O espírito do capitalismo

Este é o segundo post sobre o filme indiano Pad Man. Vou abordar aqui o aspecto econômico da história.

Trata-se da incrível história de um inventor indiano que, levado pelo amor que tem à esposa, decide encontrar uma solução para fabricar um absorvente higiênico de baixo custo. A Índia, como sabemos, é um país muito pobre, e somos informados que somente 12% das mulheres indianas têm acesso a absorventes higiênicos. O resto das mulheres precisa se virar com paninhos.

A história começa com o inventor comprando na farmácia um pacote de absorventes, que custa 55 rúpias. Para o indiano médio, trata-se de uma pequena fortuna, impossível de ser mantido como hábito. A esposa do inventor recusa-se a usar os absorventes, pois o inventor tem irmãs que também teriam direito a esse luxo, e não há dinheiro para comprar absorventes para todas.

O inventor, então, resolve estudar o produto. Ele fica admirado como um pouco de algodão embrulhado em um pedaço de papel pode custar tão caro. Ele diz para si: isso eu posso fabricar por uma fração do preço. Começa, então, a sua saga.

O inventor pega um pouco de algodão, embrulha em um certo tipo de papel seda, e entrega para a sua esposa. Esta usa, mas a coisa não funciona: vaza durante a noite, e ela é obrigada a lavar todas as suas roupas.

Bem, não vou aqui contar mais detalhes para não dar spoiler, mas o fato é que aquela “coisa simples”, que aparentemente seria fácil de fazer, na verdade envolve alta tecnologia, fruto de extensa pesquisa e muitos testes ao longo de anos.

Olhe o mundo à sua volta. Tudo, absolutamente tudo o que usamos, que damos como natural que estejam à nossa disposição, é fruto de um longo processo de desenvolvimento tecnológico. A exata composição química, o mecanismo perfeito de funcionamento, o processo mais eficiente de fabricação, tudo isso é resultado de milhões de horas combinadas de muitos e muitos seres humanos, em um processo de erros (muitos) e acertos (poucos) sucessivos e cumulativos. Ao assistir ao filme, duvido que você não ficará surpreso com a tecnologia por trás de um simples absorvente higiênico.

Mas você pensa que chegar ao absorvente perfeito é o ponto final da jornada? Ingenuidade sua e do inventor. Agora começa a verdadeira saga: como fazer chegar o produto ao consumidor final? Pode parecer óbvio isso que vou dizer, mas um produto não se vende sozinho. É preciso ter um modelo de negócios em torno do produto. Uma empresa.

Um inventor consegue inovar, mas aquele invento somente será útil para a humanidade se chegar nas mãos dos consumidores. E somente uma empresa, um modelo de negócios sustentável, consegue atingir este objetivo.

Novamente, olhe em torno de si. Todos os produtos e serviços que você usa chegaram a você de alguma forma. São invisíveis os imensos desafios de logística e mercadológicos que devem ser vencidos para que o produto ou serviço chegue a você a um preço suficientemente atrativo para que um número suficientemente grande de pessoas compre, de modo que a empresa que fabrica o produto sobreviva.

Em determinado momento do filme, o inventor precisa pensar justamente nisso: qual o melhor modelo para fazer chegar um absorvente barato ao maior número possível de mulheres? A solução é bastante engenhosa.

Por fim, a última consideração: o empresário. O inventor do filme não é somente um inventor. É, principalmente, um empresário. Incansável na busca de soluções, obcecado pelo seu objetivo. Ele simplesmente vai passando por cima dos obstáculos que vão surgindo. Existe, claro, o componente sorte, mas, para que a sorte trabalhe a seu favor, é necessário que você trabalhe antes em favor da sorte.

O empresário é a alma do capitalismo. É o sujeito que consegue coordenar pessoas e meios de produção de modo a fazer chegar ao consumidor produtos e serviços que criam valor, a preços que estes podem pagar, mantendo essa operação viva e operante ao longo do tempo. Não é para qualquer um.

Um país é tão mais rico quanto mais o seu espírito empreendedor é incentivado e premiado. O resto é teoria acadêmica.

Escolha política não define caráter

Assisti ontem a um filme indiano despretensioso mas muito bom: Pad Man. Trata da história de um empreendedor indiano que bolou uma máquina para fabricar absorventes higiênicos baratos, com o fim de popularizar o seu uso entre as mulheres indianas.

Vou escrever dois posts a respeito, um mais “sociológico” e outro do ponto de vista econômico. Este é o primeiro, que abordará o aspecto sociológico.

A inspiração que levou à invenção foi a esposa do inventor. Condoído pelo fato de que a esposa usasse um pano pouco higiênico “naqueles dias”, ele foi comprar absorventes na farmácia. No entanto, custavam uma pequena fortuna, e a esposa se recusou a usar, dizendo que não era justo, pois o inventor tinha irmãs que também tinham o mesmo direito, e não havia dinheiro para comprar para todas. Começa daí a saga para chegar em algo mais barato.

