Túmulo político

Durante tempos normais qualquer um pode ser presidente da República. Mas é durante as crises (e elas sempre vão existir) é que sabemos se uma pessoa é do tamanho da cadeira em que se senta.

Repito aqui a foto que postei na segunda-feira. Até nem acho que o pior pecado foi o claro desafio ao coronavírus. Entendo que o pior problema dessa foto não está nela: como fechei o ângulo, não dá pra ver o cartaz que pede o fechamento do Congresso e do STF. Claro que o cidadão comum tem direito de pedir o que for. Isso é uma coisa. Outra coisa é o presidente da República associar-se a uma manifestação que pede o fechamento do Congresso. Se isso não é golpista, preciso rever meus conceitos. Claro, sempre haverá gente que defenda o fechamento do Congresso como única solução para o Brasil. Mas daí o presidente da República associar-se a isso, vai uma distância amazônica.

Apesar do ataque ao Congresso ser, de longe, o pior dessa foto, ela ficará marcada como o símbolo da irresponsabilidade de Bolsonaro diante da crise do corona. Queira Deus que não tenhamos aqui o mesmo quadro caótico que a Itália está enfrentando, com gente simples morrendo nas portas dos hospitais por falta de leitos e respiradores. Queira Deus. Porque, se isso acontecer, essa foto será o túmulo político de Bolsonaro.

PS.: não adianta vir aqui dizer que outras autoridades foram também irresponsáveis porque se reuniram em grandes eventos e até “deixaram” o carnaval acontecer (!). Comecei este post dizendo que a cadeira da presidência da República é imensa, e poucos têm a bunda do tamanho certo para ocupá-la. Bolsonaro não é uma autoridade qualquer. Ele é o presidente da República, fato, inclusive, que os bolsonaristas gostam de lembrar a todo momento. Nessa posição, a autoridade tem um outro peso, incomparável. Se o Maia foi ou deixou de ir a um evento, ninguém dá a mínima, ele não representa nada. Os gestos do presidente da República, pelo contrário, são simbólicos, servem de guia para a nação. Mas Bolsonaro, infelizmente, está muito pequeno para a cadeira onde se senta.

Congresso carimbador

O presidente classificou as manifestações convocadas para o dia 15 como “espontâneas”, “bem-vindas” e “pró-Brasil”. Vejamos:

1) Esses atos podem ser tudo, menos espontâneos. O único ato espontâneo do qual participei foi logo após a divulgação do papo reto entre a ex-presidenta e o ex-presidiário. Dirigi-me espontaneamente à Paulista e lá encontrei uma multidão espontânea, sem nenhuma convocação. Todas as outras manifestações foram convocadas por grupos organizados. Esta não é diferente.

2) Quando Vera Magalhães revelou que o presidente havia repassado as convocações via WhatsApp para um grupo restrito, foi um deus-nos-acuda. Foi chamada de mentirosa para baixo. Ao chamar de “bem-vindas” as manifestações, o presidente não deixa a jornalista mentir sozinha. A revelação de Vera era grave, pois significava que o presidente estava avalizando um ato popular contra os dois outros poderes. Não é nada disso, dirão, trata-se de um ato “a favor do Brasil”. Se é isso, por que a irritação contra a jornalista?

3) O presidente e seus apoiadores têm um peculiar entendimento do que seja “pró-Brasil”. “Pró-Brasil” é tudo aquilo que está de acordo com a agenda do presidente, e contra o Brasil é tudo o que vai contra a agenda do presidente. Seus 56% de votos válidos no 2o turno ter-lhe-iam dado o dom de traduzir tudo o que os brasileiros querem. Nesse contexto, o Congresso deve ser um mero carimbador das decisões presidenciais. Este é o significado de fundo do “pró-Brasil”.

