Cada vez mais longe da pacificação

Reza a lenda que Brasília foi construída para isolar os políticos de protestos populares. Verdadeiro ou não, esse “objetivo” foi cumprido relativamente bem até o dia 17/06/2013, quando populares ocuparam a parte externa do Congresso Nacional. Ontem, novamente as sedes dos três poderes foram ocupadas por populares. Os dois eventos, separados por quase 10 anos, guardam semelhança em alguns aspectos, mas são profundamente diferentes em outros.

Os protestos de 2013 pegaram o mundo político e, porque não dizer, os próprios manifestantes, de surpresa. Sem liderança ou pauta definida, os protestos manifestavam uma espécie de “malaise” em relação ao governo de turno e à classe política em geral. O que começara com grupelhos de esquerda protestando contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo, foi engolfado por multidões protestando contra “tudo isso que está aí”. Atordoados, os políticos começaram a prometer tudo para todos, até que as manifestações voltaram ao nada de onde surgiram, e tudo voltou como dantes no quartel de abrantes. Isso é normalmente o que acontece com movimentos sem objetivos claros e, principalmente, lideranças hábeis. A Revolução Francesa só funcionou porque tinha um Robespierre com um plano de ação para o dia seguinte.

Os protestos de 2023 (e aqui incluo os acampamentos em frente aos quartéis e o quebra-quebra de ontem) também surgiram “contra o sistema”. A semelhança com 2013, além da foto de populares no telhado do Congresso, acaba aqui. Ao contrário de 2013, havia um objetivo claro e uma liderança definida, ainda que oculta. O objetivo era pedir e apoiar um golpe militar que reconduzisse ao poder o líder oculto do movimento, Jair Bolsonaro. Antes de continuar, vamos tentar construir a ponte que liga esses dois eventos separados por 10 anos.

Havia, como dissemos, um mal-estar generalizado contra a classe política. Este mal-estar só fez aumentar e explodir com as revelações da operação Lava-Jato. O movimento pró-impeachment de 2015/2016 foi uma extensão dos protestos de 2013 e, a seu exemplo, apartidário. Nesse movimento, havia uma minoria que pedia um golpe militar. Eram caminhões de som menores, que ficavam na periferia das manifestações. O núcleo do movimento, formado por grupos como o MBL e o Vem Pra Rua, defendia uma saída institucional, o que acabou ocorrendo. Mas os grupos golpistas estavam sempre ali, como relíquias de um passado distante.

O caráter apartidário desses movimentos era o sinal evidente de que qualquer político que se mostrasse desvinculado do sistema tinha grande chance de sucesso. Bolsonaro levantou essa bandeira com rara habilidade, encarnando os ideais dessa espécie de “limpeza” das instituições. O seu anti-petismo, na verdade, era um anti-sistema. Notem que a ojeriza dos bolsonaristas nunca se limitou ao PT. O PSDB sempre foi “o parceiro do PT”, o centrão só se movia por dinheiro, o STF só tinha bandidos, os governadores eram sabotadores. Nada prestava, a não ser Bolsonaro.

Jair Bolsonaro, portanto, foi o underdog que, como herói improvável, apareceu como o líder daquela franja golpista que mal aparecia nas manifestações pelo impeachment. Tendo uma parcela firme, ainda que minoritária, do eleitorado a seu lado, a lei da polarização fez com que Bolsonaro obtivesse o apoio de outras parcelas da população que não comungavam de suas convicções anti-sistema. Uma minoria, assim, tornou-se uma maioria, e ele foi eleito em 2018 e perdeu por pouco em 2022.

Chegamos, então, a janeiro de 2023. Bolsonaro perdeu as eleições e aquela franja se reuniu na frente dos quartéis, pedindo um golpe militar. E ontem, enfim, partiu para as vias de fato, uma alegoria perfeita da retórica anti-sistema. Cada parte do patrimônio público depredado é expressão física desse discurso.

Obviamente, as instituições brasileiras estão doentes. As manifestações de 2013 e a ascensão de um sujeito como Bolsonaro indicam alguma falha no sistema. No entanto, também é óbvio que qualquer “solução” por fora do sistema tem chance zero de prosperar. Quando muito, eventos como o de ontem só servem para deixar claro a que ponto pode chegar o discurso anti-sistema, o que somente fortalece o mesmo sistema, o contrário do objetivo declarado das manifestações.

Por fim, há um líder inconteste do ocorrido. Por omissão e abuso de mensagens dúbias, o ex-presidente levou essa franja golpista a acreditar que algo poderia acontecer. Na medida em que foi ficando claro que nada aconteceria, só restou o ato de desespero que testemunhamos ontem. Bolsonaro foi o político que empunhou a bandeira anti-sistema, e sua retórica se materializou na depredação de ontem. Ele é o responsável último, senão juridicamente, pelo menos, politicamente.

