A diplomacia de Lula: propaganda e realidade

A máquina de propaganda do PT está a todo vapor, com a prestimosa ajuda de jornalistas dispostos a servir de assessoria de imprensa, ao invés de apurar os fatos.

Hoje, duas páginas do Estadão movem para frente a história de que o Brasil de Lula está se tornando um ator relevante no cenário diplomático global. Na primeira, uma notinha diz que o Brasil fez duas contribuições relevantes para a resolução da ONU que condena, pela enésima vez, a invasão da Ucrânia pela Rússia. A primeira teria sido a inclusão de um pedido de que “os dois lados cessem ações hostis” (mais à frente comento o absurdo dessa proposta). A segunda seria a inclusão da “necessidade de esforços diplomáticos para alcançar a paz”.

Na segunda página, Eliane Cantanhêde afirma que tanto a Rússia quanto a Ucrânia mandaram “leves sinais” de que estariam aceitando as propostas de Lula. No caso da Rússia, o vice-ministro das relações exteriores “agradeceu ao Brasil por não enviar munições à Ucrânia e afirmou que Putin estuda a proposta de paz de Lula”.

Dá vontade de gargalhar, não fosse algo trágico. Essa posição da Rússia é muito clara sobre a quem interessa a posição do governo brasileiro. Em seguida, Cantanhêde afirma que o “cessar-fogo imediato” foi um elemento da resolução pedido pela própria Ucrânia, em linha com o que Lula defende, e que isso seria um sinal de aceitação da mediação do presidente brasileiro. Veremos que a informação está factualmente incorreta, mas mesmo que estivesse certa, ligar isso com Lula é muita vontade de babar ovo.

Vamos por partes. Em primeiro lugar, fui às fontes, como os jornalistas deveriam ter feito. A ONU publica não somente as resoluções, como também os debates que deram origem às resoluções. No caso da última resolução, foram dois dias de debates, na quarta (22) e quinta (23). Fui dar uma busca nas atas desses debates (aqui e aqui) pelas intervenções do Brasil. No primeiro dia não há nenhuma. A intervenção no 2o dia foi a seguinte:

O representante do Brasil disse que sua delegação votará a favor da resolução, pois a Assembleia Geral deve respeitar os princípios fundamentais da Carta das Nações Unidas e do direito internacional. Enfatizando que o elemento mais importante do texto é o apelo à comunidade internacional para redobrar os esforços para alcançar uma paz justa e duradoura na Ucrânia, ele disse que seu país considera o pedido de cessação das hostilidades no parágrafo dispositivo 5 um apelo a ambos os lados para deter a violência sem pré-condições“.

Estão aí os dois elementos levantados pelos jornalistas: esforços diplomáticos e cessar-fogo. O problema é que nem um e nem o outro ponto são o que os jornalistas dizem ser, os pontos devem ter sido soprados pelo governo. Vejamos.

No caso dos esforços diplomáticos, este é um ponto que já tinha sido mencionado, por exemplo, na resolução votada em outubro do ano passado. Em seu parágrafo 7, podemos ler, entre outras coisas: “… uma resolução pacífica do conflito através diálogo político, negociação, mediação e outros meios pacíficos, …”. Então, os tais “esforços diplomáticos” não foram uma ideia do Genial Guia dos Povos, mas algo que faz parte da própria natureza da ONU. Isso é tão óbvio que dá até vergonha de ter que explicar.

Mas é no segundo ponto que se encontra o ponto chave da posição brasileira. A intervenção brasileira nos debates fala de “deter a violência sem pré-condições”. Este “sem pré-condições” não está na resolução. Podemos ler no tal parágrafo 5:

Reitera a sua exigência de que a Federação Russa retire imediata, completa e incondicionalmente todas as suas forças militares do território da Ucrânia, segundo suas fronteiras reconhecidas internacionalmente, e apela à cessação das hostilidades“.

Note 1) toda a frase anterior ao pedido de fim das hostilidades, que claramente coloca a responsabilidade sobre a Rússia em relação a este movimento e 2) a ausência do “sem pré-condições” pedido pela delegação brasileira nos debates.

Ou seja, a resolução nem mostrou uma novidade em relação aos esforços diplomáticos e nem acolheu a sugestão brasileira de um cessar-fogo incondicional. E, obviamente, não foi a Ucrânia que pediu a inclusão dessa última cláusula, como sugere Cantanhêde, basta ler a intervenção da Ucrânia nos debates. Portanto, a festinha dos jornalistas em torno da diplomacia de Lula parece mais um trabalho de assessoria de imprensa do que jornalismo.

Até aqui, uma crítica ao jornalismo. A partir daqui, uma crítica (ou um lamento) sobre a posição brasileira em relação ao conflito.

