Invadir ou não invadir, essa é a questão

Normalmente gosto de ler a coluna de Thomas Friedman, do NYT. Ele escreve bem, e é sempre um prazer ler um bom texto, apesar de, na maior parte das vezes, não estar de acordo 100%. É o caso da coluna de hoje.

Friedman defende a ideia (que certamente está em debate no governo e na sociedade israelenses) de que a melhor estratégia para Israel, no momento, é evitar uma invasão terrestre à Gaza. O colunista lista basicamente três razões em defesa de sua tese: 1) Israel melhoraria sua imagem internacional, 2) uma vez instalado no território, Israel e os judeus seriam acusados de tudo de ruim que acontecesse lá e 3) a invasão cumpriria os planos dos inimigos de Israel, que ficariam “devastados” se isso não acontecesse.

Bem, vamos lá. Com relação ao primeiro ponto, basta ver as reações ao massacre daqueles que já têm má vontade com Israel. De Harvard até as redações do mundo inteiro, a opinião pública global abusou das conjunções adversativas para condenar os ataques, quando não os comemoraram efusivamente. Se nem mesmo o que aconteceu depois de 07/10 fez a opinião pública se mover, por que uma invasão de Gaza pioraria a situação? O único período em que verdadeiramente Israel contou com a boa vontade da opinião pública foi logo após abrirem-se os fornos crematórios na Europa. Isso durou alguns poucos anos, janela aproveitada para a criação do estado de Israel. Na medida em que a memória do Holocausto foi se desvanecendo, Israel e os judeus voltaram ao seu papel de sempre, o de vilões internacionais. Achar que não invadir Gaza mudará essa visão talvez seja um pouco ingênuo demais.

O segundo ponto é ainda mais risível. Israel JÁ É HOJE culpado por tudo de ruim que acontece em Gaza e, by the way, na Cisjordânia também. Em entrevista na Globo News no dia dos atentados, uma “especialista em Gaza” afirmou que Israel controla água, energia e suprimentos de Gaza e, portanto, teria o domínio da área. “Prisão a céu aberto”, “apartheid”, “genocídio”, são as palavras fofas usadas para caracterizar a ação de Israel na região. Que diferença faria uma invasão?

O terceiro ponto é mais complexo, pois envolve entrar nas motivações das partes. Friedman assume que o Hamas fez uma jogada justamente para provocar a invasão, e que ficaria frustrado se isso não acontecesse. Eu já acho que o Hamas fez o que fez com o objetivo que todo terrorista tem: chamar a atenção para a sua causa. Pouco importa o que Israel fará de agora em diante, o seu objetivo já foi alcançado. Friedman racionaliza as ações do Hamas como se o grupo representasse um país estável em busca de espaços de poder. Não. O Hamas é só um conjunto de homens-bomba, dispostos a tudo pela causa. Qualquer que seja a ação de Israel, o Hamas já é vitorioso. Basta ver as manifestações de apoio à causa palestina no mundo islâmico e na esquerda global.

Por isso, Israel deve tomar a decisão olhando suas próprias posições, de forma a maximizar a segurança do país, independentemente da opinião pública global (que sempre estará contra) e do que deixaria o Hamas ou o Irã supostamente mais “decepcionados”. O histórico de “movimentos em direção à paz” não é bom. Dá última vez que Israel decidiu fazer algo nesse sentido, ao retirar os colonos unilateralmente de Gaza e entregar a administração da área à AP, o Hamas tomou conta. Quais seriam as consequências de deixar Gaza intacta depois dos ataques de 07/10? Essa é discussão.

A História só acontece de uma forma, os caminhos alternativos, o que “poderia ser”, serão sempre objeto de debate, nunca uma certeza. A invasão de Gaza, se ocorrer, trará várias consequências nefastas e muitos debates sobre como o mundo poderia ser melhor se a invasão não tivesse ocorrido. O fato é que o cenário alternativo é sempre mais idilico, simplesmente porque não é real.

Quem poderia imaginar…

Rapaz… quem poderia imaginar que se endividar até as tampas para jogar dinheiro de helicóptero diminuiria a pobreza só por um tempo, e tudo voltaria a ser como antes por causa da inflação? Por essa ninguém esperava…

Quer dizer, tudo voltaria a ser como antes, não. A pobreza continua a mesma, mas a dívida pública, quanta diferença! (essa é para os mais seniores, que se lembram da propaganda do xampu Colorama).

E a matéria do NYT tem um tom de alarme, como se assistência do governo tivesse o condão de mudar o patamar de pobreza de maneira definitiva. Talvez se o governo continuasse se endividando eternamente para manter a assistência no mesmo nível… bem, talvez Biden pudesse dar uma olhada para certo país na América do Sul, em que programas assistenciais existem há décadas, sem conseguirem mover o ponteiro da pobreza.

