O discurso golpista de Lula

O que é um golpe?

Esses conceitos políticos são sempre difíceis de definir, mas vou arriscar: golpe é qualquer mudança (ou permanência) do mandatário de uma nação fora do devido processo legal. Uma mudança do regime pode ocorrer também, mas não é condição necessária. A parte “tricky” dessa definição está no termo “devido processo legal”.

A deposição de Jango, em 1964, revestiu-se de toda a aparência do processo legal. O Congresso aprovou e o STF referendou a troca do mandatário. Foi um golpe ou não?

Lula e os petistas se apegam à suposta fragilidade das “pedaladas fiscais” como caracterização do crime de responsabilidade que embasou o impeachment de Dilma. Assim, sem crime de responsabilidade, todo o processo estaria viciado e, portanto, o devido processo legal não teria sido seguido. Portanto, golpe.

Já gastei rios de bits nesta página para contrapor esse argumento. Meu ponto é outro: ou bem quem apoiou o impeachment é golpista, ou Lula e os petistas são golpistas. Não há meio termo.

O jurista Miguel Reale Jr, um dos autores do pedido de impeachment de Dilma Roussef, e que apoiou Lula no 2o turno contra Bolsonaro, afirma que as declarações de Lula “não ajudam o Brasil”. Dr. Reale, vou mandar aqui a real: Lula está chamando o senhor de golpista. Sim, golpista, igualzinho os depredadores dos três poderes. Segundo Lula, todos os que apoiaram e aprovaram o impeachment praticaram o mesmo ato que os vândalos de Brasília, aliás, chamados frequentemente de “golpistas”.

Como eu, assim como o Dr. Reale, acredito que o impeachment seguiu o devido processo legal, não há outra alternativa a não ser chamar Lula pelo seu devido nome: golpista. É Lula que quer desvirtuar o devido processo legal para manter o poder. Só não o fez em 2016 pelo mesmo motivo que os golpistas de 2023 não o fizeram: falta de condições objetivas. Mas o seu discurso não deixa margem a dúvida.

Dr. Reale e todos os que votaram em Lula para “salvar a democracia” fariam bem em reconhecer que esse discurso é bem mais do que uma “narrativa que não ajuda o País neste momento”. Não. Trata-se de um discurso golpista. É preciso dar nome aos bois.

Esse discurso demonstra, mais uma vez, que Lula faz parte do problema da nossa democracia, não de sua solução. Quanto antes os democratas do país entenderem isso, melhor.

Onde está o recheio?

Em uma redação, quando se quer dar uma ideia de amplitude, pode-se usar a expressão “de… até…”. Assim, por exemplo: “o reino animal é riquíssimo, inclui de micróbios até as gigantescas baleias”. Se queremos ir além, dando uma ideia de diversidade, incluímos o verbo “passando por”. A sentença fica, então, assim: “o reino animal é riquíssimo, inclui de micróbios até as gigantescas baleias, passando por seres tão diversos quanto cobras, vacas e seres humanos”. Essa construção, quando usada, geralmente tem por objetivo estressar um ponto comum a todos os objetos, apesar da sua amplitude e diversidade. Aqui, por exemplo, a frase seria coroada com o ponto a ser desenvolvido: todos são seres vivos. O período completo ficaria então: “o reino animal é riquíssimo, inclui de micróbios até as gigantescas baleias, passando por cobras, vacas e seres humanos. Todos são, no entanto, seres vivos”.

Essa aulinha básica de redação veio-me à mente quando li a reportagem acima. “… um amplo espectro de partidos e figuras políticas, que vai das siglas de esquerda até ex-aliados de Bolsonaro”. Está aí a expressão “de… até…”, que o repórter usou para tentar mostrar a amplitude do movimento e, por suposto, a grande possibilidades de prosperar. O que falta, no entanto? A expressão “passando por”, para mostrar também a diversidade do grupo. Cadê o recheio do sanduíche?

Siglas e grupos de esquerda pedindo impeachment não é novidade. Fizeram isso com Collor, Itamar, FHC, Temer e, agora, Bolsonaro. O outro extremo é composto por “ex-aliados” de Bolsonaro, que estão lá mais por uma questão de vingança pessoal do que qualquer outra coisa. Onde está a sociedade civil?

O pedido de impeachment de Collor foi entregue ao Congresso por Barbosa Lima Sobrinho. O de Dilma, por Miguel Reale Jr. Dois representantes da sociedade civil acima de quaisquer suspeitas. Onde está o nome da sociedade civil disposto a associar o seu nome a um pedido de impeachment? Reale Jr tem sido bastante crítico a este governo. Isso é uma coisa. Outra coisa, bem diferente, é dar legitimidade a um pedido de impeachment. Por um motivo simples: oposição não é sinônimo de deposição.