A delegação brasileira pede um “cessar-fogo sem pré-condições”. Procurei, nas atas dos debates, os países que pediram um cessar-fogo ou o fim das hostilidades. Além do Brasil, Peru, Tunísia, Costa Rica, México e China pediram um cessar-fogo. Mas o Brasil foi o único que pediu um cessar-fogo a ambos os lados sem pré-condições. Desculpem-me a crueza, mas às vezes uma imagem xucra transmite melhor a mensagem: o pedido do Brasil é equivalente a pedir para que estuprador e estuprada parem de se machucar mutuamente sem pré-condições, ou seja, o estuprador pode manter o pênis dentro da vagina da estuprada, desde que parem de brigar. É ultrajante.

Encerro com a posição do Japão nos debates, um exemplo de como uma nação civilizada deveria se posicionar sobre este conflito:

HAYASHI YOSHIMASA, Ministro das Relações Exteriores do Japão, enfatizou que o projeto de resolução é sobre a paz. A paz deve ser baseada em princípios, apontou, acrescentando que, embora as hostilidades devam cessar imediatamente, isso não produziria necessariamente uma paz abrangente, justa e duradoura. “E se um membro permanente do Conselho de Segurança lançasse uma agressão contra sua pátria, tomasse seu território e então cessasse as hostilidades, pedindo paz?” ele perguntou, chamando tal paz de injusta. Seria uma vitória para o agressor se tais ações fossem toleradas e abririam um terrível precedente para o resto do planeta, disse ele, acrescentando que o mundo voltaria à selva, seja em terra ou no mar. Conclamando a Federação Russa a retirar suas tropas imediata e incondicionalmente da Ucrânia, ele observou que a Assembleia Geral exigiu isso, assim como o Secretário-Geral e a Corte Internacional de Justiça. Infelizmente, acrescentou, “a Rússia aparentemente não se importa com as resoluções da Assembleia Geral e as ordens da Corte Internacional de Justiça, como se fossem apenas pedaços de papel inútil”, disse ele, destacando também seu abuso do poder de veto e sua retórica irresponsável como um Estado com armas nucleares.

Discurso de adolescente

O secretário-geral da ONU, António Guterres, fez duro discurso, em Davos, sobre as mudanças climáticas. Mais um.

Mas, desta vez, o chefe da repartição pública global inovou. Guterres defende que as empresas de produção de petróleo devem ser responsabilizadas pelas mudanças climáticas, a exemplo das empresas de tabaco, pelo mal que causaram à humanidade.

Observando de longe, parece uma bobagem. Mas, se olharmos mais de perto, concluiremos que é, de fato, uma bobagem.

O paralelo é estapafúrdio em várias dimensões. Em primeiro lugar, com todo respeito à indústria tabagista, não faria muita diferença se os cigarros não existissem no mundo. Já o petróleo é a base da incrível diminuição de distâncias dentro das cidades e entre países, permitindo a construção das cidades tal qual as conhecemos hoje e todo o comércio internacional. Além disso, uma parte relevante da eletricidade produzida e de materiais plásticos usados para os mais diversos fins tem como base o petróleo. Podemos dizer que a civilização, tal qual a conhecemos hoje, seria impossível sem o petróleo.

Além disso, a responsabilidade da indústria tabagista é direta. Ou seja, o produto vendido pela indústria prejudica diretamente o fumante. No caso do petróleo, por outro lado, há um sem número de co-responsáveis: fabricantes de automóveis, usinas termoelétricas, fábricas em geral, casas com calefação, etc. Todos esses agentes deveriam também ser responsabilizados pela agressão ao meio-ambiente, não somente a indústria petrolífera. Na verdade, cada um de nós que anda de carro deveria pagar uma indenização.

Por fim, o que pretende o dirigente das nações desunidas? Uma ação de indenização, como ocorreu com a indústria tabagista? No limite, a depender do tamanho dessa indenização, a indústria de petróleo pode se tornar inviável. Então, quero ver os mandatários do mundo explicando para os seus eleitores os preços estratosféricos dos combustíveis ou, até mesmo, a sua completa falta. Talvez Guterres possa ajudar, enviando tropas da ONU para conter os protestos.

O secretário-geral da ONU lembra uma adolescente que faz muito sucesso com esse tipo de ideia. O único problema é que António Greterres já passou da idade de achar que discursos furibundos e descolados da realidade vão resolver alguma coisa.

A pergunta correta

Biden fez a pergunta correta: quantas gerações de soldados americanos deveriam ser enviadas para lutar por um governo em que as próprias tropas não estão dispostas a lutar?

Quando ouvimos uma mulher apanhando do marido e gritando por socorro na vizinhança, chamamos a polícia, que tem o dever legal de intervir para proteger a vítima. Os EUA estão sendo vistos, no momento, como a polícia do mundo, que não está cumprindo o seu dever de proteger os cidadãos, e principalmente as mulheres, afegãos.

