Economia gig: um espantalho útil

Os problemas trabalhistas brasileiros se resumem à formalização dos profissionais de aplicativos. Pelo menos, é o que se deduz de várias reportagens nos últimos tempos. Hoje, por exemplo, se discute o que os candidatos propõem para a catchiguria. Os partidos mais à esquerda se destacam, encontrando um nicho para a sua peroração de luta de classes. Mas, de maneira geral, todos os candidatos prometem fazer “alguma coisa” em relação ao assunto.

A chamada “economia gig” não existia até alguns anos atrás. O que mais se aproximava eram as cooperativas de taxistas, organizadas em torno de alguma central telefônica que centralizava os chamados. Os taxistas, na época, também não contavam com “proteção social”, mas ninguém parecia ligar muito para isso. Havia também empresas que empregavam motoboys, e que tinham como clientes outras empresas, pois o seu serviço era muito caro para as pessoas físicas. E havia também alguns (poucos) restaurantes que podiam se dar ao luxo de ter entregadores. Não sei se esses entregadores e os motoboys tinham garantidos todos os “direitos sociais”, mas ninguém se importava muito com isso na época.

Até que chegou o Uber, quebrando o monopólio dos taxistas em todas as cidades do mundo, ao permitir que qualquer motorista pudesse “dar carona” em seu próprio carro. Os aplicativos de entrega vieram em seguida, organizando e fazendo crescer exponencialmente o fragmentado mercado das empresas de motoboys. Nascia, assim, a “economia gig”, facilitando a vida de milhões de pessoas e criando empregos onde antes estes não existiam.

Segundo o IPEA, são 1,5 milhões de trabalhadores na “economia gig”, sendo cerca de 1 milhão de motoristas e 500 mil motociclistas e ciclistas. Trata-se de um número grande, mas vamos colocá-lo em contexto. Segundo o IBGE, hoje temos 35 milhões de trabalhadores com carteira assinada, 25 milhões de trabalhadores por conta própria, 38 milhões de trabalhadores informais e 10 milhões de desempregados. Portanto, da força de trabalho brasileira, 73 milhões, ou 2/3, não contam com nenhuma “proteção social”. Estão incluídos nessas 73 milhões de almas os 1,5 milhão da economia gig. Alguém, então, poderia muito justamente perguntar: por que tanto barulho em torno desses 1,5 milhão? E os restantes 71,5 milhões, que estão aí (sempre estiveram) sem nenhuma “proteção social”?

Vou arriscar uma explicação sociológica. Creio que são dois motivos inter-relacionados. O primeiro é que a classe média está em contato com esses trabalhadores cotidianamente. Temos uma espécie de “dor na consciência” ao ver como somos “privilegiados” em relação a eles. Os outros 71,5 milhões não sabemos quem são, mas esses nos atendem todo dia. E nos doemos por eles. Só isso explica, por exemplo, que José Pastore, em entrevista hoje, classifique de “desumana” a situação dos trabalhadores de aplicativos. Como se fosse “humana” a situação dos outros 71,5 milhões de trabalhadores informais no país.

O segundo motivo, que é o outro lado da moeda da “desumanidade”, são as empresas por trás da economia gig. No caso dos outros 71,5 milhões de informais não há start ups badaladas que valem bilhões na bolsa. O raciocínio implícito é que essas empresas teriam condições de prover “direitos sociais” a esses trabalhadores. Afinal, são bilionárias.

É uma tese a ser testada. Se uma legislação obrigar essas empresas a “formalizarem” os seus “empregados”, uma de duas coisas (ou uma combinação de ambas) precisará acontecer: 1) os aplicativos terão que reduzir a sua margem de lucro e/ou 2) os consumidores precisarão pagar mais caro pelo serviço. Se os aplicativos avaliarem que não vale a pena o risco do negócio com uma margem de lucro reduzida ou não conseguirem repassar o custo para o consumidor final, o negócio desaparecerá. Então, os trabalhadores de aplicativos, que hoje fazem parte dos 73 milhões que não têm “direitos sociais”, passarão a fazer parte dos 10 milhões de desempregados que, além de não terem ”direitos sociais”, também não têm renda.

