O Estado e a liberdade individual

Milton Friedman, em sua obra Capitalismo e Liberdade, defende a ideia de que o Estado não deveria limitar, de forma alguma, o exercício de nenhuma profissão. O motivo é simples: qualquer limitação significa a criação de um monopólio de profissionais às expensas do resto da sociedade. A ideia é de que os próprios consumidores dos serviços fariam o papel de expulsar os maus profissionais do mercado, não sendo necessário uma espécie de “carimbo” estatal.

Friedman leva ao extremo essa ideia, defendendo que médicos não precisariam de uma licença estatal para exercer sua profissão. Até podemos entender a inutilidade, por exemplo, de um diploma de jornalista para atuar na imprensa, ou de economista para fazer previsões econômicas. Mas, quem confiaria sua saúde a um médico que não foi aprovado pelo CRM?

De maneira geral, acreditamos que, sem um CRM, o profissional não está apto a exercer a medicina. O carimbo estatal funciona como uma espécie de “selo de qualidade”, apesar de não garantir qualidade alguma. O mesmo ocorre com profissões como advogado e engenheiro.

Quando ocorre um acidente aéreo, o primeiro que se verifica é se aquela aeronave estava certificada pela ANAC e se o piloto tinha as licenças necessárias. São estes os “selos de qualidade” que a sociedade, de maneira geral, busca nos serviços que consome. Quando ocorre um golpe no mercado financeiro, pergunta-se onde estava a CVM ou o Banco Central, que não evitaram aquele desastre. A sociedade, de maneira geral, confia ao Estado o “filtro de qualidade” que Friedman dizia ser de competência exclusiva dos indivíduos.

Este longo preâmbulo serve para introduzir a discussão sobre a questão do passaporte das vacinas. Há dois campos bem definidos aqui: as pessoas que defendem o certificado, baseiam seu ponto de vista na ideia da cobertura vacinal, que seria tão mais eficaz quanto maior for o número de pessoas vacinadas. Os que são contra, baseiam o seu ponto de vista na preservação da liberdade das pessoas, que não deveriam ter os seus movimentos tolhidos em função de uma escolha pessoal. Além disso, a vacinação seria útil do ponto de vista individual, mas inútil do ponto de vista do comunidade, pois os vacinados continuam transmitindo a doença. Mas este último ponto é irrelevante para o que vai a seguir. Vamos nos concentrar na questão da liberdade individual.

Antes de mais nada, é claro que certas atitudes merecem o tolhimento dos movimentos do indivíduo. O cometimento de crimes, por exemplo. Ou o comportamento doentio antissocial. Nesses casos, parece não haver dúvida de que o Estado, em nome da sociedade, não só tem o direito, como tem o dever de isolar esses indivíduos do convívio social. Aqui, já não se trata de escolhas livres pessoais, mas de crime ou doença que ameaçam a vida em sociedade.

No caso da vacinação, escolher não se vacinar não é crime nem tampouco doença. Certa ou errada, trata-se de uma escolha livre individual. Neste caso, estaria o Estado autorizado a tolher os movimentos dessas pessoas?

Entra aqui o paralelo com a autorização para o exercício da medicina. Assim como no caso do certificado de vacinação, a exigência do CRM tolhe o movimento de profissionais que, de outro modo, poderiam exercer livremente a medicina. Assim como o CRM serve como um sinalizador externo de competência, o certificado de vacinação serve como um sinalizador externo de imunidade. Por outro lado, tanto um como o outro não representam, em absoluto, garantia de qualidade. O médico pode ser ruim e o vacinado pode pegar a doença e continuar a transmiti-la. Mas, assim como a sociedade exige que o Estado controle a qualidade dos médicos, também pode exigir que controle a qualidade da imunização dos indivíduos.

Claro que podemos pensar que um médico com CRM tem maior PROBABILIDADE de ser um bom médico, assim como uma pessoa vacinada tem maior PROBABILIDADE de não se contaminar e de transmitir a doença. Deste ponto de vista, o CRM e o certificado de vacinação não são indiferentes, ainda que não garantam 100% de eficácia. O contra-argumento é de que, ao confiar no CRM e no certificado de vacinação, podemos assumir mais riscos do que o que assumiríamos sem estes “selos de qualidade”, o que poderia não ser desejável.