Bolsonaro afirma que aqueles que dizem que as manifestações são contra a democracia estão mentindo. Bem, os atos servem para mostrar aos congressistas que o povo está ao lado do presidente e, portanto, devem votar de acordo com a pauta do Executivo, para não atrapalhar o Brasil. Por mais que eu analise, não consigo distinguir entre um Congresso que aprova tudo o que o sai do Executivo de um Congresso fechado. O efeito final é exatamente o mesmo.

O Congresso venezuelano continua aberto e funcionado, aprovando tudo o que sai da caneta de Maduro. E não falta povo na rua para apoiar esse estado de coisas.

Democracia popular

Nem tudo o que é popular é democrático. Aliás, o paradoxo é que, na maior parte das vezes, não é.

A revolução francesa foi popular. Terminou no Terror.

A revolução bolchevique foi popular. Terminou no mais sanguinário regime da história.

A ascensão nazista foi popular. Terminou no maior regime genocida da história.

A revolução cubana foi popular. Terminou na mais longeva ditadura da história.

A ascensão chavista foi popular. Terminou na destruição de um dos países mais ricos da América Latina.

A democracia, pelo contrário, não é popular. Os pais da democracia moderna são os founding fathers da democracia americana, a mais longeva de todas as democracias, que permitiu o desenvolvimento da maior potência econômica e militar da história. A coisa é tão não popular, que o presidente pode ser eleito mesmo se não tiver a maioria dos votos. A representação política é levada a sério.

Quando ouço que manifestações, por serem populares, são democráticas, é preciso qualificar isso a que chamam de “democráticas”. Uma manifestação que tem como objetivo claro submeter o Congresso à discricionariedade do Executivo, pode ser popular, mas certamente não é democrática. O Congresso certamente tem muitos defeitos, assim como os tem o presidente e os membros do judiciário. Isso é uma coisa. Outra coisa é fazer “competição de popularidade”, como se o apoio das ruas representasse a palavra final em um regime democrático. Não é, como fica claro nos exemplos acima.

Enquanto a ditadura é um sistema que agrada alguns e cala outros (e, na maior parte dos casos, é chamada de “democracia popular”), a democracia representativa é esse sistema que desagrada a todos. Mas é o sistema que permite chegar a um mínimo denominador comum na sociedade. Não é pouca coisa.

Checks and balances

O ano é 2004.

O Congresso está parado, sentado em cima de projetos importantes para o país, como a reestatização da Vale, o controle dos meios de comunicação social, a capitalização de 1 trilhão de reais do BNDES e o congelamento de preços de tarifas públicas no país inteiro.

Os petistas, diante desse estado de coisas, convocam manifestação popular para pressionar o Congresso. O filho do presidente Lula diz que, se caísse uma bomba H sobre o Congresso, o povo iria comemorar. O tom dos petistas nas redes sociais (Orkut, no caso) é claramente golpista: o Congresso precisa obedecer o povo. Povo este que, no caso, se confunde com os petistas e aqueles que amam Lula de paixão, que são muitos.

Não, isso não aconteceu. Se tivesse acontecido, Lula teria sido derrubado bem antes de encerrar seu mandato. Por isso, ele optou pelo Mensalão.

Bem, de minha parte, entre uma ditadura sem Congresso ou o Mensalão, prefiro um regime em que o Congresso faz oposição ao presidente. Faz parte dos checks and balances de qualquer democracia madura.

Manifestações para quê?

Soube que há uma convocação para uma manifestação de apoio ao governo, para pressionar o Congresso a votar pautas importantes para o País.

No ano passado, manifestações também foram convocadas. Tinham como objetivo pressionar o Congresso a votar a Reforma da Previdência, recém enviada pelo governo, e o pacote anti-crime do Moro. Duas pautas importantíssimas para o futuro do País.

Este ano, as manifestações servirão para pressionar o Congresso a votar a Reforma Administrativa, de modo a controlar o segundo maior item de gasto da União. Não, acho que não é isso, o governo não enviou nenhuma proposta de reforma administrativa até o momento.