Todos nós gostaríamos de viver em um mundo nobre, belo e justo, onde todos os trabalhadores recebessem uma renda suficiente para as suas necessidades básicas e contassem com toda a proteção do “estado de bem-estar social”. No Brasil, no entanto, por algum motivo, 73 milhões de trabalhadores não têm acesso aos chamados “direitos sociais”. Os 1,5 milhão de trabalhadores de aplicativo são uma gota d’água nesse oceano. Chamam a atenção porque fazem parte do nosso dia-a-dia e são dependentes de “multinacionais poderosas”.

Na verdade, esses trabalhadores são apenas o sintoma de uma doença muito mais profunda, uma doença que impede que um contingente gigantesco de trabalhadores não tenha acesso a um mínimo de “proteção social”. Brigar pelos “direitos dos trabalhadores de aplicativos” é um bom modo de anestesiar a consciência sem resolver o problema de fundo. Trata-se de um espantalho útil para manter as coisas do jeito que estão.

Um mundo sem patrões

Esta reportagem é uma pérola de rara beleza. São tantas as facetas, tantas as nuances, tantas as bobagens, que poderíamos discutir durante dias a fio e não esgotaríamos toda a riqueza que a reportagem encerra.

Como vocês já devem ter notado, gosto particularmente desse assunto. A economia das plataformas é um dos campos onde o capitalismo está se fazendo, agora, diante dos nossos olhos. A possibilidade de unir oferta e demanda através de um aplicativo na palma da mão, envolvendo também publicidade de massa, isso sim é inovação e ganho de produtividade na veia. E essa reportagem só vem chamar a atenção para esses pontos.

Do que se trata? Os entregadores não querem mais “patrão”. Por patrão, entende-se as empresas responsáveis pelos aplicativos. Para tanto, estão se reunindo em cooperativas. Só falta um detalhe para dar certo: fazer o aplicativo!

O repórter fez o seu dever de casa. Foi buscar a opinião de uma empresa de software, para saber quanto custaria o desenvolvimento de um aplicativo “enxuto”. 500 mil reales, pra começar a conversa. Bem, eu acho que este valor está beeeem subestimado. Pra fazer algo decente, precisa muito mais. Cheguei a comentar aqui sobre o SPTaxi, o aplicativo oficial da prefeitura de SP para “concorrer” com o Uber. A experiência do usuário é sofrível, para dizer o mínimo. Não encontrei em lugar nenhum quanto a prefeitura gastou para desenvolver aquilo, mas não tenho dúvida de que foi mais de meio milhão.

E o desenvolvimento inicial nem é o principal custo. A manutenção de qualquer sistema é um nightmare, como pode atestar qualquer profissional de TI. A Rappi tem 5 mil funcionários no mundo inteiro, o iFood tem 2,5 mil funcionários no Brasil. Grande parte está lá só para manter o sistema funcionando.

Já vimos então que a coisa não é simples. Isso não significa que precisa dar errado. Pode dar certo. Todas essas gigantes de tecnologia começaram na garagem de um cara que tinha uma boa ideia e lábia para vender essa ideia para financiadores. Esse cara chama-se EMPRESÁRIO.

Quando os entregadores se unem para não ter patrão, estão eliminando a figura do empresário, que é o único que consegue fazer a coisa acontecer. Chance de dar certo? Zero. Mas, se existir um empresário entre eles, alguém que consiga mobilizar capital humano e financeiro para levar adiante a ideia, então esse cara vai, mais cedo ou mais tarde, reivindicar o fruto do seu trabalho. Pode até continuar com o discurso da “justiça social”, afinal, tem muito empresário que defende a tal justiça social.

O problema mesmo, como sempre, é combinar com os russos. No caso, os consumidores. Em determinado ponto da reportagem, alguns mais realistas admitem que essas cooperativas poderiam funcionar para nichos de pessoas dispostas a pagar mais por uma entrega “sem patrão”. O nome de um desses grupos, “Entregadores Antifascistas”, entrega o objetivo ideológico da iniciativa, e poderia ter algum apelo em nichos bem-pensantes com dinheiro no bolso. Mas, para a grande massa de consumidores, que querem entrega rápida e barata, através de um aplicativo fácil de usar, esses rótulos têm pouco ou nenhum interesse.