Talvez um dia se convençam de que a única forma de diminuir a pobreza é com o enriquecimento (crescimento) do país. Dinheiro do governo só serve como paliativo temporário. Enquanto o governo dá com uma mão, retira com a outra, via impostos e inflação. Trata-se de um jogo soma zero, em que o cidadão perde e os políticos populistas ganham.

Passou da hora de discutir o “novo normal”

O NYT acaba de publicar uma matéria em que os conselheiros para a área de saúde do então candidato Joe Biden pedem ao presidente dos EUA, em vários artigos, uma estratégia nova de enfrentamento ao Covid-19. Textualmente: “… eles estão pedindo a Mr. Biden que adote uma estratégia totalmente nova para a pandemia – uma que se adapte ao “novo normal” de viver com o vírus indefinidamente, não eliminá-lo”.

No final de 2020, a grande esperança da humanidade era a vacinação. Com uma parcela relevante da população vacinada, poderíamos esperar voltar à vida normal, como sempre vivemos antes dessa praga.

Pois bem, passamos o ano de 2021 vacinando toda a população dos países desenvolvidos e de boa parte dos países de renda média. Hoje, segundo o Our World in Data, países que ora enfrentam picos inéditos de contaminação, como França, Itália e Canadá, têm mais de 75% da população TOTAL já tendo recebido a 2a dose da vacina, o que significa quase 100% da população endereçável. Portanto, não existe mais a desculpa de que somente países com “baixa” cobertura vacinal, como EUA (62%) ou Alemanha (70%) é que estavam sofrendo com essa nova onda.

Dizer que está faltando um “booster” não me parece satisfatório. Quando as vacinas foram aprovadas, os testes mostravam uma eficácia não menos que espetacular, acima de 70% para a AstraZeneca, acima de 90% para Pfizer/Moderna. Falar que somente depois do “booster” poderemos voltar a ter vida normal faz lembrar o tempo em que ouvíamos que era só tomar as duas doses e poderíamos voltar a ter vida normal. Quem garante que não precisaremos tomar mais “boosters”? Teremos que tomar vacinas de 4 em 4 meses para termos vida normal?

É nesse contexto, depois de dois anos de pandemia, e com a ômicron causando recordes em cima de recordes de casos (sem aumento de óbitos) MESMO COM UMA PARTE RELEVANTE DA POPULAÇÃO JÁ TENDO SIDO VACINADA, esse grupo de médicos acima de qualquer suspeita propõe uma nova estratégia: conviver com o vírus.

Este debate encontra-se interditado por razões políticas. No Brasil, Bolsonaro vem defendendo essa tese desde praticamente o início da pandemia. Ele estava errado há dois anos, ou mesmo há um ano, pois tratava-se de uma doença sem cura, sem método confiável de prevenção e com altíssimo grau de letalidade. Hoje, essa discussão faz total sentido: uma doença respiratória, para a qual há vacinas e não causa mortes em nível acima de outras doenças, não deveria receber atenção diferente de, por exemplo, a influenza.

Cabe perguntar: se com vacinas e óbitos em níveis relativamente baixos não podemos retomar a normalidade, qual o contexto em que isso será possível? Queremos eliminar a doença como fizemos com a poliomielite? A nova onda da ômicron, com, repito, boa parte da população já vacinada, parece indicar que isso será virtualmente impossível. Estaremos, então, condenados a viver em um “perpétuo estado de emergência”, na expressão utilizada pelos médicos que aconselharam Joe Biden?

Os médicos que aconselharam Joe Biden durante a campanha sugerem vacinação de crianças, distribuição de máscaras N95 para a população e disponibilização de testagem de baixo custo. Todas medidas com o objetivo de permitir que as pessoas possam continuar indo ao trabalho, aos locais de lazer ou se reunirem sem precisar interromper essas atividades porque se identificou alguém com o vírus. Os cruzeiros que foram interrompidos, por exemplo, não o seriam nesse novo contexto, da mesma forma como não haveria interrupção se se descobrisse alguém com influenza dentro do navio.

Já é chegada a hora de discutir seriamente esse “novo normal”, sem rótulos como “negacionista” ou “coronalover”. Se isso não for feito pelas autoridades de maneira ordenada, será irremediavelmente feito pela própria população de maneira desordenada, que não vai suportar um terceiro ano de restrições para as quais não veem sentido.

