na condição de “ex-presidentes”. Resta saber por que não chamaram Collor, Sarney e Dilma para assinarem junto. Aliás Sarney foi procurado pelo embaixador argentino para ajudar a pressionar o governo brasileiro.
Mas, por algum motivo, Sarney não assinou a tal nota conjunta. A ausência de Sarney (e de Collor, que afinal foi quem assinou o Tratado de Assunção, que estabeleceu o Mercosul) demonstra que a nota não é um “manifesto de ex-presidentes”, mas de Lula e FHC. Em outras palavras, a nota é escrita por “ex-presidentes”, mas não é uma “nota de ex-presidentes”. É só uma nota de Lula e FHC.
Ainda na hipótese de ter sido uma “nota de ex-presidentes”, a ausência de Dilma grita. Dilma, de todos os ex-presidentes, talvez tenha sido a mais entusiasta dessas políticas protecionistas. E a mais próxima dos governos Kirshner. Por que, afinal, Dilma não assina a “nota dos ex-presidentes”?
A resposta é simples: para os planos eleitorais de Lula, é essencial cancelar Dilma. Como naquelas fotos do regime stalinista, a ex-presidenta deve ser apagada. Ela serviu como símbolo do “golpe” de 2016, mas isso já passou. Hoje, é apenas o símbolo de um governo desastroso que os brasileiros querem ver pelas costas. Lula sabe que trazer Dilma para junto de si é um tiro no pé de qualquer pretensão eleitoral. Esta nota, portanto, não é geopolítica, nem ao menos política. Trata-se de uma nota eleitoral.
A nota conjunta e as eleições de 2022
Não sabemos quem procurou quem para cometer a tal nota conjunta. Mas aposto o meu mindinho que a ideia foi de Lula, o único que ganha alguma coisa com essa nota. FHC é o presidente de honra do PSDB. Uma espécie de rainha da Inglaterra no partido, mas, a exemplo da rainha, tem o seu peso institucional. Ao novamente jogar água no moinho de Lula, FHC mina mais um pouco as já ínfimas possibilidades de uma terceira via.
Com essa nota, Lula reforça sua imagem de “estadista” e, de quebra, traz junto de si, novamente, alguém que deveria estar liderando as conversas para termos uma alternativa entre o ex-capitão incendiário e o ex-presidiário.
Hoje, FHC escreve um artigo no Estadão. Pouco importa o que escreveu. O único presidente eleito pelo PSDB tornou-se o maior troféu de Lula. O que ele diz, de agora em diante, é irrelevante.
É a segunda vez que vejo referência ao fato de Chruchill ter se aliado a Stálin para vencer Hitler como um exemplo a ser seguido para vencer Bolsonaro. E de pessoas que respeito. Mas, com toda a vênia, parece-me que a comparação traz um problema sério.
Pra começo de conversa, não custa lembrar que Stálin e Hitler celebraram um pacto de não agressão, o que deixou Hitler com as mãos livres para fazer sua campanha na Europa. Pior: Stálin pegou carona na invasão da Polônia e tomou sua parte no butim.
Stálin só procurou Churchill depois de ser traído por Hitler. Se não fosse a megalomania de Hitler, além de seu erro de cálculo, pois esperava que a Inglaterra não se intrometesse em sua invasão à URSS, Stalin teria repartido a Europa com Hitler, não com Churchill.
Churchill aceitou aliar-se a Stálin porque a guerra era contra Hitler. Mas sabia que se tratava de um aliado pouquíssimo confiável. O pós-guerra mostrou quanto: Stálin impôs seu regime totalitário a metade da Europa. A história de que a aliança Churchill-Stalin libertou a Europa de um regime totalitário é meia-verdade: vale para a metade ocidental.
Então, o problema dessa imagem é este: os democratas estão se aliando com totalitários para vencer um totalitário. Só que, neste caso, não sobrará uma metade democrata. O Brasil é um só, ao vencedor as batatas. E, enquanto a batata do Brasil vai assando, os nossos democratas acham que o nosso Stalin tupiniquim é uma opção melhor do que o nosso Hitler tupiniquim.
Lula exibiu hoje o seu mais lustroso troféu desde que saiu da prisão: a foto com um aperto de mão (em tempos de pandemia) de FHC.
A foto não é mero detalhe. A foto é o fato político em si. Já comentei aqui algumas vezes que Lula sempre leva a tiracolo seu fotógrafo particular de várias décadas, Ricardo Stuckert, para tirar fotos que valem por mil palavras. Esta é só mais uma. Ele sabe que uma foto cria fatos políticos.
Nada impede que políticos conversem entre si, mesmo, ou até principalmente, se estão em campos opostos. Afinal, a política é a arte de encontrar um denominador comum para seguir em frente. Isso é uma coisa. Outra coisa é tirar uma foto. Uma foto passa uma mensagem.
A mensagem da foto abaixo é a seguinte: eu estou com Lula. Sim, eu sei, a mensagem que FHC queria passar era “eu estou com Lula contra Bolsonaro, caso o candidato do meu partido não passe para o 2o turno”. Foi essa a explicação dada por FHC em um tuíte posterior, como alguém que precisa explicar uma piada (imagem que roubei de alguém mais inteligente do que eu).
