Mercosul: o fim de algo que nem começou

O governo Lula está preocupado: Javier Milei pode, entre outras barbaridades, travar o Mercosul.

Seria um coisa muito triste, não fosse o fato de que o Mercosul já está travado há muito tempo. No gráfico abaixo, mostro a corrente de comércio (soma das exportações com as importações) do Brasil com o Mercosul, comparada com a corrente de comércio com a União Europeia, China e Estados Unidos.

Podemos observar como, em 1997 (primeiro dado disponível), a corrente de comércio com o Mercosul era semelhante à corrente de comércio com Europa e EUA, enquanto com a China era um traço. Vinte e cinco anos depois de muita integração regional e tarifas favorecidas, a corrente de comércio com o glorioso Mercosul é menos da metade da corrente de comércio com EUA e Europa, e 25% da corrente de comércio com a China.

Portanto, não é preciso que o novo presidente libertário da Argentina acabe com o Mercosul. Essa tarefa já foi devida e laboriosamente cumprida pelos presidentes de Brasil e Argentina que ocuparam os cargos nos últimos 25 anos.

Perda de tempo e energia

Não sou um grande conhecedor da teoria econômica. Somente observo atentamente o comportamento dos agentes econômicos e tiro minhas conclusões. Minha premissa básica é que o teste da realidade é o definitivo para entender se uma teoria funciona ou não.

Com relação à pretendida moeda única do Mercosul, que serviria para as transações comerciais entre os países do tratado, observo que, hoje, as transações ocorrem em dólares. Ou seja, argentinos não aceitam reais e brasileiros não aceitam pesos argentinos como pagamento por suas respectivas exportações. Isso é um fato, não há o que discutir.

E por que isso acontece? Provavelmente porque o BC brasileiro não compra pesos argentinos para as suas reservas, nem tampouco o BC argentino compra reais para as suas reservas. E por que os BCs dos dois países não aceitam as moedas de seus vizinhos? Porque sabem que são inúteis no mercado global para comprar títulos de países sérios para compor suas reservas internacionais. Nossos papéis pintados não têm curso internacional.

E por que uma moeda do Mercosul, lastreada nesses papéis pintados, seria aceita globalmente? Mistério. Os exportadores de ambos os países receberiam o Sur e fariam o que com isso? Os BCs locais comprariam a nova moeda? E fariam o que com essa moeda? O Sur faria parte das nossas “reservas internacionais”? Medo.

Esse tipo de ideia sempre me lembra o episódio do South Park que já citei aqui, em que os garotos vão até uma caverna de duendes para aprender como as empresas funcionam, e os duendes apresentam um plano infalível para ficarem ricos:

Fase 1: juntar cuecas

Fase 2: ?

Fase 3: ficar rico

A falta da fase 2 não intimida os duendes, que continuam a acreditar piamente em seu plano. Aqui, o mesmo:

Fase 1: estabelecer o Sur

Fase 2: ?

Fase 3: a indústria dos países se desenvolve

A ligação de uma coisa com a outra é a mesma de juntar cuecas esperando ficar rico. Mas os duendes não se deixam vencer.

Não é a primeira vez que macaqueamos ideias sem ter condições para tanto. Em 2008, o governo Lula criou o Fundo Soberano para receber os excedentes da exportação de petróleo do pré-sal, quando ainda estava a milhares de metros debaixo do mar. A ideia teve um custo fiscal não desprezível, e só serviu para fazer parte da mutreta da capitalização da Petrobras. Foi extinto em 2019 e, em toda a sua existência, não recebeu um centavo dos tais “excedentes de exportação”.

O pior dessas ideias não são nem os seus efeitos econômicos, que costumam ser nulos. O problema é a quantidade de energia e homens-hora desperdiçados em projetos inúteis, que tiram o foco de funcionários públicos que, de outra forma, poderiam estar pensando em como resolver problemas bem mais importantes para o desenvolvimento do país.