Mas, não nos iludamos, prender Bolsonaro e os responsáveis pela depredação de ontem não irá pacificar o país. É preciso entender o que gerou esse fenômeno. Caso contrário, estaremos fadados a repeti-lo.

Questionamentos sobre a carga tributária

Na superfície parece exatamente o mesmo fenômeno: motoristas protestando contra os preços dos combustíveis. Vivemos isto em maio.

Quando os caminhoneiros fizeram o seu movimento no Brasil, o preço dos combustíveis sofria dois choques: o preço do barril de petróleo superava os US$ 80 e o real havia se desvalorizado mais de 30% em relação ao dólar no ano. A Petrobras repassou esses dois choques para os preços dos combustíveis e estourou a insatisfação dos caminhoneiros.

Mas parece esquisito que o protesto francês tenha vindo à tona justamente quando o preço do petróleo atinge as mínimas do ano, por volta de US$ 50 o barril. Ocorre que, na França, o protesto não é contra o preço do combustível. Lá, o problema são os impostos que incidem sobre os combustíveis, com o objetivo de financiar energias limpas que não se sustentam economicamente.

Além disso, parece que a coisa se transformou em um protesto contra impostos de maneira geral. A perda de poder aquisitivo causada não pela inflação (que na França é baixíssima), mas pela alta carga de impostos, parece ter atingido algum limite.

A carga tributária da França era de 48% do PIB em 2015, segundo dados compilados pela Heritage Foundation. É uma das cargas mais altas do mundo. Superiores a este número temos apenas os paraísos do bem-estar social: Dinamarca (51%), Finlândia (54%), Noruega (55%) e Suécia (50%). Outros países europeus têm carga tributária semelhante. Por exemplo: Bélgica (48%), Alemanha (45%), Itália (44%), Áustria (43%). Por que então foi na França que explodiram esses protestos contra a carga tributária? Sei lá, talvez porque a França seja o berço das revoluções. O fato é que parece existir uma espécie de “malaise”, um mal estar geral com o tamanho da carga tributária. E isso em um país que entrega serviços públicos de primeira. Imagine no Brasil.

Estes protestos parecem-se mais com os protestos de 2013 do que com a greve dos caminhoneiros. O estopim foi o preço do ônibus, mas depois a coisa se tornou um protesto geral contra o governo e seus impostos muito mal gastos.

A carga tributária do Brasil, segundo o mesmo levantamento, era de 34% do PIB em 2015. Comparada com países semelhantes – África do Sul (27%’), Argentina (25%), México (24%), Colômbia (16%) – é excessivamente alta. É comparável com países como Japão (36%) e Reino Unido (34%). É bem mais alta, inclusive, do que a carga tributária dos Estados Unidos (26%).

De onde vem essa sensação (na verdade, uma constatação) de que a carga tributária não está adequada? Tributos nada mais são do que a transferência para o Estado de um grau de liberdade do indivíduo. Quando pagamos um imposto, delegamos ao Estado o que fazer com o fruto do nosso trabalho. Então, a revolta pode se dar em dois níveis: sobre as decisões do governo (que é quem opera as decisões do Estado) e sobre a própria delegação de poderes para o Estado. Na França, a coisa parece ser uma revolta contra o próprio conceito de imposto. No Brasil de 2013, os protestos eram mais na linha de exigir do governo serviços melhores em troca dos impostos.

O ponto disso tudo é que se trata de uma grande ilusão. Pagamos impostos para que o Estado supostamente patrocine políticas que beneficiem aqueles que não conseguem gerar receita por conta própria, como é o caso daqueles que tiveram azar na loteria da vida e nasceram em famílias mais pobres. O que ocorre, no entanto, é que o Estado é sequestrado por corporações dos mais diversos tipos, que agindo em nome dos “direitos adquiridos”, têm poder imenso sobre a máquina arrecadatória. Pagamos impostos para sustentar as aposentadorias dos mais ricos e os salários dos funcionários públicos, todos ganhando muito mais do que seus pares na iniciativa privada. Além de subsidiar os setores e indústrias que plantam seus lobbies em Brasília.

No Brasil, a coisa complica ainda mais pelo simples fato de sermos um país pobre. 34% de um PIB per capita medíocre significa uma arrecadação medíocre que, mesmo com toda a honestidade e competência do mundo, estaria longe de satisfazer o estado de bem-estar social prometido pela Constituição de 1988. Os líderes da socialdemocracia mentiram para o povo esse tempo todo, tentando nos convencer de que era possível ter serviços públicos de 1o mundo em um país com renda medíocre. E o tamanho do Estado para tentar esse objetivo enterrou de vez as chances do país de se tornar um país de renda alta.

Bolsonaro se elegeu prometendo diminuir a carga tributária. Vamos ver como se sai enfrentando as corporações. Não sou otimista. Os protestos na França parecerão um passeio no parque quando o país descobrir que diminuir a carga tributária e aplicar corretamente os impostos não são uma questão de boa vontade do governante de plantão.