O grande obstáculo enfrentado pelo inventor não foi tecnológico, como se poderia supor. Foi sociológico: em uma sociedade extremamente conservadora, os homens não podiam conversar sobre esse assunto, quanto mais testar um invento. Não havia forma de avançar se as mulheres simplesmente se recusavam a usar o absorvente fabricado pelo inventor.

Houve o choque de duas mentalidades: a do inventor, que sinceramente queria resolver o problema mensal da esposa, e o da sociedade onde ele estava inserido, cuja escala de valores dava mais importância para a intimidade das mulheres do que para a sua saúde.

Nós, com nossa mentalidade ocidental urbana, nos colocamos automaticamente ao lado do inventor na história: que absurdo, pensamos, a postura da esposa e de seus parentes, que rechaçam, por uma tradição tola, a oportunidade de melhorar o padrão de vida das mulheres.

Isso me fez um pensar um pouco sobre os nossos posicionamentos políticos. As pessoas têm formas diferentes de fazer o que consideram “o bem”. As opções políticas não são, em grande parte do tempo, uma sinalização da retidão moral de ninguém. São apenas opções diferentes para se fazer “o bem”.

Em certos círculos, é preciso tomar cuidado ao dizer que se vota em Bolsonaro, pois isso torna a pessoa homofobica, racista, misógina e, mais recentemente, genocida. Assim como em certos círculos é preciso tomar cuidado ao dizer que se vota em Lula, pois isso torna a pessoa conivente com a ladroagem e com regimes liberticidas.

Ao ligar a opção política a um problema de caráter, fecha-se qualquer possibilidade de diálogo civilizado. Afinal, como dialogar com alguém que não tem caráter? No filme, as pessoas da aldeia acreditavam piamente que o inventor era um mau caráter que queria se aproveitar das mulheres. Não havia possibilidade de diálogo.

Quando se trata de política, essa mistura entre moral e opinião é um veneno. A política é o campo onde os seres humanos organizamo-nos como sociedade civilizada. Fora da política, o que temos é a barbárie, a lei do mais forte. E a política, que deveria ser o campo do entendimento, do mínimo denominador comum, muitas vezes se converte em campo de batalha moral. Somos o “nós contra eles”, em que seres humanos que se acham “do bem” lançam o seu “fatwa” sobre os seres humanos “do mal”.

Conheço gente muito boa e honesta que votou em Haddad e vai votar em Lula na próxima eleição, e gente muito boa e honesta que votou em Bolsonaro e vai votar em Bolsonaro novamente na próxima eleição. O voto não deveria servir de parâmetro para o caráter de uma pessoa. O voto é apenas o resultado de uma escala de valores que, às vezes, não é o nosso. Todos querem o bem, apenas por caminhos diferentes.

Sinceramente, acho que falta uma abertura para entender o outro. Colocar-se no seu sapato, como dizem os americanos. Procurar entender a escala de valores que rege as suas preferências e decisões. Seria bom se reconhecêssemos que somos imperfeitos na compreensão do mundo que nos cerca, temos uma visão muito particular e limitada pela nossa formação, história de vida e psicologia. Em determinado do filme, o inventor consegue furar o bloqueio social. Isso só acontece quando ele se coloca no lugar do outro, respeitando a sua escala de valores.

Tenho respondido a certos comentários aqui com um “essa é a sua opinião”, apesar de até poder concordar com a pessoa, e de fato concordar na maioria das vezes. No entanto, quero tentar mostrar, com isso, que existem outras opiniões e posicionamentos, e seria interessante procurar compreender porque isso acontece, de modo a acertar mais na análise da realidade. Da realidade como ela é, não como nós desejaríamos que ela fosse.

É sempre muito agradável conversar com pessoas que concordam conosco 100%. Mas é pouco útil. Saímos mais enriquecidos e conscientes de nossas limitações se ouvimos opiniões diversas, procurando entender a escala de valores que está por trás daquelas opiniões. Entender não significa concordar. Eu posso achar, por exemplo, que o PT e o Lula são a pior desgraça que aconteceu ao Brasil nos últimos 30 anos, ou que Bolsonaro é um genocida cruel. Mas isso não me permite desconfiar da integridade de quem discorda de mim.

Enfim, sei lá. É isso.

PS.: Não quero, de maneira alguma, relativizar o bem e o mal. Há coisas certas e há coisas erradas. Os políticos fazem coisas certas e fazem coisas erradas. Isso não está em discussão. O meu ponto é que o apoio a político A, B ou C não deveria ser medida do caráter de ninguém. Nós apenas arranhamos a superfície da natureza humana.