No final do dia, quem vai decidir se as cooperativas de entregadores vão dar certo ou não são os consumidores. As usual.

As migalhas

Bater no Boulos não tem graça, eu sei. O marxismo do sujeito é tão de almanaque, que qualquer coisa que ele diz parece vindo de um viajante do tempo que acaba de chegar do fim do século XIX.

Mas não pude resistir a comentar a sua fala em apoio aos entregadores de aplicativos. Boulos descobriu um filão, a luta dos moto e cicloboys por remuneração maior. Sua forma de entender o problema, porem, é típica de quem não entendeu como se cria riqueza ao longo do tempo. Note que não falei “de quem não entendeu o capitalismo”, mas sim algo mais amplo, que supera uma determinada forma de organizar a produção.

Boulos não se conforma com o fato de que as empresas de tecnologia fiquem com a parte do leão “só por oferecerem uma tecnologia”, enquanto os donos dos braços, pernas, motos, bikes e carros fiquem com as migalhas do negócio de entregas.

Ocorre que essa é a regra, não a exceção. A tecnologia, em qualquer lugar e tempo, é o que mais agrega valor, é o que mais gera riqueza. Quem domina a tecnologia, é mais rico. Simples assim.

Sempre uso esse exemplo, mas como tem muita gente nova por aqui, vou usar de novo, com a licença dos leitores mais antigos. Somos um dos maiores produtores de café do mundo, com muito orgulho. No entanto, quem fica com a parte do leão dos lucros dessa indústria? A Nestlé, com o seu Nespresso e outras tecnologias. A Suíça não produz um grãozinho de café sequer, mas fica com o grosso dos lucros da indústria. Faz sentido? Todo sentido. Ou alguém toma café diretamente do grão?

Ao desenvolver uma tecnologia que agrega valor para o usuário, a Nestlé multiplica em dezenas de vezes o potencial do grão do café. E se apropria dessas dezenas de vezes, sobrando as migalhas para os produtores de café.

É sempre assim. E como se cria alta tecnologia comercializável? Porque também tem isso: não basta ser um professor Pardal supercriativo, inventor de mil e uma tecnologias inovadoras. É necessário criar uma empresa que faça essa tecnologia chegar aos usuários por um preço razoável. Isso requer não só o gênio criativo, mas também, e principalmente, a capacidade de captar o capital necessário para o desenvolvimento de uma forma de fazer chegar a tecnologia para os consumidores. Que são, afinal, os que darão o veredito final sobre o valor agregado daquela tecnologia.

A nova fronteira tecnológica está na Internet móvel. Ao conectar tudo e todos em qualquer lugar, a Internet móvel abre campos insuspeitados de ganhos de produtividade. E agregar valor nada mais é do que fazer mais com menos, entregando o mesmo produto por preços menores ou produtos novos por preços acessíveis. Não é à toa que as empresas mais valiosas do mundo hoje são as que exploram essa tecnologia.

Só que, para chegar lá, existe um caminho tortuoso e incerto de erros e acertos. Para cada Facebook que dá certo, milhares de outras empresas que tentaram caminhos alternativos fracassaram. E é preciso capital intensivo para testar todos esses caminhos. O caminho até o Santo Graal da tecnologia é coalhada de cadáveres.

Voltemos à questão das plataformas de entrega. Imaginemos o mundo antes dessa tecnologia. Cada entregador deveria procurar um emprego em milhares de pequenos comércios que tivessem tomado a decisão de manter frota própria, ou em centenas de pequenas empresas de entregas. Os comércios tinham que manter frotas próprias ou contar com as pequenas empresas de entrega. E os usuários deveriam contratar essas pequenas empresas de entrega ou comprar de pequenos comércios com frotas próprias. Um esquema claramente improdutivo, se comparado aos aplicativos.