A moeda única do Mercosul

Fernando Haddad e um outro economista ligado ao PT nos brindaram com um artigo na Folha de hoje defendendo o estabelecimento de uma moeda única da América do Sul. Pode parecer o Euro, mas, depois que se lê o artigo, é mais parecido com os SDRs (Special Drawing Rights), uma espécie de “moeda” do FMI, lastreada nas moedas dos seus países-membros mais ricos. O SDR serve como uma espécie de “unidade de conta” para facilitar transações do FMI. Os EUA, Zona do Euro, China, Japão e Reino Unido depositam uma quantia de suas próprias moedas para que o FMI faça as suas políticas. Por exemplo, recentemente o FMI fechou um novo pacote de ajuda para a Argentina no valor de 31,4 bilhões de SDRs, o que equivale a mais ou menos US$ 44 bilhões.

E para que serviria essa moeda sul-americana? Segundo os autores, “um projeto de integração que fortaleça a América do Sul, […] é capaz de conformar um bloco econômico com maior relevância na economia global e conferir maior liberdade ao desejo democrático, à definição do destino econômico dos participantes do bloco e à ampliação da soberania monetária”. Trocando em miúdos esse palavrório: uma moeda única faria a mágica de nos elevar à condição de superpotências econômicas, a ponto de termos liberdade de fazermos o que bem entendermos com nosso destino (“soberania monetária”).

Para entender este ponto, vale listar os diversos exemplos listados pelos autores, e que demonstram como países com moedas fracas são vulneráveis e como uma moeda forte permite ter margem de manobra:

• Os EUA e a Europa se valeram do poder de suas moedas para impor severas sanções contra a Rússia;

• Em 1979, os EUA elevaram os juros para “reafirmar o poder do dólar”, quebrando todos os países que tinham dívidas em dólar (na verdade, o Fed elevou as taxas de juros para combater a inflação);

• Em 2008, a força do dólar teria permitido ao Fed sustentar os preços no mercado financeiro;

• Durante os anos 90, sucessivas crises globais levaram diversos países latino-americanos a recorrer ao FMI, muitas vezes abrindo mão da soberania sobre suas políticas;

• Vários países recorreram à dolarização de suas economias, renunciando à sua soberania monetária.

A moeda única da América do Sul serviria, portanto, para fortalecer as economias da região, levando-as à “soberania monetária”.

Temos aqui o típico caso do rabo abanando o cachorro. Vou aqui copiar o parágrafo do artigo que é chave para entender o problema dessa ideia:

“A utilização do poder da moeda em âmbito internacional renova o debate sobre sua relação com a soberania e a capacidade de autodeterminação dos povos, em especial para países com moedas consideradas não conversíveis. Por não serem aceitas como meio de pagamento e reserva de valor no mercado internacional, seus gestores estão mais sujeitos às limitações impostas pela volatilidade do mercado financeiro internacional”.

Estou lendo neste momento o livro de Gustavo Franco, “A Moeda e a Lei”. Trata-se de um verdadeiro tratado sobre a moeda brasileira, sob o ponto de vista das diversas legislações que se sucederam ao longo da história. Fica claro, ao longo do livro, os graves problemas de governança da moeda nacional, e que acabaram por levar às várias reformas monetárias ao longo da história e à hiperinflação. A moeda brasileira sempre foi tratada como linha auxiliar dos grandes programas de fomento governamental, submetendo o orçamento público aos interesses privados de políticos e de setores econômicos, sem qualquer tipo de limitação. A moeda brasileira nunca foi respeitada pelos nossos representantes.

Voltando ao parágrafo destacado acima, o problema não é que os países da região tenham um déficit de soberania porque suas moedas sejam fracas. É justamente o oposto: as moedas são fracas porque os países da região abrem mão de sua soberania em favor de grupos privados. Ao não levar a sério as finanças públicas, esses países sabotam a própria moeda.

É interessante como não há, ao longo de todo o artigo, uma mísera menção à disciplina fiscal. O Euro só funciona porque a Alemanha, fanática pela disciplina fiscal, ancora a zona do Euro. Há regras duras que devem ser obedecidas por todos os seus membros, o tratado de Maastricht. Em sua pior crise, em 2011, vários países da zona do Euro ficaram ameaçados de sair da moeda única. A Grécia, o país em pior situação fiscal, teve que fazer um ajuste draconiano, cortando aposentadorias e outras despesas públicas para se enquadrar. Era isso ou sair. Os gregos, sob a liderança de um político de esquerda, escolheram a disciplina à hiperinflação que certamente se seguiria se escolhessem voltar ao dracma. Uma moeda estável tem seus custos, e não são pequenos.