Muitos se condoem da situação das mulheres afegãs. É uma situação lastimosa, sem dúvida. Mas os EUA não são a polícia do mundo. Bush ordenou a invasão do Afeganistão para caçar terroristas, não para proteger as mulheres afegãs. Os direitos das mulheres foi apenas uma consequência do processo, não o seu objetivo. Irã e Arábia Saudita também vivem sob a sharia. Os EUA vão invadir os dois países para libertar suas mulheres? De forma mais ampla, os EUA vão invadir a China para proteger os uigures? Em todo país onde houver problemas com direitos humanos, os EUA serão chamados a intervir?

Em tese, a ONU é a polícia do mundo. É no âmbito da ONU que problemas de direitos humanos devem ser tratados. O Taliban está longe de ser o único regime que não respeita direitos humanos. O que faz a ONU? Os EUA deveriam substituir a ONU como guardião global dos direitos humanos? Caiu no colo de Biden o fiasco acumulado de todos os presidentes que o antecederam, ao terem a ilusão de que conseguiriam implementar um estado democrático ocidental no Afeganistão. Coube a Biden, como dizemos no mercado financeiro, zerar a posição, estancando as perdas.

As imagens de Cabul são chocantes e, sem dúvida, a situação das mulheres no Afeganistão é uma lástima. Cabe ao povo afegão tratar de seus próprios problemas. Não existe uma polícia global, feliz ou infelizmente.

A má-vontade construída

EUA e China lideram o ranking de emissores de gases de efeito estufa.

Mas é o Brasil que será o alvo das atenções na semana do clima.

Isso porque os países com as maiores dívidas com o dito combate às alterações climáticas encontraram uma aliado de peso: a retórica inflamada do presidente brasileiro.

Na comunicação, controlamos o que dizemos, mas não o que o outro entende. Ao reafirmar estridentemente a soberania brasileira sobre a Amazônia, Bolsonaro quer dizer que a preservação da região é responsabilidade do País, e vamos cumprir nosso dever dentro dos nossos interesses. Os receptores da mensagem, no entanto, entendem que o Brasil vai destruir tudo mesmo e ninguém tem nada a ver com isso. Reforça esse entendimento a retórica do “vocês também desmataram, por que eu não posso?”.

Óbvio que há uma má-vontade da imprensa global com relação a Bolsonaro. Mas essa má-vontade é cuidadosamente cultivada pelo presidente, que não perde oportunidade de “lacrar” para o seu público interno.

O problema é quando essa má-vontade extrapola o âmbito das redações e redes sociais e vaza para as relações diplomáticas e comerciais. Via de regra, os países são pragmáticos na condução de seus negócios, e não se deixam contaminar por “embates ideológicos”. Não fosse por isso, a China seria um pária internacional. Dentro desse pragmatismo, EUA, Europa e China encontraram o vilão perfeito do clima na figura do presidente incendiário. Falta pragmatismo ao lado brasileiro.

O vexame foi dos “analistas”

Bem, ontem o Brasil foi eleito para o Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Há coisa de dois meses, escrevi um post comentando uma reportagem (logo abaixo) que colocava em dúvida as chances do Brasil nessa eleição. Segundo “círculos da ONU”, a Venezuela estava tranquila e o Brasil poderia ter menos votos do que o país que mantém presos políticos e passa com tanques sobre manifestantes nas ruas. Seria um vexame.

Anteontem, baixou o “pânico”: a Costa Rica havia se candidatado para ser uma alternativa à Venezuela, mas poderia acabar roubando a vaga do Brasil.

Resultados apurados, o Brasil ganhou a indicação de lavada. Poderia ser ainda maior, não fosse a entrada da Costa Rica na última hora. Não que seja motivo de orgulho: afinal, um Conselho de Direitos Humanos que tem a Venezuela como membro (que vai substituir Cuba!) não é que vá defender os direitos humanos, não é mesmo? Mas, pelo menos serviu para mostrar que o jornalismo local precisa escolher outros “círculos da ONU” para se informar sobre o que anda acontecendo pelas bandas de Nova York.

Não entro em clube que me aceita como sócio

Bem, só o fato da Venezuela (a Venezuela!) poder pleitear uma vaga no Conselho de Direitos Humanos, sendo apoiada por Rússia (!), China (!) e países árabes (!) já demonstra a contradição em termos dessa comissão da ONU.

A possibilidade do Brasil não ser aprovado para esse órgão me faz lembrar Groucho Marx, quando declinou convite para participar de um clube muito exclusivo: “não entro em clube que me aceita como sócio”. No caso, será uma honra não ser convidado.

A pegada de carbono nossa de cada dia

A jovem ativista sueca vai de veleiro para Nova York porque “os aviões deixam uma grande pegada de carbono”.

