Mais um mecanismo de concentração de renda

Gosto de ler os artigos de Eugênio Bucci. Normalmente saio deles com os argumentos para defender as ideias justo opostas às defendidas pelo professor da ECA-USP. Não foi diferente desta vez. O assunto de hoje é a cobrança de mensalidades nas universidades públicas, especificamente as estaduais paulistas, onde ele ganha parte do seu sustento.

Para surpresa de zero pessoas, o articulista defende a gratuidade total dessas universidades. Fui ler o artigo de coração aberto, com o objetivo sincero de garimpar pelo menos um argumento que fizesse sentido. Saí, como é usual nos artigos de Bucci, de mãos vazias. Vejamos.

O primeiro argumento é conhecido: a universidade, com as leis de cotas, está deixando de ser elitista. Segundo Bucci, nada menos que 51,7% dos alunos matriculados neste ano vieram de escolas públicas. Ora, compreendo que o articulista, sendo de humanas, possa ter alguma dificuldade em fazer essa conta, mas isso significa que 48,3% dos alunos ainda vêm de escolas particulares. Portanto, uma parcela relevante do corpo discente seria elegível, segundo o critério do próprio articulista, a pagar alguma mensalidade.

O segundo argumento é mais sociológico. Refere-se a uma teórica “segregação” entre alunos pagantes e não pagantes dentro da universidade. Em primeiro lugar, essa potencial segregação é somente uma teoria, carece de comprovação empírica (e não faltam exemplos de faculdades privadas com bolsas integrais, que poderiam ser usadas como “campo de prova” da teoria). Em segundo lugar, o argumento da segregação poderia ser usado contra o próprio sistema de cotas. Afinal, há, hoje, duas portas de entrada na universidade pública, uma para alunos de escolas públicas e outra para alunos de escolas privadas. A “segregação” já está posta, e se vale para o pagamento de mensalidades, vale também para as cotas.

O terceiro argumento, na verdade, já é, em si, um contra-argumento. O articulista menciona que universidades públicas podem sim cobrar mensalidades, e cita exemplos dos EUA. Obrigado, Bucci, por nos lembrar disso.

O quarto argumento está no objetivo da cobrança. Segundo o articulista, cobrar mensalidades ”não vai resolver nada”. O custo da pesquisa acadêmica é tão alto, que a cobrança de mensalidades se torna irrelevante. Por isso, segundo Bucci, as “escolas mais renomadas” estão caminhando para um modelo “tuition free” e buscando outras fontes de receitas. Este é o típico argumento “tudo ou nada”: se as mensalidades não podem pagar tudo, então que não se cobre nada. Trata-se de um argumento falacioso, que ignora como os problemas são resolvidos na vida real. Não existem “balas de prata”, o que existe são pequenos progressos em direção à solução, e a cobrança de mensalidades de quem pode pagar é só um deles.

Engatando no argumento anterior, Bucci cita o exemplo do MIT, que estaria caminhando, em algumas de suas faculdades, para o modelo de ”tuition free”.

Bem, existe um detalhe nada irrelevante aqui: a fonte principal de recursos do MIT é o seu endowment de 27 bilhões de dólares. Considerando uma retirada de 3% ao ano, que é uma estimativa conservadora para o rendimento real estimado de longo prazo nos EUA, temos cerca de 800 milhões de dólares por ano para sustento da universidade. Isso significa mais de 4 bilhões de reais ao câmbio de hoje. Para comparação, o orçamento anual da USP é de 7,5 bilhões de reais. Portanto, o funding para bolsas é fundamentalmente privado, não público, ainda que possa haver fundos públicos para financiar pesquisas específicas. Portanto, usar o MIT como exemplo de como a USP deveria continuar sendo gratuita para todos com funding público só pode ser desinformação ou má-fé.

Todos esses argumentos servem para esconder a iniquidade da gratuidade universal. Bucci fala como se o funding para manter a universidade fosse uma espécie de dádiva divina. Não. O “endowment” das universidades públicas é formado por “doações compulsórias”, também conhecidas como impostos. Funciona assim: toda vez que um pobre compra um quilo de arroz no supermercado do bairro, uma parte desse dinheiro vai para o “endowment” que paga 100% dos tuitions de alunos que fizeram escolas particulares e que poderiam pagar pela sua educação superior. Este é mais um entre tantos mecanismos de concentração de renda no país. Que seja defendido com unhas e dentes por campeões morais como Eugênio Bucci, para quem a renda a ser distribuída é sempre a dos outros, é só mais um sinal de que a agenda de redistribuição de renda no país tem um longo caminho a percorrer.

Destino vs. Mérito

Eu dou aulas em um curso preparatório para a obtenção de um certificado muito prestigiado no mercado financeiro, o CFA. São três provas em três anos seguidos, peneirando os candidatos até sobrarem os mais perseverantes que, estima-se, sejam somente 30% dos que iniciam a jornada.

Ontem, recebi um e-mail de um ex-aluno, informando que havia passado na primeira prova e agradecendo pelas aulas. Confesso que fiquei surpreso, por dois motivos.

O primeiro é que não é muito comum um ex-aluno escrever agradecendo ao professor as suas conquistas. Trata-se de um gesto raro, e que tem um valor imenso para quem joga a semente sem ter muita esperança de que vá germinar. E denota o caráter de quem reconhece que suas conquistas dependem não só de si.