A ideia de que uma moeda única seria capaz de “oferecer aos países as vantagens […] de uma moeda com maior liquidez, válida para relações com economias que, juntas, representam maior peso no mercado global” é o mesmo que acreditar que dois bêbados juntos fazem uma pessoa sóbria.

Claro que precisaríamos de uma espécie de “Câmara Sul-Americana de Compensação”, como chamam os autores do artigo ao esquema em que os países superavitários ajudariam os países deficitários. O duro é encontrar países superavitários na região. Oi Chile, já vai embora, fica mais um pouco, vamos conversar…

Enfim, a ideia por trás do SUR (o nome dado à essa moeda sul-americana) é uma espécie de pensamento mágico, em que a união monetária teria o condão de integrar a região e torná-la mais forte diante do mundo. Como brincou meu amigo Cleveland Prates, que me enviou esse artigo, resta saber se a sede do Banco Central da América do Sul ficaria em Buenos Aires ou Caracas.

As várias faces de uma nota conjunta

Vamos dividir este post em duas partes. Na primeira, comentarei o aspecto econômico. Na segunda, a questão política envolvida nessa nota conjunta.

Os resultados do Mercosul

Antes de mais nada, vamos à íntegra da nota conjunta:

Comecemos pelo fim: “é necessário manter a integridade do bloco, para que todos os seus membros desenvolvam plenamente suas capacidades industriais e tecnológicas…”

Bem, dá vontade de chorar. O Mercosul foi fundado em 1991, há 30 anos portanto. São 30 anos de protecionismo comercial conjunto. O que conseguimos com isso? Onde está o desenvolvimento das “capacidades industriais e tecnológicas” das indústrias protegidas?

Temos uma tara por fabricar tudo aqui. Lembro até hoje do depoimento de Marcelo Odebrecht a respeito da Sete Brasil, a empresa criada por Dilma para fabricar sondas de exploração de petróleo. Segundo Marcelo, a empresa não parava em pé, era inviável do ponto de vista econômico. Mas sabe como é, era desejo do governo ter “autossuficiência” nesse campo. Não tínhamos como competir com os coreanos, mas a Petrobrás foi obrigada a pagar mais caro pelas sondas, subsidiando uma operação inviável.

Temos produtos notoriamente defasados e caros. As próprias indústrias têm dificuldade de manter operações de ponta aqui porque não conseguem importar a preços competitivos. Somos um dos países mais fechados do mundo. Em artigo no Valor Econômico do dia 31/05 (Por que a indústria não exporta?), Edmar Bacha lembra de uma entrevista do então chairman da Renault-Nissan, Carlos Ghosn, em que lhe perguntaram porque a Renault fabricava carros com tecnologia mais avançada na Europa do que no Brasil, ao que ele respondeu: “deixem-me importar os componentes e os brasileiros terão carros tão avançados aqui quanto na Europa”.

Bacha invoca o conceito de “crescimento empobrecedor”, desenvolvido nos anos 60 pelos economistas Harry Johnson e Jagdish Bhagwati: as multinacionais, ao se instalarem no país, exploram o mercado doméstico com produtos mais caros e de pior qualidade, porque estão protegidos pelas tarifas de importação. Mas não conseguem exportar, justamente porque os produtos são mais caros e de pior qualidade. Temos então uma indústria isolada do resto do mundo, o que dá origem ao aparente paradoxo: mesmo com o câmbio extremamente desvalorizado e os juros em seu ponto mais baixo da história, a indústria não consegue exportar mais.

Mas quem defende o protecionismo quer uma indústria que produza aqui, não uma indústria que exporte. Assim, teremos “maior valor agregado” e “empregos de qualidade”, o mantra sempre entoado. Sim, com o consumidor pagando mais caro no final, seja pelos preços mais altos, seja pelos produtos de qualidade inferior.

Mas, pelo menos, com essa proteção tarifária, o fluxo de comércio entre os países do Mercosul deve ter bombado. Afinal, as alíquotas são privilegiadas para a importação e exportação entre esses países. Vejamos, então o gráfico abaixo:

Em 1997, a corrente de comércio (exportações + importações) entre o Brasil e os países do Mercosul representava quase 18% de toda a corrente de comércio brasileira. Entre 1997 e 2002, essa participação caiu para 10%, nível em que ficou pelos 15 anos seguintes. A partir de 2017, a participação do Mercosul começou a cair novamente, atingindo, em 2020, pouco mais de 6%, um terço do que era há 23 anos.