Hoje o usuário tem, na palma da mão, acesso a milhares de comércios e milhares de entregadores. E os comércios não estão mais na mão das pequenas e ineficientes pequenas empresas de entregas. E, mais importante que isso, têm condições de atingir públicos muito maiores, que saberão sobre a existência de seu pequeno comércio através do aplicativo. Aliás, esse é o grande pulo do gato: publicidade. A entrega é quase mero detalhe.

Ter braços, pernas, carros, bikes e motos é como ter o grão do café. O valor agregado é muito baixo, perto do que fazem os aplicativos de entrega. Por isso, moto e cicloboys recebem as migalhas, assim como os plantadores de café. Boulos nunca vai entender isso.

Quem é o patrão?

Greve é um direito inalienável de qualquer trabalhador. Mas, antes de tudo, trata-se de um fenômeno econômico. E, como qualquer fenômeno econômico, obedece a certas leis. O que nos permite, com algum grau de precisão, prever o seu resultado.

Qualquer greve envolve risco para ambas as partes do conflito: os patrões podem perder produção e faturamento, os empregados podem perder salário e até o emprego. A deflagração de uma greve ocorre quando os trabalhadores avaliam que o patrão tem mais a perder do que eles próprios.

O risco do patrão é tanto maior quanto mais difícil for a reposição desses trabalhadores em greve. Greves no setor metalúrgico, por exemplo, são uma dor de cabeça para os patrões, pois é difícil repor funcionários treinados durante anos em suas funções. Além disso, custa muito caro demitir um funcionário desses. Por isso, quanto mais especializado for o empregado, maior o risco do patrão durante uma greve. Dizemos, neste caso, que a barreira de entrada nesse mercado de trabalho é muito alta.

Com todo respeito aos motoboys, em uma atividade econômica em que qualquer um pode atuar alugando uma bicicleta, a barreira de entrada é muito baixa. O que significa que o risco da greve é muito maior para o empregado do que para o patrão. (Aqui estou usando a terminologia empregado-patrão em uma relação muito mais difusa do que a relação trabalhista clássica. Mas serve para o raciocínio). Em outras palavras: quanto tempo os motoboys podem ficar sem receber? Qual a chance de que outros motoboys se aproveitem da paralisação para entrar no mercado?

Uma greve explicita um conflito distributivo: o capital humano disputa com o capitalista, dono do capital físico, a renda gerada pela produção. Este conflito tem três possíveis resoluções: i) o capitalista mantém a sua renda, ii) o capitalista cede parte de sua renda para os empregados ou iii) a renda aumenta por meio do aumento do preço do produto. Neste caso, o consumidor é que transfere a sua renda para os empregados. A resolução desse conflito distributivo não depende da boa ou da má vontade dos agentes envolvidos. A realidade econômica se impõe. Se o patrão considerar que a renda que está auferindo é insuficiente para remunerar o risco do seu capital, ele fecha o negócio. Se os empregados considerarem que a renda que estão recebendo é insuficiente e conseguirem se colocar em outras empresas, o negócio fecha. Se o consumidor deixar de comprar o produto pelo novo preço, é o fim do negócio. Qualquer empreendimento de sucesso é o resultado de um tênue equilíbrio entre esses três agentes.

No caso dos motoboys, estes claramente estão de olho na renda do patrão. No caso, os aplicativos. A julgar pelos resultados da única companhia de capital aberto do ramo, o Uber, o capitalista ainda está fazendo prejuízo com o negócio. De modo que a margem para aumentar a renda dos empregados parece baixa. Poderia se tentar o aumento do preço do produto. Resta saber se o consumidor concorda com isso.

Aliás, por falar em consumidor, há muitos que se condoem das condições de trabalho dos motoboys e concordam com suas reivindicações. Neste caso, é fácil resolver: basta abrir mão individualmente de sua renda e pagar uma gorda caixinha para os motoboys que entregam os produtos em sua casa. Aliás, nessa relação, o verdadeiro patrão é o consumidor. O aplicativo é apenas uma tecnologia que une patrões e empregados.