A morte como piada

Já escrevi nesta página muitos posts desancando as ideias de Eugênio Bucci. Não poderia, portanto, deixar de registrar este artigo, em que o professor da ECA-USP lamenta o festival de piadas e mensagens de ódio que invadiram a sua bolha por ocasião da morte de Olavo de Carvalho. Sem esconder suas profundas diferenças em relação ao guru do Bolsonarismo, Bucci simplesmente pede respeito diante da morte.

É óbvio que este comportamento não é exclusivo de nenhuma bolha. Posso imaginar os memes comemorando a morte de Lula, por exemplo. A piada do “CPF cancelado” quando um bandido morre é outro exemplo de comemoração. Como diz Bucci no artigo, por trás de todo crápula há um ser humano tentando respirar. E isso vale para todos os seres humanos. Todos. Por isso, se você ficou chateado com a falta de respeito pela memória de Olavo de Carvalho, tenha em conta que isso vale para qualquer ser humano.

Desta vez eu não poderia concordar mais com Eugênio Bucci.

Existe bicho-papão?

Não lembro exatamente o ano, mas certamente era no início da década passada. Minha filha estava no colegial, e fui dar uma olhada no livro de história do Brasil indicado. Estava lá: FHC havia sido um governo neoliberal, que entregou o patrimônio do povo brasileiro, mas o governo Lula veio para resgatar a dignidade. Tudo isso ilustrado por uma foto de uma mulher chorando ao olhar para o prédio do Banespa, que, como sabemos, foi privatizado em um governo neoliberal tucano.

Fui até a escola para reclamar. Aquilo era uma interpretação possível, mas não a única. O coordenador pedagógico me olhou como se eu fosse um ET e me disse: “mas o livro está certo, foi isso mesmo o que aconteceu”. E, como que para me consolar, acrescentou: “mas não se preocupe, esse livro não é dos piores, tem coisa muito pior por aí”. Saí aliviado.

Lembrei-me desse episódio ao ler o artigo de Sérgio Fausto, diretor do Instituto FHC, defendendo que o comunismo é apenas um fantasma conveniente para a extrema-direita.

Gasta duas das três colunas do seu artigo justificando esse ponto de vista com os fatos de que a URSS acabou, o Muro de Berlim caiu, a China não é mais comunista e Cuba e Venezuela são muito fracas para imporem qualquer doutrina. Ora, dois terços de um artigo somente para dizer o óbvio: o comunismo institucional não existe mais. Ok.

Mas é o último terço que nos interessa: o tal “marxismo cultural” também seria uma assombração conveniente. Como não há mais países comunistas, a extrema-direita denuncia “marxistas culturais” debaixo da cama, de modo a justificarem a sua própria agenda retrógrada. Segundo o articulista, isso não passaria de paranoia.

Assim como não notamos a atmosfera e um peixe não nota a água, os intelectuais não notam mais que estão inseridos em um mundo mental com categorias marxistas. Para o professor da escola da minha filha ou para a jornalista autora do tuíte reproduzido abaixo, em que diz que Faustão é um proletário, essa é a realidade. A única realidade possível. Então, falar de “marxismo cultural” é apenas como se um peixe dissesse “vivemos dentro da água”. É só natural.

Mas Sérgio Fausto tem um ponto. Da mesma maneira que o “marxismo cultural” toma conta de tudo, o “anti-comunismo” também é um esquema mental que perpassa todas as realidades. Tudo o que não é a agenda do líder, passa a ser “comunista”. A coisa torna-se caricata. Por exemplo, tive problemas, nas eleições de 2018, para provar que Amoedo não era “comunista”. Alguns achavam que eu era “ingênuo”, que não percebia a agenda marxista por trás daquelas belas palavras. Enfim, algo meio parecido com paranoia, como descreve o articulista.

Há uma tese, propagada principalmente por Olavo de Carvalho, de que o marxismo está tão entranhado nas estruturas da sociedade, que somente uma radicalização para o extremo oposto seria capaz de nos libertar. O seu uso continuado de palavrões (e, de modo geral, a grosseria inerente ao bolsonarismo-raiz) é somente uma das facetas dessa tática, que considera a violência (no caso, verbal) a única forma de diálogo com os marxistas.

Assim como os “intelectuais marxistas” não conseguiram ver Olavo de Carvalho e os bolsonaristas chegando, tão imersos que estavam em sua própria realidade, agora também os “intelectuais olavistas” não percebem que estão cevando, com a sua leitura peculiar da realidade e sua forma de tratar o contraditório, a volta dos “marxistas”. Quem não está em nenhum dos dois extremos acaba se cansando dessas diatribes.