Muito bem. Talvez fosse interessante também ir nua. A indústria de vestuário é sabidamente uma das mais poluentes do mundo. A “pegada de carbono” é gigantesca.

Também teria que deixar de usar o iPhone. Ela e seus quase um milhão de seguidores sustentam uma indústria que envolve produção de bateria e plástico, cuja “pegada de carbono” é enorme. Sem falar das incontáveis viagens de avião que os executivos de todas as empresas envolvidas na produção do aparelhinho são obrigados a fazer para viabilizar a sua comercialização a preços acessíveis.

Ok, a viagem da ativista num veleiro é só simbólica, para nos alertar a todos sobre os riscos do “aquecimento global” e pressionar os governos para que “façam alguma coisa”. O único problema é que “fazer alguma coisa” que realmente ultrapasse o nível do simbolismo significa voltar atrás no processo civilizatório. A expectativa de vida da humanidade dobrou nos últimos 100 anos não APESAR da “pegada de carbono”, mas POR CAUSA dela.

A imensa maioria da população mundial não tem tempo nem recursos para ir de veleiro da Suécia para os EUA. É necessário deixar “pegada de carbono” para fazer essa viagem. Exigir que todos nos locomovamos de veleiro é voltar ao século XVI, época das caravelas. E, se realmente quisermos diminuir a “pegada de carbono”, esta volta ao passado não deve se restringir aos transportes.

Ir de veleiro para Nova York é uma forma de chamar a atenção. E conseguiu, senão eu não estaria escrevendo esse post. Mas também é útil para mostrar quão inviável é controlar a “pegada de carbono” e quanto de hipocrisia tem nesse movimento.

Por que os venezuelanos não conseguem ajuda?

O Alto Comissariado da ONU para Refugiados (não consigo ler esse nome sem pensar nos comissariados da Nomenklatura) está preocupado. Afinal, não consegue arrecadar dinheiro para ajudar os refugiados venezuelanos, apesar de, dizem, já serem em maior número do que os refugiados sírios.

Talvez o Alto Comissariado devesse rever o seu conceito de “refugiado” para entender o que está acontecendo.

Refugiado é alguém que escapa de uma tragédia infligida por terceiros. Uma guerra ou uma catástrofe natural são os típicos exemplos de tragédia.

No caso da Síria, a guerra civil tomou proporções muito maiores do que simplesmente a luta entre facções internas. O que começou como um levante inspirado pela chamada “primavera árabe” em 2011, se transformou em um campo de batalha que envolve curdos, sunitas, xiitas, Estado Islâmico, Turquia, Hesbollah, Rússia, EUA, OTAN, Irã, Arábia Saudita, Qatar,… esqueci alguém? Várias guerras sendo travadas ao mesmo tempo por atores que se entrelaçam em um balé insano. No meio disso tudo, a população não engajada, que se torna refugiada.

E a Venezuela? Bem, a Venezuela não está em guerra civil. Há protestos como em qualquer lugar do mundo, mas longe de uma guerra civil. Também não houve uma catástrofe natural.

O que está acontecendo na Venezuela são simplesmente as consequências de uma gestão econômica patética, realizada por um governo democraticamente eleito. Ok, a essa altura do campeonato, não podemos mais chamar aquilo de democracia. Mas Chávez, e depois Maduro, chegaram aonde chegaram porque o povo assim o quis. Ainda hoje, há forte apoio popular ao governo, algo quase messiânico.

Então, por que alguém doaria dinheiro para um “refugiado” venezuelano? Poder-se-ia dizer que a situação dos venezuelanos é a mesma das crianças em uma família cujo pai é viciado em jogo e a mãe bebe. Essas crianças estão desamparadas e fogem de casa. Neste caso, as crianças não têm culpa, e devem ser ajudadas.

Mesmo que esse paralelo fosse verdadeiro, a primeira exigência de quem fosse ajudar seria retirar o pátrio poder do pai que joga e da mãe que bebe. Caso contrário, o fluxo de crianças desamparadas seria interminável. Qualquer ajuda seria como enxugar gelo. Sem a substituição do governo venezuelano, qualquer ajuda significa desperdício de recursos.

Além disso, os venezuelanos não são crianças. O povo venezuelano construiu sua própria sorte, por ação, conivência ou omissão. Hoje estão colhendo os frutos de suas próprias escolhas, não há ninguém externo a se culpar, ao contrário da Síria. No Brasil, os cidadãos, ao notarem que estavam indo pelo mesmo caminho, derrubaram do governo o partido amigo de Chávez e Maduro.

Mas talvez o Alto Comissariado da ONU não esteja preparado para admitir que a crise venezuelana seja fruto do socialismo bolivariano do século XXI. E vai continuar procurando os motivos para as baixas doações nos lugares errados.