Pimenta no falo dos outros é refresco

Imagine um articulista qualquer identificado com a direita escrevendo o seguinte:

“Com a coxa bem torneada e a sua voz rouca, Lula é o falo que sua eleitora gostaria de ter”

E continuaria:

“A eletricidade sexual entre o ex-presidente e suas admiradoras reafirma o empoderamento das intelectuais de esquerda”.

Não, nenhum articulista identificado com a direita ousaria escrever uma bobagem agressiva nesse nível. Seria cancelado antes que pudesse articular a palavra “falo”.

Mas Marcelo Coelho se achou no direito de ofender milhões de mulheres que, por um motivo ou por outro, preferem votar em Bolsonaro do que em Lula. Não fosse suficiente a psicanálise de botequim, Coelho ainda usa pejorativamente o termo ”donas de casa”, quase que como um sinônimo de parvas que precisam de um consolo que os seus maridos já não são capazes de dar.

Não, não haverá protestos de feministas.

Não, ele não será acusado de misoginia ou de machismo.

Não, não haverá abaixo-assinados de jornalistas da Folha contra a publicação de artigos que ofendam as mulheres.

Não, as “donas de casa de extrema-direita” não merecem respeito. Podem ser cuspidas e estupradas metaforicamente por um “articulista do bem”.

Ficção sociológica

Acabei ontem de assistir à primeira temporada da boa série Marte, no Netflix. Trata-se de um “docudrama”, em que duas histórias paralelas convivem ao longo de toda a trama: em 2016, um documentário sobre a Space X, a empresa de Elon Musk que pretende colonizar Marte; e em 2036, quando a primeira missão a Marte é lançada. O melhor da série é justamente esse entrelaçamento entre os desafios de uma missão desse tipo levantados durante o documentário, e esses mesmos desafios sendo vencidos (ou não) durante a teórica missão.

Mas não é sobre ficção científica que quero falar aqui. Meu assunto é outra ficção: o papel protagonista das mulheres nesta série, assim como em Away, outra série da Netflix sobre uma missão a Marte.

Aliás, o paralelo entre as duas séries é interessante: em ambas, uma mulher assume o comando da missão que, originalmente, seria de um homem. Em Away, é a esposa do astronauta (ela também uma astronauta) que não pode assumir a missão por conta de uma doença. Em Marte, é a vice-líder da missão, que assume após a morte do líder. Nos dois casos, a mulher chegou lá, digamos, por acidente. Mas o fato é que a ambas cabe o protagonismo.

Na série Marte, uma segunda missão chega ao planeta vermelho, também liderada por uma mulher. Neste caso, a comandante é acompanhada por seu marido, um botânico com um perfil bem delicado e dependente. Uma inversão dos papeis estereotipados a que estamos acostumados.

Mas o que verdadeiramente me chamou a atenção é a cena final do 6o e último episódio da 1a temporada de Marte: são essas duas líderes, a que se junta uma terceira mulher, cientista, que fazem a descoberta que muda o rumo da missão. Além disso, uma quarta mulher é a líder do comitê de países que supervisiona a missão. O episódio termina com 4 mulheres protagonistas. Nenhum homem.

Chamamos de ficção científica uma projeção do futuro com base em tecnologias ainda inexistentes. Contamos histórias do porvir, que um dia existirão. Ou não. Júlio Verne foi o mestre da ficção científica, antecipando muitos dos artefatos que hoje fazem parte do nosso dia a dia. Marte e Away são ficção científica, mas poderão vir, um dia, a se tornar realidade.

Mas Marte e Away são também ficção em outro sentido. Ao dar protagonismo às mulheres, essas duas séries fazem o que vou chamar aqui de “ficção sociológica”. Por que o protagonismo das mulheres é uma ficção sociológica? Simplesmente porque não existe hoje, mas pode existir no futuro. Ou não.

Nesta semana, foram anunciados os Prêmios Nobel de Física, Química e Medicina, os chamados prêmios científicos. Na história desses prêmios desde 1901, um total de 624 cientistas foram laureados. Destes, apenas 23 foram mulheres, ou 3,7% do total. Mas podemos ver algum avanço ao longo do tempo. Se separarmos por décadas, temos a estatística mostrada no gráfico abaixo.

Podemos observar que as últimas duas décadas foram pródigas na indicação de mulheres por parte do comitê do Nobel. Mas esse é o copo meio cheio. O copo meio vazio é que, mesmo assim, temos menos de 10% do total. Há alguns dias, escrevi sobre a pouca presença de mulheres nas Olimpíadas de Matemática. Curiosamente, o percentual de participação também vem aumentando, mas ainda é inferior a 10%.

Hoje, o protagonismo feminino em ciência é apenas uma ficção sociológica, assim como missões a Marte são apenas uma ficção científica. Ficções científicas se tornam realidade ao longo do tempo com base em pesquisa científica e investimento tecnológico, além de escolhas políticas. Como uma ficção sociológica se torna realidade ao longo do tempo?