O segundo motivo da minha surpresa é que este aluno não se destacava pelo seu brilhantismo. Era um aluno, digamos, comum, em quem eu não apostava muitas fichas. No que ele se destacava sim era no bombardeamento de perguntas. Explico: quando termina a minha parte no curso preparatório, deixo meu e-mail para que os alunos possam enviar dúvidas ao longo de seus estudos. Quer dizer, deixo proforma, porque raramente alguém escreve. Não foi o caso deste meu ex-aluno: dia sim, outro também, abria minha caixa postal e ali estava um e-mail dele com alguma dúvida. O que isso significa? Que o rapaz estava estudando. E muito.

No começo do curso, costumo dizer que as provas não são difíceis, não são um teste para entrar na NASA. São, sim, trabalhosas, pois a matéria é muita extensa. Mas nada que um bom plano de estudo e perseverança não resolva. E é isso que distingue quem passa de quem não passa: dedicação e perseverança. Vejo muitos alunos afirmando com palavras que que querem passar, mas seus atos demonstram que eles na verdade esperam que a coisa caia do céu.

Nesta linha, hoje o jornal traz uma reportagem sobre um rapaz chamado Wellington Vitorino, o primeiro brasileiro negro a ser aceito no MBA do MIT.

A trajetória de Wellington é a de alguém que acredita que o estudo o levará mais longe, e dedica-se de corpo e alma a isso. Claramente não foi contemplado, na loteria da vida, com o grande prêmio de ter nascido em uma família de posses, mas explorou bem seus outros dons, tendo a “sorte” de encontrar pessoas que o ajudaram no meio do caminho. Sorte entre aspas porque o seu desempenho acabou por atrair quem o pudesse ajudar.

Tenho sempre dificuldade em separar mérito de destino. Acho que a vida das pessoas é uma mistura das duas coisas: uma boa parte do seu destino está traçado no seu nascimento, mas não todo ele. Conseguimos mudar o nosso destino a partir de nossas decisões, mas seria ingenuidade achar que as nossas decisões têm o poder de mudar tudo.

Há pessoas diferenciadas, que foram agraciadas pela vida com dons negados à maioria dos mortais. E não me refiro, aqui, à renda familiar. Wellington claramente tem um dom, e soube explora-lo para subir. Seria forçar a barra apontar o seu caso como um exemplo de que tudo é possível, basta esforçar-se. Seria como dizer que jogar como o Messi é possível, desde que você treine o suficiente. O caso de Wellington é único, porque ele é único.

Isso é uma coisa. Outra coisa é elevar o nível médio da população através de políticas públicas eficazes. Não para buscar outros Wellingtons. Estes, por terem o dom, encontrarão o seu caminho mesmo no meio das mazelas do nosso sistema de ensino. Mas para que o esforço de pessoas comuns, como o do meu ex-aluno, encontre terreno mais fértil para mudar os seus destinos.

PS.: para evitar mal-entendidos, que pude perceber em alguns comentários, não fui professor do Wellington. São duas histórias paralelas.

O financiamento das universidades públicas

O reitor da Unicamp foi entrevistado pelo Valor. É contra a cobrança de mensalidades nas universidades públicas, e dá como exemplo o MIT. Segundo o reitor, apenas 10% das receitas vêm das mensalidades. O restante seria “dinheiro público”.

De fato, o reitor da Unicamp está correto em relação aos 10%. O problema são os outros 90%, que têm sua origem em outras fontes. Não são “dinheiro público”

A maior fonte de receita (27%) é o Lincoln Laboratory, que presta serviços de pesquisa para empresas e o governo, e é remunerada por isso. É conhecida a ojeriza das nossas universidades públicas, com poucas e honrosas exceções, de se “subordinarem ao interesse do capital”. Faça uma enquete no próximo evento da SBPC sobre o assunto, e veja quantos professores topam fazer pesquisas remuneradas para empresas.

A segunda maior fonte (23%) são os retornos dos investimentos. O MIT conta com um endowment de aproximadamente US$17 bilhões. A receita de US$830 milhões representa um rendimento de 5% desse investimento, que é usado para bancar a universidade.

– Ah, mas aqui a elite não está disposta a doar para a universidade!

Verdade. Nem tampouco os americanos estariam dispostos a doar se as regras de governança fossem as mesmas da universidade pública brasileira. No MIT existe um conselho, chamado MIT Corporation, formado por 73 membros, reconhecidos como líderes em seus campos de atuação (iniciativa privada, serviço público, educação). Esta conselho é o responsável por cobrar resultados do braço executivo, que dirige a universidade. Pergunta: a universidade pública brasileira estaria disposta a se submeter a um conselho formado por pessoas de fora da universidade, incluindo pesos pesados do PIB nacional?

Enfim, o reitor da Unicamp só mostra o quão distante estamos de uma universidade capaz de gerar Prêmios Nobel (o MIT tem 90 entre os seus professores).

PS.: na mesma entrevista, o reitor da Unicamp também disse que é falsa a ideia de que a universidade seja um celeiro da esquerda. Mas este é um assunto para outro post.