A moralidade da inteligência artificial

Reportagem do NYT, reproduzida pelo Estadão, descreve os últimos avanços da inteligência artificial no campo das decisões morais. Um software batizado Delphi (em homenagem ao oráculo de Delfos) está sendo “treinado” com milhões de decisões de seres humanos reais, que envolvem algum julgamento moral. A questão que se coloca, claro, é se um algoritmo, por mais poderoso que seja, será um dia capaz de tomar decisões morais.

Em primeiro lugar, o que é moral? Não sou filósofo, então vou responder “leigamente”: moral é tudo aquilo que regula o comportamento dos seres humanos em relação aos seus pares e a si mesmo. Os seres humanos são seres morais, então todos as suas decisões carregam uma carga moral. Mesmo a decisão de escovar ou não os dentes de manhã tem implicações morais: se eu não escovar estarei dando bom exemplo ao meu filho? Estarei atentando contra a minha própria saúde? Esta pasta foi fabricada com elementos tóxicos que estão prejudicando populações indefesas? Enfim, as mais simples decisões carregam implicações morais, pelo simples fato de serem decisões humanas. Temos uma bússola interna que aponta o “certo” e o “errado” em tudo o que fazemos, o tempo inteiro.

Como tomamos decisões? Temos, internamente, um código moral, fruto de nossa formação e do nosso livre arbítrio. Quem tem filhos sabe que nem tudo é formação, nossos filhos estão constantemente tomando decisões “erradas” de acordo com o nosso próprio código moral. Há uma parcela de livre arbítrio, que é a formação recebida modulada pelas experiências pessoais.

Esse nosso código moral interno é muito claro em algumas coisas (são as nossas convicções mais profundas) e nebuloso em outras, quando ficamos em dúvida de como agir em determinadas situações. Procuramos (os mais sensatos pelo menos) conselho com pessoas em que confiamos. E confiar significa duas coisas: a pessoa não tem conflito de interesses no conselho que vai nos dar e tem um código moral com o qual, em geral, concordamos.

O pressuposto de um algoritmo que tome decisões morais é de que existe um campo comum de decisões morais “certas”. Como chegar nesse algoritmo?

Uma primeira ideia seria programar o computador com ideias simples e gerais, com as quais todos concordam. Regras como “não faça aos outros o que você não gostaria que fizessem com você” ou “o seu direito termina onde começa o meu”, arrisco dizer que são de aceitação universal. O diabo, no entanto e como sempre, mora nos detalhes. Na discussão sobre o aborto, por exemplo, quem são “os outros”? No “direito” de não se vacinar, onde começa o “direito” do outro? Regras muito gerais não resolvem o problema.

Uma outra possibilidade é confiar em um código moral externo mais detalhado. As religiões proveem esse código. Os 10 mandamentos talvez sejam o mais antigo código moral organizado que a humanidade conheceu. Muitas pessoas vivem de acordo com esses códigos, pero no mucho. As religiões hoje são encaradas mais como supermercados morais, em que as pessoas pegam nas prateleiras as regras que mais lhes convém. Muitas vezes é a vida que determina o código, e não vice-versa. E as religiões acabam se adaptando ao que as pessoas, com seus próprios códigos morais, preferem.

Eis aí o desafio de uma inteligência artificial que toma decisões morais: qual o código moral a utilizar. “Cada cabeça, uma sentença”, diz o dito popular. Fazendo a “média” dos códigos morais de milhões de pessoas, espera-se que este algoritmo se torne a “consciência moral” da humanidade. O fato é que, provavelmente, será apenas mais uma cabeça ditando regras, como todos nós fazemos. A média terá o condão de desagradar a todos, uns mais, outros menos.

Segundo a reportagem, as máquinas “ainda” têm dificuldade em lidar com temas que extrapolam a lógica matemática. Bem, se pensarmos bem, a humanidade tem exatamente a mesma dificuldade. E olha que nosso algoritmo está sendo treinado há milhares de anos.

A questão que sempre restará, tanto para a inteligência artificial quanto para a inteligência natural, é se existem um “certo” e um “errado” universais. A resposta é sim, quando tratamos da coisa genericamente (“não faça aos outros o que você não gostaria que fizessem a você”), mas tudo se complica quando descemos ao detalhe. Uma coisa é, no entanto, certa: se e quando chegarmos a um mundo onde há um consenso geral sobre o “certo” e o “errado”, pode ter certeza que este mundo será totalitário.

No filme Eu, Robô, uma inteligência artificial central chega à conclusão, muito lógica, de que, para “consertar” a humanidade, seria preciso escravizá-la e deixá-la sob o comando dos robôs, esses sim, donos de uma moral perfeita. Afinal, o mundo é bom, é o ser humano, com suas ambiguidades morais, que o estraga.