Então, as manifestações servirão para pressionar o Congresso a votar a Reforma Tributária, diminuindo o pesadelo de empresas e cidadãos diante de um sistema tributário dantesco. Não, não é isso, o governo também não enviou nenhuma proposta de reforma tributária para o Congresso até agora.

Então, devem ser manifestações para pressionar o Congresso a votar a Reforma Política, que finalmente vai fazer do Congresso uma Casa do Povo, representando fielmente a vontade popular. Não, o governo nem sequer está pensando em uma reforma política.

Ah, então devem ser manifestações para pressionar o Congresso a autorizar a venda de grandes estatais, abrindo caminho para um aumento brutal de produtividade da economia. Não, o governo não enviou ao Congresso nenhum pedido de autorização para privatizar uma estatalzinha sequer. (A Eletrobras está no Congresso, mas quem enviou foi o Temer).

Parece que essas manifestações têm algo a ver com emendas parlamentares ou algo do gênero, se não estou enganado. Não sei se vale a pena sujar minha camisa amarela.

Meu ditador favorito

Aos que pedem o fechamento do Congresso e do STF, uma pergunta: se Lula tivesse feito este movimento, teria o seu apoio? Afinal, o Congresso e o STF tinham os mesmíssimos defeitos.

– Ah, mas Lula resolveu o problema “comprando” o Congresso.

Sim. Outra alternativa, se ele não quisesse fazer aquilo, seria fechá-lo. Teria o apoio daqueles que defendem que a única solução hoje é fechar o Congresso? Ou o fechamento só vale para o meu ditador favorito?

Fazer pressão sobre o Congresso é da regra do jogo. Pedir o seu fechamento, não.

O novo comunista

William Waack já foi considerado um ícone da direita. Tanto que participou do filme sobre 1964 produzido pelo pessoal do Brasil Paralelo.

Agora, deve ser considerado kombista, isentão ou, anátema dos anátemas, comunista.

Sinto-me cada vez mais dentro do conto O Alienista.

Cálculo político

– Bolsonaro pede reunião com Toffolli.

– Flávio Bolsonaro elogia a política, os políticos e a negociação em pronunciamento no Senado.

– Maia e o Centrão decidem, ao que tudo indica, aprovar a MP da reforma ministerial.

– O porta-voz da presidência afirma que as manifestações de domingo devem ser a favor das reformas e não contra as instituições.

São os lances de hoje nessa peça onde cada ator estica a corda mas toma o cuidado de não arrebenta-la.

Faz-me lembrar, por contraste, os momentos finais de João Goulart. Imprudentemente, Goulart esticou a corda demais, acreditando que o povo estava com ele. Resultado: acabou arrebentando para o seu lado.

Bolsonaro e o Congresso, aparentemente, não estão dispostos a cometer o mesmo erro de avaliação. Por isso, esse “morde e assopra”. Hoje foi o dia do “assopra”. Tudo é cálculo político.

Restrição de poder

Em economia existe um negócio chamado “restrição orçamentária”, que significa mais ou menos o seguinte: você só pode gastar o dinheiro que você tem. Qualquer outro dinheiro terá que ser tomado emprestado. Trata-se de uma lei tão concreta quanto a lei da gravidade.

A esquerda costuma se insurgir contra esse negócio. No discurso da esquerda, é comum ouvir-se que basta “vontade política” para que o dinheiro surja com em um passe de mágica. Então, tudo é prioridade: saúde, educação das crianças, universidades, aposentadorias, tem que ter dinheiro pra tudo. A restrição orçamentária seria só uma desculpa daqueles que estão se locupletando com a situação, que não querem perder seus privilégios. Alguém com verdadeira “vontade política” colocaria as coisas nos seus devidos lugares. Vimos que, quando a esquerda chegou ao poder, não houve “vontade política” que fosse capaz de revogar a restrição orçamentária.

Pois bem.