Não quero e não vou entrar aqui no mérito da pertinência do certificado de vacinação. Meu objetivo era somente estabelecer a natureza do problema: tem o Estado, em nome da sociedade, o direito de restringir escolhas livres dos indivíduos com base em certos predicados? Friedman teve o mérito de radicalizar essa escolha, levando-a às suas últimas consequências, e permanecendo firme em sua tese. No entanto, no caso do certificado das vacinas, não vemos a mesma discussão sendo levada para vários outros âmbitos em que o Estado determina quem pode ou quem não pode exercer a sua liberdade. De maneira geral, aceitamos bem o fato de ser necessário um CRM para exercer a medicina ou uma carteira de motorista para dirigir um carro, e não percebemos que se trata de problemas de mesma natureza. Os defensores da liberdade não deveriam ir além em suas reivindicações?

No fim das contas, a vida em sociedade supõe um poder central que regula o que pode e o que não pode ser feito. A linha que separa a liberdade individual do poder estatal é borrada, sendo mais parecida com uma grande zona cinzenta do que com uma linha bem definida. O certificado de vacinação tornou-se o grande campo de batalha entre os defensores do poder do Estado e os defensores da liberdade individual. Acho que Friedman diria que este é apenas mais um detalhe, quase irrelevante, dado o atual nível de interferência do poder estatal nas escolhes livres das pessoas, que nem sequer notamos.

O capitalismo fofinho

Lido profissionalmente com investimentos há mais de 25 anos. Coisa de 15 anos atrás, viraram moda os chamados “fundos de sustentabilidade empresarial”. Por “sustentabilidade empresarial” entende-se a “sustentabilidade corporativa, baseada em eficiência econômica, equilíbrio ambiental, justiça social e governança corporativa”, segunda a definição da BM&F, que criou em 2005 um índice chamado ISE para acompanhar o desempenho de empresas “fofinhas”, no dizer da manchete do Valor Econômico.

Pois bem. O índice ISE rendeu 10,5% ao ano desde a sua criação. Nesse mesmo período, o IBrX, que é um índice amplo que reflete o desempenho da bolsa como um todo, rendeu 11,8% ao ano. Como o IBrX reúne tanto empresas fofinhas quanto as maldosas, podemos concluir que estas últimas renderam bem mais nesse período. O resultado podemos ver 14 anos depois: os fundos de Sustentabilidade Empresarial são marginais na indústria de fundos. Aposto que você nunca tinha ouvido falar.

Hoje esse movimento voltou com tudo, na sigla ESG (Environmental, Social, Governance). No mercado internacional de investimentos há uma cobrança cada vez maior, por parte de investidores institucionais, pela aderência aos princípios ESG. Na avaliação de investimentos, não conta somente a performance, mas também esta aderência.

Falta, no entanto, combinar com os russos. No caso, os investidores finais, que são as pessoas físicas que vão, no final do dia, receber menos pelos seus investimentos em nome dos princípios ESG. Há uma lenda urbana que diz que as empresas politicamente corretas têm rentabilidade maior no longo prazo. Não é o que vimos aqui no Brasil com o ISE e não é o que mostram os estudos acadêmicos a respeito. A comparação com alimentação orgânica é irresistível: a “consciência social” custa um dinheiro que poucos podem pagar.

Claro que tudo pode não passar de um discurso sob medida para roubar as bandeiras da esquerda antes que esta tome o poder e implemente mudanças que não sejam meramente cosméticas. Os próprios CEOs alertam para essa possibilidade. E é absolutamente esperado que seja isso mesmo. Afinal, por mais que a consciência social pese, é ao anúncio de lucros que os preços das ações reagem. Os investidores continuam agindo com os bolsos, ainda que o discurso seja politicamente correto.

O artigo diz que Milton Friedman teve um ano difícil, pois supostamente as empresas estariam buscando outros paradigmas além da geração de lucros. Eu diria que, fosse Milton Friedman vivo, estaria dizendo “me deem um almoço de graça, que eu lhes darei um capitalismo sem lucros”.

“O problema aqui é convencer os mercados a aceitar essa visão de longo prazo”

Mais um artigo reverberando o abaixo-assinado de CEOs decretando que o lucro não é tão importante quanto o impacto social das empresas (‘Mr. Friedman, we have a problem’: Vem aí o capitalismo 3.0)

Se eu fosse CEO faria o mesmo. Quer coisa melhor do que não ser cobrado pelo lucro? “Olha, a empresa não gera lucro, mas trata muito bem os empregados e ajuda a plantar árvores na Amazônia”. Ok.

