Garantia de trabalho só em Cuba

Os médicos cubanos que querem ficar no Brasil reclamam que o governo não lhes dá “garantia de trabalho”.

Amigos cubanos, bem-vindos ao mundo capitalista, onde o governo não dá garantia de trabalho a ninguém. Que o digam os 12 milhões de desempregados brasileiros!

Os médicos cubanos estão enfrentando um dilema típico da liberdade que tanto reclamam: suas decisões implicam riscos e um deles, no caso, é o de ficar desempregado por um tempo. É o mesmo risco assumido por qualquer indivíduo no Brasil, ou em qualquer outro país capitalista, que resolve mudar de emprego ou empreender. Em Cuba não há este risco, mas também não há esta liberdade de escolha.

Com todo respeito, o Ministério da Saúde tem mais o que fazer do que garantir emprego a médicos cubanos. Se o edital que convoca médicos brasileiros não for suficiente, então médicos estrangeiros serão convocados. E os cubanos entrarão na fila, como quaisquer outros. Se este for um risco muito grande, sempre há a alternativa de voltar a Cuba, com tudo o que isso implica em termos profissionais e pessoais. Trata-se de um cálculo de risco/retorno a que estão acostumados todas pessoas que vivem em sociedades capitalistas.

A julgar pelo fluxo de imigrantes da ilha dos irmãos Castro, a maioria decide pelo risco do mundo capitalista. Pois onde não existe risco, também não existe retorno.

O caos sem os médicos cubanos

O Valor Econômico de hoje trás dados específicos de uma cidade onde a secretaria de saúde diz que haverá caos se os cubanos forem para casa.

Santa Luzia, na região metropolitana de BH, tem 218 mil habitantes e 15 médicos cubanos, o que perfaz 0,07 médicos por mil habitantes. Mesmo se considerarmos apenas os 58 mil habitantes que a secretaria diz que serão afetados, temos uma relação de 0,26 médicos por mil habitantes atendidos. Infelizmente não há dados sobre o total de médicos da cidade, mas para uma média brasileira de 2,18 médicos por mil habitantes, parece não ser suficiente para piorar um caos que já deve existir hoje.

Estes números servem para corroborar o que disse no meu post de ontem: os médicos cubanos mal fazem cócegas nas terríveis estatísticas da saúde pública brasileira.

Também corroborando meu post de ontem, o Valor trás histórias comoventes de pacientes atendidos pelos cubanos, para nos convencer de que farão falta. Sim, para essas pessoas sem dúvida farão falta. Elas tiraram o bilhete de loteria de ter um médico cubano disposto a trabalhar em regime de semiescravidão. Agora, este bilhete lhes será retirado.

A tragédia já existe, nada vai mudar

Cuba vai retirar os seus médicos do Brasil. Segundo os “especialistas” em saúde pública, isto é uma tragédia de grandes proporções que se abaterá sobre os mais pobres, que não tinham acesso a médicos e passaram a ter depois do programa patrocinado pelo PT.

Será isso mesmo? Vejamos.

O último dado no site do Programa Mais Médicos, de 2015, indicava a participação de 18.240 médicos no programa. Destes, cerca de 8.500 são cubanos, o que totaliza cerca de 45% do total do programa.

Por outro lado, no final de 2017, o Brasil contava com 451.777 médicos, segundo censo patrocinado pelo Conselho Federal de Medicina. Os médicos cubanos, portanto, representam 1,9% do total de médicos do país.

Colocando proporcionalmente em termos populacionais, que é normalmente como se mede a cobertura de médicos em um país: o Brasil conta com 2,18 médicos por 1.000 habitantes. Com os cubanos, este número vai para 2,22. Um acréscimo de apenas 0,04. A média dos países da OCDE é de 3,4. Como vimos, os médicos cubanos não fazem nem cócegas nas necessidades do país.

– Ah, mas o problema não é a quantidade, é a distribuição dos médicos pelo país.

Sem dúvida! Segundo o mesmo censo do CFM, Brasília tem 4,35 médicos por mil habitantes (mesmo índice da Suíça), enquanto o Maranhão conta com apenas 0,87 médicos por mil habitantes, um índice africano. Então, os médicos cubanos vieram para suprir esta deficiência de distribuição.