Acho que é a primeira vez que vejo alguém declarando voto no 2o turno antes do 1o, sem negociar nada. “Ah, mas contra Bolsonaro vale tudo”. Pois é, vale, inclusive, queimar o candidato de seu próprio partido. Porque, ao declarar apoio a Lula, perde qualquer sentido o papo de “terceira via”. Afinal, para quê terceira via, se Lula está ok? A tal da “polarização” é, na verdade, Bolsonaro contra o resto, Lula incluído.
Digamos, por hipótese, que o segundo turno seja entre um candidato tucano e Bolsonaro. Quem Lula e o PT vão apoiar? Faço a doação do meu dedo mindinho para o Lula se eles apoiarem publicamente os tucanos. Vão, com toda certeza, dizer que são representantes de um mesmo projeto elitista e entreguista. Isso por fora. Por dentro, vão torcer por Bolsonaro, porque sabem que será mais fácil bater o candidato de Bolsonaro em 2026 do que um candidato tucano que tentar a reeleição.
Como disse no início, essa foto é um baita troféu para Lula. É o primeiro apoio recebido de fora de sua bolha, uma espécie de redenção política. E que apoio! Lula está no jogo. Parabéns, FHC.
PS.: Nem entrei no mérito sobre as “credenciais” de Lula, seu passado e sua “obra”. Não vem ao caso para a análise, mesmo porque Bolsonaro também desperta repúdio pelos seus, digamos, predicados. A análise é somente sobre posicionamento político no tabuleiro eleitoral.
Tenho observado com vivo interesse o movimento para encontrar uma terceira via para enfrentar os “extremos” representados por Bolsonaro e Lula. Muitos não querem (eu me incluo) ter que escolher entre os dois no 2o turno de 2022.
Para tanto, muito se tem falado em unificar a candidatura de centro, pois a chance seria maior de passar para o 2o turno contra um dos dois. Será?
Fiz uma pesquisa em todas as eleições desde a redemocratização. As duas únicas eleições em que a soma das votações de todos os candidatos que não os dois mais votados excedeu a votação do 2o colocado (ou seja, esse hipotético “tercius” teria ido ao segundo turno) foram as eleições de 1989 e 2002.
Em 1989, a soma das votações de Brizola, Covas, Maluf, Afif, Ulysses e uma longa lista de outros candidatos somou 50,8%, bem mais do que os 16,7% obtidos por Lula, o segundo colocado. Na verdade, em tese, se somente Brizola e Covas tivessem se unido, os seus 27,2% de votos teriam tirado Lula do 2o turno. Em tese.
Em 2002, as votações de Anthony Garotinho e Ciro Gomes somaram 29,8%, contra 23,2% de José Serra, o 2o colocado naquele ano. Vamos analisar este caso mais de perto.
Digamos que Garotinho tivesse aberto mão de sua candidatura em favor de Ciro. Será que Ciro Gomes teria herdado todos os votos de Garotinho? Não será que uma parte desses votos teria ido para Serra, mantendo-o no 2o turno?
Tivemos uma experiência semelhante na eleição de 2014. Marina Silva era esse “tertius” contra a “polarização” entre PT e PSDB, a que mais chegou perto de tirar um dos dois partidos do 2o turno, tanto em 2010, quando teve 19,3% dos votos, quanto em 2014, quando teve 21,3% dos votos. Mas em 2014, ao contrário de 2010, Marina Silva declarou apoio formal à candidatura de Aécio Neves. Tivemos, então, a oportunidade de observar a migração de votos causada por esse apoio. Foi como se Marina tivesse aberto mão de sua candidatura em favor de Aécio.
Para acompanhar melhor o que aconteceu, vejamos os números desse eleição (os números se referem às votações no 1o e 2o turnos, respectivamente):
Dilma: 41,6% / 51,6%
Aécio: 33,6% / 48,4%
Marina: 21,3%
Outros: 3,5%
O resultado: dos 21,3% recebidos por Marina, no mínimo 6,5 pontos percentuais foram para Dilma, que aumentou a sua votação de 41,6% no 1o turno para 51,6% no 2o turno (estou assumindo que os outros 3,5 pontos percentuais que faltam para completar os 10 pontos vieram dos outros candidatos). O restante (no máximo 14,8 pontos percentuais) foi para Aécio. Ou seja, a migração não foi suficiente para dar a vitória a Aécio.
Digamos que, desses 6 que assinaram o tal “Manifesto pela Democracia”, se encontre um candidato único. Quanto dos votos que os outros candidatos teriam migrarão efetivamente para o “candidato escolhido”? Vou dar um exemplo concreto: digamos que esta terceira via seja Ciro Gomes. Quantos votos o coronel vai herdar dos supostos eleitores de Doria ou de Moro? E vice-versa?
Parece-me que aqueles que estão preocupados em encontrar uma terceira via que unifique todas as candidaturas fariam melhor em encontrar um candidato, qualquer um. O triste fato é que há um deserto de opções com chances reais de desafiar o presidente e o ex-presidente. Eu iria além: mesmo que Lula não possa concorrer, não há, hoje, opções com chances reais de desafiar o presidente e qualquer candidato do PT.
Um candidato com chances reais, qualquer que seja, saberá encontrar o seu caminho para ganhar corações e mentes dos eleitores, sem precisar construir estruturas artificiais. O desafio não é encontrar um candidato único. É encontrar um candidato.