Não estou aqui afirmando que um processo de impeachment não possa ser iniciado. Mas, para que haja alguma chance, o “de… até…” precisará ser acompanhado por um “passando por…”. Caso contrário, não passará de factoide político.

A qualidade do pedido de impeachment

Neste quarto post sobre o impeachment de Bolsonaro (já virou série!) vamos nos debruçar sobre os pedidos em si. O editorial do Estadão mais uma vez serviu-me de inspiração, pois chama a atenção para o “excepcional conjunto de pedidos de impeachment” que foi apresentado até o momento. Como sempre, fui pesquisar.

De fato, o número de pedidos é excepcional. Em números absolutos só perde para Dilma Rousseff, conforme podemos ver na lista abaixo. Mas, relativamente ao período de mandato, é recorde absoluto (entre parênteses, número de pedidos a cada 100 dias de mandato):

  • Collor: 29 (2,84)
  • Itamar: 4 (0,55)
  • FHC: 27 (0,92)
  • Lula: 37 (1,27)
  • Dilma: 68 (3,29)
  • Temer: 33 (3,87)
  • Bolsonaro: 61 (8,11)

Curioso notar que grande parte dos pedidos de impeachment até o momento se deu entre os meses de março e junho de 2020, justamente o período de mais baixa popularidade do presidente em seu mandato até o momento. Foram 42 pedidos em 109 dias, o que resulta na incrível marca de 38,53 pedidos a cada 100 dias. Se a popularidade cair daqui em diante, talvez possamos observar uma nova leva de pedidos de impeachment.

Vamos ao detalhe. São 61 pedidos, dos quais 2 são apócrifos (assinaturas não verificadas), então vou considerar somente 59.Esses 59 foram feitos por 41 pessoas diferentes. Ou seja, há vários pedidos feitos pelas mesmas pessoas.

Há coisas realmente curiosas: por exemplo, três dos pedidos foram feitos por detentos, um deles condenado por estupro. Há um pedido de um rapaz de 22 anos que se sentiu prejudicado porque o auxílio emergencial caiu de 600 para 300. Tem um pedido de um pizzaiolo e de um professor de línguas. Enfim, tem gente de todo tipo. Mesmo entre esses, há pedidos de sindicalistas e advogados ligados ao PT de alguma forma. São 5 pedidos desse tipo.

Entre os políticos que fizeram pedidos, temos dois tipos:

– os do PT e satélites: são 14 pedidos do PT, PSOL, PCdoB, PSB e Rede.

– os de ex-bolsonaristas: 3 de Alexandre Frota, 1 de Joice Hasselman e 1 do MBL.

Por enquanto, apesar do número gigantesco de pedidos, trata-se de um movimento ainda restrito a cidadãos obscuros, à esquerda e aos que, de alguma maneira, foram “traídos” por Bolsonaro. Da experiência dos dois impeachments que vivemos no período da Nova República, não é a quantidade de pedidos que determina o sucesso, mas a qualidade. Em ambos os casos, o pedido que teve sucesso foi patrocinado por um cidadão sem vínculos partidários e de muita respeitabilidade por parte de todos os atores políticos. No caso de Collor, o pedido foi apresentado pelo então presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Barbosa Lima Sobrinho. No caso de Dilma, pelo advogado Miguel Reale Jr. Os pedidos em si não foram muito diferentes de outros. A diferença está em quem faz o pedido.

Miguel Reale Jr. já afirmou, em artigo, que há pencas de motivos para o impeachment de Bolsonaro. Mas ainda não se dispôs a apresentar um pedido estruturado. Falta alguém de sua reputação decidir a fazê-lo. Talvez porque as condições políticas ainda não estejam dadas.

Discurso político na arena política

Nas eleições de 2014, houve um debate entre Guido Mantega e Armínio Fraga. Apesar de Fraga sabidamente ser muito mais preparado, Mantega saiu-se muito melhor. Por que? Porque Armínio foi preparado para um debate técnico, enquanto Mantega disputou na arena política. Resultado: jantou o Armínio com farinha.

Reali Junior e Janaína Paschoal foram brilhantes hoje na Comissão do Impeachment. Foram brilhantes porque decidiram fazer um discurso político, não técnico. Claro, deixaram claro todo o embasamento jurídico do pedido de impeachment, mas não perderam muito tempo com isso. Enfatizaram os efeitos dos crimes de responsabilidade sobre a vida do povo. Janaína foi especialmente feliz quando citou o quase fim do FIES. E quando ligou o Petrolão às pedaladas, algo não muito preciso tecnicamente, mas perfeito politicamente.

Os dois mereceram 10 minutos de Jornal Nacional, com direito a comentários favoráveis dos âncoras.