Mas, cuidado com as estatísticas! Segundo vários reportagens por aí, os médicos cubanos estariam beneficiando uma população de 65 milhões de brasileiros, supostamente aqueles com menor cobertura. Isto significa 0,13 médicos/mil habitantes adicionais. Considerando que esses 65 milhões tenham uma cobertura equivalente à do Maranhão, levantada pelo CFM, isto significaria um aumento de quase 15% no número de médicos para este público. Só que a cobertura continuaria (como continua) sendo de país africano.

Em resumo, a saída dos cubanos do Brasil não representa uma tragédia humanitária. A tragédia continua existindo, com ou sem os médicos cubanos. Claro que as reportagens vão entrevistar aquela comunidade que dependia daquele médico cubano, tão bom, tão humano. Sim, há histórias comoventes. Mas para cada história tocante, há outra dez ou vinte de comunidades que continuaram sem ver a cor de um avental branco. A tragédia da saúde pública brasileira não se resolve com golpes publicitários, como foi o desembarque dos médicos cubanos usando justamente aventais brancos. O Brasil é um país continental, e não serão 8 mil médicos que resolverão o problema.

A questão de fundo e que sequer foi arranhada pelo Mais Médicos é porque a distribuição dos médicos é tão desigual no Brasil. Se conseguíssemos que 10% dos médicos brasileiros que hoje estão em regiões mais favorecidas se deslocassem para regiões menos favorecidas, isto significaria um contingente equivalente a 5 vezes os médicos cubanos. Por que os médicos cubanos topam ir para regiões carentes e os brasileiros não?

A resposta é simples: os cubanos são funcionários do governo de Cuba e obedecem às ordens de seu chefe. Com um detalhe: não há outro emprego possível. Ou trabalha para o governo ou… bem, melhor nem pensar. Quando o Ministério do Trabalho autua empresas por condições de trabalho similares à escravidão, normalmente o que ocorre é que a empresa arma uma espécie de armadilha para o funcionário, obrigando-o a trabalhar na empresa para pagar dívidas. Não tenho dúvidas de que o Ministério do Trabalho, sob os mesmíssimos critérios, autuaria o governo de Cuba por trabalho similar à escravidão com relação aos seus médicos.

Então, somente com “contratos de trabalho” desta natureza foi possível preencher, mal e mal, as vagas do Mais Médicos. Há algo de muito errado nisso. Espanta-me que “especialistas” encarem a situação dos médicos cubanos como “normal” e até “essencial” para a saúde pública brasileira. Se as mesmas condições de trabalho fossem oferecidas aos médicos brasileiros (25% da bolsa recebida retida pelo governo, proibição de atuar em qualquer outra atividade, família presa em uma ilha) um clamor popular se levantaria. Mas como se trata da gloriosa Revolução Cubana, fica tudo por isso mesmo.

Outro ponto importante, e que merece reflexão, é a formação desses médicos. O programa Mais Médicos não exige a revalidação do diploma obtido por médico no exterior. Ou seja, o sujeito pode atuar como médico no território brasileiro sem ter sido reconhecido oficialmente como médico pelas autoridades competentes locais.

Ok, talvez essa seja uma saída para a falta de médicos: relaxar as exigências na formação. Por exemplo, formandos que não passassem no exame do Cremesp ou dos outros conselhos regionais poderiam trabalhar apenas em regiões com cobertura de até 1 médico por mil habitantes. Médicos sem exame de validação por médico sem exame de validação, prefiro dar chance aos estudantes brasileiros do que aos cubanos. Eu particularmente acho que esta seria uma alternativa interessante para prestar atenção básica a populações carentes, que não precisam de grandes especialistas.

– Ah, mas é muito arriscado deixar a saúde das pessoas nas mãos de médicos com formação fraca.

Pois é. Os médicos cubanos não são obrigados a prestar o Revalida. Quem garante a qualidade? Fidel Castro? Há uma lenda urbana que reza que os médicos cubanos estão entre os melhores do mundo. Se é assim, por que não podem prestar o Revalida?

O Mais Médicos, como tudo o que foi feito no governo do PT, foi mais uma jogada de marketing do que uma solução estrutural para o problema da saúde pública brasileira. E, de quebra, ajudou as finanças de um governo amigo. O fim dessa vergonha vai causar transtornos localizados, mas não será nem de longe a tragédia que dizem, como espero ter mostrado através das estatísticas. E, quem sabe, permitirá ao novo governo pensar em formas mais estáveis e estruturais de distribuir os médicos pelo país.