Rotativo do cartão: nada muda

Emissores (bancos) e credenciadoras (maquininhas) de cartão de crédito não chegaram a um acordo, e passa a valer, a partir de 1/1, o teto para os juros do rotativo do cartão de crédito. Mas esse teto funciona de maneira diferente do que pensa o ministro da Fazeenda. Vejamos.

Segundo Haddad, o teto para os juros será, a partir de 2024, de 100%, implicitamente comparando este número com os juros atuais do rotativo, em torno de 430% ao ano. Mas a lei do Desenrola não menciona “100%”. Em seu artigo 28, parágrafo primeiro, a lei 14.690 de 3/10/2023 diz que “o valor cobrado […] a título de juros […] não pode exceder o valor original da dívida”.

Ou seja, os juros não poderão exceder 100% do valor original da dívida. Mas falta um elemento essencial nessa formulação, e que faz toda a diferença: o tempo.

430% ao ano de juros equivale a aproximadamente 15% ao mês. Se os bancos continuarem a cobrar 15% ao mês no rotativo como fazem hoje, em 5 meses a dívida dobra. Ou seja, os bancos têm 5 meses para renegociar essa dívida em novos termos, antes de atingir o limite da lei. Na prática, isso já acontece, porque os bancos são obrigados, desde 2017, a oferecerem um parcelamento para a dívida do cartão depois do primeiro mês em que o cliente não paga o saldo total da fatura. Então, esses 430% ao ano são, na verdade, 15% ao mês, porque depois essa dívida é trocada por outra. Portanto, esse limite é inócuo, e os bancos continuarão cobrando 430% ao ano de juros no rotativo.

Quem paga a conta do parcelado sem juros?

Esse anúncio é bem interessante, pois, ao contrário dos outros da mesma natureza, levanta um pouco o véu que esconde a “maquininha” que move a indústria de cartões de crédito.

Publicado pela Abranet (Associação Brasileira da Internet, o que inclui as empresas de maquininhas, aqueles aparelhos que são usados para pagar as contas com cartão de crédito), o anúncio afirma que o parcelado sem juros é possível porque as empresas de maquininhas antecipam o dinheiro para os lojistas a juros baixos. Assim, como o lojista tem o dinheiro na mão, poderia facilitar a compra, parcelando sem juros. Pelo menos, foi isso que entendi do argumento.

Da forma como o processo está descrito, parece que os bancos são absolutamente dispensáveis nesse esquema. As maquininhas emprestam o dinheiro para os lojistas, os lojistas vendem em parcelas sem juros, e os consumidores pagam as parcelas para as maquininhas. Só que não. Se fosse assim, os bancos estariam cuidando de outras coisas e não do parcelado sem juros, uma atividade que estaria restrita aos lojistas e às empresas de maquininhas.

Acontece que os bancos não são dispensáveis nesse processo. Na verdade, os bancos são essenciais nesse processo. Veja o esquema abaixo, onde temos a interação dos agentes nesse processo de pagamento.

Note como a empresa de maquininha recebe dinheiro do banco, e não do consumidor. Ou seja, o risco de crédito da maquininha é o banco. Por isso ela pode cobrar “os juros mais baixos do mercado” do lojista. A inadimplência dos consumidores acaba no colo dos bancos, que precisam cobrar juros proporcionais a essa inadimplência. Não vamos esquecer que toda essa conversa começou com os juros estratosféricos do rotativo do cartão. Os bancos disseram: querem diminuir os juros do rotativo? Sem problemas. Vamos compensar com os juros do pagamento das compras parceladas.

Algum tempo atrás, os bancos dominavam o setor de maquininhas, com a Cielo (Bradesco/BB) e Redecard (Itaú) liderando esse mercado. Assim, o que os bancos perdiam nos cartões era compensado com o que ganhavam com as maquininhas. Com a abertura desse mercado, os bancos ficaram com o osso da inadimplência dos consumidores enquanto as maquininhas ficaram com o filé mignon das vendas parceladas a perder de vista “sem juros”.

A solução para o parcelado sem juros é deveras simples: basta eliminar os bancos no processo. Assim, as empresas de maquininhas suportariam o peso da inadimplência dos consumidores. Desconfio que, nesse caso, a taxa de juros cobrada dos lojistas não permaneça “um dos menores juros do mercado”.

Repita comigo

Repita comigo:

“O dinheiro tem valor no tempo”

“O dinheiro tem valor no tempo”

“O dinheiro tem valor no tempo”

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Bem, o pessoal do parcelado “sem juros” deve estar se sentindo muito ameaçado. Ontem, foi um anúncio de página inteira patrocinado pelas associações de sempre. Hoje, um outro anúncio de página inteira, dessa feita assinado pelos líderes das bancadas do comércio na Câmara e no Senado. Como se parlamentares fossem gastar do próprio bolso para pagar por um reclame de página inteira no jornal.