Esse gráfico é elucidativo, inclusive, para desmistificar uma crença generalizada, a de que foi o crescimento do comércio com a China o fator que fez encolher a participação do comércio com outras regiões. Não é o que vemos. O comércio com a China bombou a partir de 2003, com o início do superciclo das commodities. No entanto, a participação do comércio com o Mercosul já havia caído antes desse ano, o que indica um problema em qualquer outro lugar. Vejamos o gráfico abaixo:

Observe como a corrente de comércio com a China sobe de maneira espetacular somente depois de 2002, mas a corrente de comércio com o Mercosul cai de cerca de US$ 200 bilhões em 1997 para US$ 100 bilhões em 2002. O que aconteceu nesses 5 anos? Se lembrarmos, foi o período que compreendeu várias crises que atingiram em cheio os emergentes: crise dos tigres asiáticos, crise da Rússia, crise do Real (desvalorização) e, finalmente, a crise do Austral, com o abandono da paridade cambial com o dólar, que culminou, no final de 2001, com a renúncia de De La Rua e sua fuga da Casa Rosada de helicóptero. Enfim, o fluxo de comércio declinou por problemas internos dos países da região, não tem nada a ver com tarifas ou a falta delas.

O grande ciclo de commodities, a partir de 2003, por outro lado, fez com que a corrente de comércio brasileiro atingisse outro patamar. O comércio com a China decolou, mas não só. O comércio com Europa, EUA e Mercosul também cresceu de maneira relevante. Não houve, nesse período, nenhuma mudança tarifária relevante. Mais um exemplo de que é a economia que determina o fluxo de comércio, não as tarifas.

O pico do comércio com o Mercosul se deu em 2011, com quase US$ 500 bilhões de corrente de comércio. Hoje, 10 anos depois, temos metade desse valor, fruto dos problemas dos países da região nesta década. O comércio com Europa e EUA também caiu durante o período, mas em muito menor magnitude. Enquanto o comércio com a Europa foi o dobro em 2020 em relação a 1997 e com os EUA cresceu 150% no mesmo período, o comércio com o Mercosul foi apenas 25% maior em 2020 comparado com o nível de 1997. E note que nem estamos falando da China.

Enfim, o Mercosul, como zona de livre comércio com o objetivo de alavancar o poder industrial da região foi um rotundo fracasso. Podemos tentar continuar fazendo o mesmo que fizemos nos últimos 30 anos, ou podemos tentar mudar a estratégia. Neste ponto, entra a nota conjunta de Lula e FHC.

A questão geopolítica da nota

Vejamos novamente a íntegra da nota conjunta:

O que os dois ex-presidentes querem dizer é que não é o momento de chutar cachorro morto. A Argentina passa por (mais um) momento muito difícil, está em estado de calote com FMI e faltam dólares. Não é o momento, portanto, de agir pensando somente em si mesmo, mas sim, o momento de mostrar solidariedade com los hermanos.

Então, a questão é essa: queremos/devemos continuar associados a um país que está amarrado a um problema do qual não quer sair? A eleição de Alberto Fernandez foi o sinal mais claro de que a sociedade argentina não quer resolver os seus problemas. O governo brasileiro deve pensar no melhor para o seu próprio povo ou abrir mão de crescer mais em solidariedade ao vizinho?

Lula e FHC claramente fizeram a opção pela solidariedade. Lula, além disso, acredita que tarifas fazem bem para a economia, FHC nem tanto. Mas as considerações geopolíticas suplantaram suas eventuais reservas com relação à efetividade desse tipo de barreira ao comércio.

Mas é o aspecto político o mais interessante dessa nota conjunta.

A questão política da nota conjunta

A nota foi assinada somente por Lula e FHC. Assinaram na condição de “ex-presidentes”. Resta saber por que não chamaram Collor, Sarney e Dilma para assinarem junto. Aliás Sarney foi procurado pelo embaixador argentino para ajudar a pressionar o governo brasileiro.