Como comentei em meu post sobre a fraca presença feminina na Olimpíada de Matemática, há duas hipóteses sobre esta questão: uma biológica e outra sociológica. Minha opinião (e é só uma opinião de leigo) é que se trata de uma mistura das duas coisas. A indústria de entretenimento americana está buscando, de todas as formas, testar a hipótese sociológica: ao dar o protagonismo às mulheres (e essas séries não são as únicas nesse sentido) espera-se inspirar as jovens a seguir o caminho científico, derrubando barreiras sociais que as estariam impedindo. Terão sucesso? Assim como a missão a Marte, só saberemos daqui a 20 anos.

Mulheres e a Olimpíada de Matemática

Questão de matemática: em uma população de 210 milhões de habitantes, qual a chance de se sortear aleatoriamente 6 pessoas do sexo masculino? A resposta é aproximadamente 1/2^6 ou 1/64. Quer dizer, de cada 64 tentativas, você vai conseguir sortear 6 homens uma vez. Não é lá uma probabilidade muito alta.

Mas isso é sorteio. No caso da Olimpíada de Matemática as pessoas não foram sorteadas. Elas conquistaram o seu posto no time brasileiro através de provas aplicadas nacionalmente. E somente homens conseguiram.

Esse não é somente um fenômeno brasileiro. A olimpíada deste ano, na Rússia, contou com 616 competidores de 138 países. Destes, apenas 56 eram mulheres. Ou 9,1% da amostra. 9,1% sobre 6 não dá um, o que demonstra que nossa amostragem não está fora da norma global.

Como não há como discriminar mulheres através de uma prova objetiva, restam duas explicações para este claro desvio: 1) maior facilidade natural dos homens para lidar com números e pensamento lógico ou 2) uma pressão social que, desde a mais tenra idade, convence as meninas de que a matemática é coisa de meninos.

A escolha entre uma ou outra explicação parece mais briga de torcida do que estudo científico, cada lado aferrado aos seus dogmas. Pode ser uma mistura das duas coisas. Se observarmos a evolução histórica da participação feminina nas Olímpiadas de Matemática (veja o gráfico abaixo), veremos um avanço ao longo dos anos. (Nos primeiros anos o número de participantes era muito pequeno, o que fazia o percentual feminino mudar abruptamente de um ano para o outro).

Este avanço pode estar associado a um maior incentivo à participação feminina e a uma educação, digamos, mais igualitária ao longo do tempo. Mas será que um dia chegaremos a 50%? Convenhamos que 10% de participação ainda é um nível muito baixo. E não só isso: se observarmos com cuidado o gráfico, vamos notar que a participação feminina está parada neste nível de 10% desde mais ou menos meados da década passada. Será que falta mais incentivo? Ou será que bateu em um teto natural? Só o tempo dirá.

Um outro indicador que poderíamos usar para identificar algum viés social é a comparação entre países onde teoricamente há menos “vieses sociais” com países onde a pressão social seria, digamos, maior. Separei, então, os países em grupos mais ou menos homogêneos. Este é sempre um exercício arriscado, pois os países podem variar bastante dentro desses grupos, mas resolvi tomar o risco. O resultado foi surpreendente.

Países considerados desenvolvidos (basicamente Europa Ocidental, Austrália, Nova Zelândia, Canadá e EUA) tiveram uma participação feminina de 9,0%, absolutamente em linha com a média. A surpresa veio da África sub-saariana, um grupo de onde não se esperaria um viés pró-feminino: ainda que a amostra seja pequena, observamos uma participação feminina de 17,9%! E os países muçulmanos tiveram uma participação feminina de 8,8%, basicamente em linha com a média. A América Latina machista, vejam só, teve uma participação feminina de 10,0%, enquanto os países da Ásia não-muçulmana tiveram uma razão de 6,4%. Uma surpresa para mim foi a participação feminina da Europa Oriental (países da ex-cortina de ferro), onde, segundo a propaganda comunista, as mulheres seriam incentivadas a terem um papel de destaque nas ciências: uma participação de apenas 5,8%. Mas a cereja do bolo veio dos países nórdicos. Destaquei Suécia, Noruega, Finlândia e Dinamarca: dos 24 participantes, apenas uma mísera representante do sexo feminino, uma participação de pífios 4,2%.

Enfim, se a crescente participação feminina ao longo dos anos na Olímpiada de Matemática pode se dever a um maior incentivo, a distribuição entre os países não parece corroborar esta ideia. Trata-se de uma questão em aberto. Como eu disse, acho que é uma mistura das duas coisas, mas tendo a achar que fatores naturais têm mais influência.

Por fim, uma outra questão de matemática: qual a chance, em uma população de 210 milhões de habitantes, de se sortear 6 pessoas, das quais 3 são de Fortaleza? Pois é, três dos 6 componentes da equipe brasileira vieram da capital cearense. Acho que seria interessante investigar o que tem na água da cidade.PS.: Parabéns aos rapazes que representaram as cores brasileiras na Olimpíada de Matemática!