De qualquer modo, acho que essa campanha está incompleta. Por que não pedir o fim dos juros em todos os empréstimos? Sim! Desde o consignado, passando pelo crédito pessoal e capital de giro das empresas até o crédito imobiliário, tudo deveria ser sem juros! Aliás, a própria dividia do governo não deveria pagar juros. Já imaginou? R$ 800 bilhões liberados por ano para gastar no crescimento do país e no bem-estar de seu povo?

Por que não? Por que só os portadores de cartão de crédito teriam esse privilégio? Aquele plástico teria alguma espécie de superpoder, seus componentes químicos anulariam a mais básica lei das finanças, a que afirma que o dinheiro tem valor no tempo? Os acadêmicos brasileiros estão perdendo tempo, deveriam publicar artigos anunciando e descrevendo essa descoberta ao mundo. Seria Prêmio Nobel na certa! Imagine só, o mundo inteiro se beneficiando dessa invenção tupiniquim!

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Repita comigo:

– Não existe parcelado sem juros.

– Não existe parcelado sem juros.

– Não existe parcelado sem juros.

Ainda sobre o parcelado sem juros

Raras vezes um artigo meu recebeu tantas críticas quanto o de ontem, a respeito do parcelado sem juros. As críticas podem ser agrupadas em três tipos de argumentos: 1) lobby dos bancos, 2) liberdade dos agentes econômicos e 3) estratégia comercial legítima. Como demonstração de apreço pelo contraditório, vou procurar, mui respeitosamente, argumentar contra cada uma dessas tres objeções.

O primeiro argumento diz que cobrar juros nas compras parceladas só interessa aos bancos e, portanto, deve ser algo ruim. Antes de descartar liminarmente esse “argumento” conspiracional, afirmo que é justo o oposto: ao permitir a compra à vista com desconto, o banco é sacado para fora do esquema, com ganhos para vendedores e compradores. Demonstro isso mais à frente.

O segundo argumento é filosófico: a liberdade deve prevalecer nas relações comerciais. Portanto, qualquer arranjo livremente aceito entre as partes deve ser respeitado. Alguns amigos, inclusive, acharam estranho que eu, supostamente defensor de princípios liberais, compactuasse com ideias de regulação e limites impostos pelo Estado na livre relação entre os agentes econômicos. Essa objeção é séria e merece uma resposta mais elaborada.

Em primeiro lugar, e de maneira mais genérica, liberalismo não é anarquismo. Uma economia liberal não vive sem regras e regulações. Inclusive, a segurança jurídica, essencial para o crescimento econômico, supõe a existência de regras. Sendo assim, ser contra qualquer regulação não é ser liberal, é ser anarquista, o que é outra coisa.

Em nosso caso específico, a liberdade somente pode ser plenamente exercida se todos os agentes econômicos estiverem plenamente informados sobre os termos da troca que está sendo realizada. Caso contrário, não há verdadeira liberdade, apenas um seu arremedo. Se eu sou informado de que há uma cama elástica me esperando se eu pular pela janela, quando na verdade não há nada, minha decisão de pular não foi livre, pois não fui devidamente informado das consequências.

Pode-se argumentar que a tarefa de buscar informações é, no caso, do comprador. Caberia a mim olhar pela janela e verificar se há mesmo uma cama elástica me esperando caso eu pule. Nesse sentido, caberia ao comprador simplesmente saber que há juros embutidos no parcelado sem juros, assim como cabe ao comprador verificar os preços da concorrência, não cabendo ao vendedor informá-los. É um bom ponto, a menos de um problema: os preços da concorrência são acessíveis, ao passo que os juros são inacessíveis. Eles estão lá, embutidos no preço, e não há como saber o seu montante. E pior: a propaganda AFIRMA que não há juros. Trata-se de propaganda enganosa, que envenena qualquer relação comercial livre. Um dos objetivos principais da regulação econômica é justamente eliminar essas assimetrias informacionais, tópico que exploraremos a seguir.

O terceiro argumento é mais prático e estipula o seguinte: o comerciante escolhe obter menos margem ao vender à prazo pelo preço à vista, tendo como contrapartida um maior volume de vendas. Em outras palavras, o vendedor sacrifica a sua margem unitária para vender mais e, supostamente, obter lucros maiores na operação como um todo, somente possível porque o parcelado sem juros permitiu vender um volume maior. Sendo assim, a prática não teria nada de imoral, seria apenas mais um arranjo comercial entre as partes envolvidas.

Este argumento é bem elaborado, e confesso que levei algum tempo para entender o seu problema. Vejamos um exemplo numérico. Um comerciante compra uma mercadoria por 70 e vende por 100. Sua margem, portanto, é de 30. No entanto, para aumentar o volume de vendas, o comerciante aceita parcelar a compra em 10 vezes sem juros. Neste caso, ao custo de 70 da mercadoria junta-se o custo financeiro dessa operação, pois o comerciante precisa do dinheiro à vista. Ao antecipar esse recebível, o comerciante obtém 95 ao invés dos 100, sendo 5 o custo financeiro. Sua margem, portanto, passa a ser de 25, e não mais de 30. Tudo muito bem até aqui: o comerciante recebeu 95, a instituição financeira recebeu 5 e o consumidor pagou o equivalente a 97 (as 10 parcelas de 10 trazidas a valor presente pela taxa de juros de um investimento qualquer). A diferença de 2 entre aquilo que o consumidor pagou (97) e o comerciante recebeu (95) é a margem da instituição financeira, o chamado spread bancário.