Mas, por algum motivo, Sarney não assinou a tal nota conjunta. A ausência de Sarney (e de Collor, que afinal foi quem assinou o Tratado de Assunção, que estabeleceu o Mercosul) demonstra que a nota não é um “manifesto de ex-presidentes”, mas de Lula e FHC. Em outras palavras, a nota é escrita por “ex-presidentes”, mas não é uma “nota de ex-presidentes”. É só uma nota de Lula e FHC.

Ainda na hipótese de ter sido uma “nota de ex-presidentes”, a ausência de Dilma grita. Dilma, de todos os ex-presidentes, talvez tenha sido a mais entusiasta dessas políticas protecionistas. E a mais próxima dos governos Kirshner. Por que, afinal, Dilma não assina a “nota dos ex-presidentes”?

A resposta é simples: para os planos eleitorais de Lula, é essencial cancelar Dilma. Como naquelas fotos do regime stalinista, a ex-presidenta deve ser apagada. Ela serviu como símbolo do “golpe” de 2016, mas isso já passou. Hoje, é apenas o símbolo de um governo desastroso que os brasileiros querem ver pelas costas. Lula sabe que trazer Dilma para junto de si é um tiro no pé de qualquer pretensão eleitoral. Esta nota, portanto, não é geopolítica, nem ao menos política. Trata-se de uma nota eleitoral.

A nota conjunta e as eleições de 2022

Não sabemos quem procurou quem para cometer a tal nota conjunta. Mas aposto o meu mindinho que a ideia foi de Lula, o único que ganha alguma coisa com essa nota. FHC é o presidente de honra do PSDB. Uma espécie de rainha da Inglaterra no partido, mas, a exemplo da rainha, tem o seu peso institucional. Ao novamente jogar água no moinho de Lula, FHC mina mais um pouco as já ínfimas possibilidades de uma terceira via.

Com essa nota, Lula reforça sua imagem de “estadista” e, de quebra, traz junto de si, novamente, alguém que deveria estar liderando as conversas para termos uma alternativa entre o ex-capitão incendiário e o ex-presidiário.

Hoje, FHC escreve um artigo no Estadão. Pouco importa o que escreveu. O único presidente eleito pelo PSDB tornou-se o maior troféu de Lula. O que ele diz, de agora em diante, é irrelevante.

A placa Mercosul e a queima das bandeiras estaduais

Em novembro de 1937, por ocasião da Festa da Bandeira, ocorreu um evento inusitado: a queima das bandeiras estaduais, em uma solenidade oficial presidida pelo então ditador Getúlio Vargas. As bandeiras estaduais haviam sido extintas pela Constituição recém-aprovada, e foram substituídas na solenidade pela bandeira nacional. A ideia era fixar a “unidade nacional” em contraposição à caótica política dos Estados que vigia até então. Conquanto a centralização do poder fosse muito útil a um ditador, também o foi para os presidentes dos períodos democráticos posteriores. Tudo depende de Brasília, Brasília manda no Brasil.

Lembrei disso quando li a notícia de que a nova placa Mercosul passará a ser obrigatória em todo território nacional a partir do dia 31. Não vou aqui discutir a letra no meio dos números, ou a cor da letra que torna difícil sua leitura. Meu ponto é outro.

Essa placa me traz uma profunda tristeza. Quando viajo pelo Brasil, uma das coisas mais interessantes é observar as placas de outros Estados e cidades nos restaurantes de estrada. Puxa, esse veio de Macapá, viajou muito! Nossa, meu vizinho de São Paulo aqui, no Mato Grosso. Também gosto de ver placas de outros lugares aqui na minha cidade, turistas que vieram de carro para cá. Você até pega mais leve no trânsito com forasteiros, afinal, não têm obrigação de conhecer todos os caminhos…

Agora não. Com a nova placa seremos todos Brasil. Ora, eu já sei que somos todos Brasil, não preciso de uma placa para informar isso. O nome “Brasil” na placa é de uma inutilidade atroz, em um país continental onde 99,9% dos motoristas dirigem dentro de suas fronteiras. Perdemos o gostinho do regional em nome de uma “unidade nacional” que até tem o seu sentido, mas não em uma placa de automóvel. A centralização em Brasília ganha mais um componente. Essa nova placa é a queima simbólica das bandeiras dos Estados.