Temos um fenômeno semelhante na política. Vou chamá-lo de “restrição de poder”. A restrição de poder consiste no fato de que ninguém é capaz de exercer o poder sozinho. O poder deve sempre ser compartilhado. Em nosso arranjo constitucional, por exemplo, o poder Executivo é exercido pelo presidente e o poder Legislativo é exercido pelo Congresso, ambos legitimamente escolhidos em eleições que seguem determinadas regras. Nesse arranjo, o poder Executivo até sugere mudanças nas leis, mas quem tem a caneta para aprovas as leis é o poder Legislativo. Para que o poder Executivo consiga fazer aprovar as suas sugestões no Congresso, deve repartir o seu poder com os congressistas, os donos da caneta. É assim que funciona a “restrição de poder” no Brasil e em grande parte das democracias.

Há pessoas de muito boa vontade que se insurgem contra essa restrição. Para elas, bastaria “vontade política” para que a restrição de poder simplesmente desaparecesse. Bolsonaro encarnaria essa “vontade política”.

Não, a “restrição de poder” não vai desaparecer, assim como a “restrição orçamentária” não vai desaparecer. Existe restrição de poder inclusive em ditaduras. Que o diga Maduro, que precisa repartir o butim com os militares. Achar que “vontade política” irá isentar o Executivo de repartir o poder é uma ilusão. A mesma que acomete a esquerda quando ignora a “restrição orçamentária”.

O Centrão é o atual demônio da política brasileira, o conjunto de deputados que impede o governo de governar para o bem do Brasil. O curioso é que o Centrão não é oposição. Oposição é aquela parcela de deputados que não está disposta a negociar pedaços de poder em troca de apoio. Se o Centrão fosse oposição, não estaríamos perdendo nosso tempo discutindo. Não vejo ninguém protestando contra os 140 deputados do PT, PDT, PSOL. O alvo dos protestos é o Centrão. E por que?

Porque, por algum motivo, exige-se do Centrão apoio sem compartilhamento de poder. Mas isso vai contra a lei da “restrição de poder”. Não tem porque o Centrão votar com o governo se não é sócio do governo. Essa é a restrição. E não tem “vontade política” que dê jeito nisso.

Fora da política não há salvação

“Ele sangrou por ti!”

Quem me acompanha sabe que afirmei várias vezes que o petismo havia se tornado uma seita, no sentido de formar um grupo de iniciados que idolatram um messias e rechaçam qualquer crítica como se fosse uma heresia.

Pois bem, essa convocação confirma o que já vinha ficando claro há algum tempo: os bolsonaristas estão também formando uma seita. Lançam seus “fatwa” sobre todos aqueles que ousam sair um milímetro que seja da fidelidade devida ao seu mestre. A lista é longa, e inclui desde aliados de 1a hora até expoentes da direita brasileira. Todos uns traidores.

Tenho acompanhado as redes bolsonaristas, até para entender o que se passa. Existe uma ilusão de que Bolsonaro será capaz, com a força do “povo” nas ruas, dobrar o Congresso para aprovar a sua pauta. O mesmo “povo” que era monopólio da outra seita, o petismo. Deu no que deu.

Lamento trazer más notícias: não tem o mínimo risco de dar certo. Achar que aquele povo todo que saiu nas ruas para pedir o impeachment da Dilma vai serrar fileiras em torno de Bolsonaro é uma ilusão de ótica. Ser contra o PT não é o mesmo que ser a favor de Bolsonaro. São duas coisas, aliás, bem diferentes.

Neste caso, estou com a Janaína, a próxima, provavelmente, a ser alvo de um fatwa: não faz sentido uma manifestação a favor do governo. Isso é coisa de chavista, de peronista, de petista.

O governo tem em mãos todos os instrumentos de poder dentro dos limites de uma democracia, onde o presidente não é o dono da verdade, o possuidor da chave do bem e do mal, o messias. Ele só precisa fazer política. Não a “nova” ou a “velha”, apenas política.

“Ele sangrou por ti!”. Uma mensagem messiânica, não política. E fora da política, não há salvação.