A questão que se coloca, no entanto, é a seguinte: por que o comerciante simplesmente não coloca o preço da mercadoria em 96? Nesse preço, comerciante e consumidor estariam dividindo entre si o spread bancário: a margem do comerciante seria 1 a mais (25 para 26) e o preço para o consumidor seria 1 a menos (97 para 96). Por que simplesmente não eliminar a instituição financeira da jogada, em um jogo ganha-ganha? A resposta é simples: o jogo seria percebido como ganha-ganha somente se houvesse simetria de informações. Ocorre que a matemática acima é totalmente opaca para o consumidor. E é aí que entra a sacanagem: a imensa maioria entra nessa com a ilusão de que se trata de uma escolha sem custo algum. Aqui, voltamos à argumentação anterior: somente pode existir real negociação entre as partes quando ambas conhecem todos os termos do negócio. Parcelar sem juros pode ser uma boa estratégia mercadológica para o comerciante, pois aumenta as suas vendas. Mas não o é para o consumidor, que é induzido a comprar uma mentira.

Nesse sentido, o mercado construído pelo parcelado sem juros é um exemplo adaptado do que o economista e prêmio Nobel George Akerlof chamou de “lemon market”, um mercado em que o vendedor tem mais informações sobre o produto que está vendendo do que o comprador. O típico exemplo é o mercado de carros usados. Adaptando o conceito ao nosso caso, a mercadoria vendida a prazo “sem juros” é mais cara do que o consumidor é levado a acreditar. O vendedor sabe disso, mas não o consumidor. Para resolver essa assimetria, Akerlof sugere, entre outras coisas, aperfeiçoar o sistema informacional, de modo a diminuir a assimetria de informações entre vendedores e compradores. Cobrar juros ao parcelar uma compra é uma maneira de fazê-lo.

Parcelado sem juros, um instrumento de deseducação financeira

Anúncio de página inteira defendendo a manutenção do crédito parcelado sem juros no cartão. Aliás, esse não é o primeiro assinado pela Associação de Bares e Restaurantes (Abrasel). Fica aqui a charada: porque um setor que não vende à prazo está tão interessado no assunto? Sigamos.

Tem havido muita controvérsia a respeito dessa modalidade de crédito, principalmente em relação a quem estaria pagando os juros embutidos no parcelamento. Que há juros, não há dúvida. A prova é que o consumidor, ao parcelar, pode investir o dinheiro não gasto na compra à vista e obter rendimentos no mercado. No final, terá mais dinheiro do que o valor do bem adquirido. A diferença é uma parte dos juros embutidos.

Fugindo um pouco dessa discussão sobre a quem pertence a conta, gostaria de abordar a questão do ponto de vista da educação financeira. O parcelado sem juros é um instrumento de deseducação financeira, na medida em que induz o consumidor a adquirir bens de valores mais altos “sem dor”.

Se o valor do bem aumentasse pelo fato de se estar parcelando, o consumidor se veria menos tentado a parcelar, diminuindo seu apetite pelo consumo. Não por outro motivo, os comerciantes estão alucinados para manterem o “carnezinho gostoso” do parcelado sem juros.

E não resolveria se os comerciantes diminuíssem seus preços, de modo a que o total parcelado igualasse o preço anterior quando acrescido dos juros. O consumidor “ancora” a sua percepção de preço no preço à vista atual, ele não conhece o preço à vista anterior à diminuição do preço. Em outras palavras, o parcelado sem juros é uma maneira muito mais eficaz de induzir o consumo do que um desconto à vista sobre um preço anterior desconhecido.

Os patrocinadores deste anúncio mencionam o Desenrola, programa do governo para liberar o orçamento dos inadimplentes, de modo que possam voltar ao consumo. O que eles não dizem é que o parcelado sem juros é um dos grandes motivos que explicam porque tantos consumidores foram parar nos serviços de proteção ao crédito. Sem esse instrumento de deseducação financeira, com certeza teríamos menos gente recorrendo ao rotativo do cartão, e menos gente inadimplente. O Desenrola sem o fim do parcelado sem juros é equivalente a eliminar as consequências do vício no álcool e continuar frequentando o bar: é só questão de tempo para voltar à situação anterior.

Claro, o fim do parcelado sem juros representaria inicialmente um tombo nas vendas. Mas teríamos um mercado de credito mais saudável, com menor inadimplência. Sim, vender a prazo “sem juros” movimenta a economia e sustenta milhares de negócios e empregos. Mas o preço é alto: o sofrimento de milhões de famílias enredadas em dívidas, levadas a essa situação por truques como o “parcelado sem juros”.