Como profissional do mercado financeiro, canso de ouvir perguntas de amigos e parentes sobre “quais são as melhores opções de investimentos”, que “rendam mais que a poupança”. Ninguém me pergunta: “qual a opção de investimento em empresas que tratam bem os empregados?” Ou “onde posso investir para melhorar o ar do planeta?”. Nada disso. A pergunta é sempre “onde rende mais?”

Esse é o tal de “mercado” citado no trecho do artigo que dá o título a este post. O “mercado” somos todos nós, que, afinal, estamos sempre atrás de um bom retorno.

“Ah, mas as empresas socialmente responsáveis rendem mais no longo prazo”. Bem, se isso for realmente verdade, os critérios sociais se imporão naturalmente. Afinal, todos estamos atrás de bons retornos, não é mesmo? A necessidade de um “abaixo-assinado” de CEOs parece ser a evidência de que, afinal, critérios sociais não devem ser tão lucrativos assim.

O artigo diz que Milton Friedman deve estar se virando no túmulo. Acho que, na verdade, ele deve estar é rolando de rir no túmulo. A frase “só falta convencer o mercado” é exatamente o que ele diria.

O que deu errado no Chile

A Globo News debate os destinos da economia brasileira, agora que estamos nas mãos dos desalmados “Chicago Boys”.

Além das observações de praxe sobre as reformas impostas por Pinochet, a ditadura e blá, blá, blá, os bravos jornalistas estavam genuinamente preocupados com os efeitos negativos das reformas empreendidas pelos Chicago Boys chilenos. Parece que algumas coisas deram errado por lá.

Fui checar.

A inflação média brasileira desde 1996 foi de 6,80% ao ano, enquanto a chilena foi de 3,67% ao ano. Ou seja, se tivéssemos a inflação do Chile, os preços teriam subido praticamente metade do que subiram no Brasil nos últimos 22 anos (deixei de fora os anos da hiperinflação pra coisa não ficar mais feia para o nosso lado).

-Ah, mas inflação é uma tara dos Chicago Boys. Eles sacrificam tudo ao deus da estabilidade. Aposto que o crescimento econômico foi anêmico nesse período.

Vamos lá. O crescimento econômico médio do Brasil desde 1980 foi de 2,32% ao ano. Do Chile foi de 4,31% ao ano. Se o Brasil tivesse crescido tanto quanto o Chile nos últimos 38 anos, a renda per capita brasileira seria mais do que o dobro da atual. 108% maior, para ser mais exato.

– Ah, mas PIB não quer dizer nada. O que importa é o bem estar das pessoas.

Ok. Também o desemprego foi menor no Chile. Desde 1991 (primeiro dado disponível para o Brasil), o desemprego médio chileno foi de 7,8%, contra 10,9% de desemprego médio no Brasil. Hoje, o desemprego no Chile está em 6,9%, contra 11,8% no Brasil. Se tivéssemos hoje o desemprego do Chile, cerca de 5 milhões de brasileiros a mais estariam trabalhando.

– Ok. Mas e a desigualdade? Qual a preocupação dos Chicago Boys com a distribuição de renda? Aposto que nenhuma!

Segundo dados do Banco Mundial, o índice de Gini do Chile caiu de 54,8 em 1987 para 47,7 em 2015. Já o índice do Brasil caiu de 59,7 para 51,3 no mesmo período (quanto menor, melhor a distribuição de renda). Ou seja, além de mostrar uma distribuição de renda melhor do que a brasileira, o índice de Gini do Chile recuou só um pouco menos do que a o brasileiro nesse período de 28 anos. Parece ok para um país que adota um modelo econômico neoliberal selvagem.

Resumindo: o Chile, administrado segundo a escola de Chicago, teve metade da inflação, o dobro do crescimento, menos desemprego e melhor distribuição de renda do que o Brasil, administrado segundo a melhor escola unicampiana de preocupação social. E ainda ficamos discutindo “o que deu errado” no modelo chileno.

PS.: antes que alguém levante a questão, dá sim para usar o Chile como exemplo. Apesar de ser um país menor e com maior dependência de exportações, há muitos países ainda menores que não dão certo. E há países bem maiores que têm uma performance bem superior à brasileira por seguirem os cânones econômicos ortodoxos. Vide EUA e Alemanha, por exemplo.