Baderna não é manifestação

A mim me irrita profundamente quando o jornal chama de “manifestantes” baderneiros que protagonizam quebra-quebra depois de uma manifestação que “começou pacífica”. A bem da coerência, não poderia deixar de me irritar com a manchete de hoje, caracterizando caminhoneiros que bloqueiam ruas e estradas como “manifestantes”. Não são. São tão baderneiros como os militantes do MTST que queimam pneus para bloquear a marginal.

Da forma como veio a manchete, parece que todos os manifestantes correm o risco de terem suas contas bloqueadas. Mas o decreto parece claro, ao se dirigir somente aos que usam os seus caminhões para sequestrar a sociedade para a sua pauta.

Se o governo Temer tivesse sido firme desse modo em 2018, talvez não tivéssemos chegado ao ponto em que chegamos, com crise de desabastecimento.

Li aqui e acolá comparações dessa ação do governo canadense com o que de pior temos em ditaduras comunistas, em que não se pode manifestar discordância do governo. Parece piada ter que explicar a diferença entre um governo democrático que exerce o seu poder policial para garantir o direito de ir e vir de quem não tem nada a ver com os manifestantes, e um governo ditatorial, como o cubano, que prende e tortura manifestantes pelo simples fato de se manifestarem.

Não, os caminhoneiros não têm o direito de bloquear estradas, ruas e pontes, assim como o MTST não tem direito de queimar pneu na marginal, por mais legítimas que sejam suas reivindicações. O direito de manifestação não inclui o direito à baderna, mesmo no mais democrático dos regimes.

O Estado e a liberdade individual

Milton Friedman, em sua obra Capitalismo e Liberdade, defende a ideia de que o Estado não deveria limitar, de forma alguma, o exercício de nenhuma profissão. O motivo é simples: qualquer limitação significa a criação de um monopólio de profissionais às expensas do resto da sociedade. A ideia é de que os próprios consumidores dos serviços fariam o papel de expulsar os maus profissionais do mercado, não sendo necessário uma espécie de “carimbo” estatal.

Friedman leva ao extremo essa ideia, defendendo que médicos não precisariam de uma licença estatal para exercer sua profissão. Até podemos entender a inutilidade, por exemplo, de um diploma de jornalista para atuar na imprensa, ou de economista para fazer previsões econômicas. Mas, quem confiaria sua saúde a um médico que não foi aprovado pelo CRM?

De maneira geral, acreditamos que, sem um CRM, o profissional não está apto a exercer a medicina. O carimbo estatal funciona como uma espécie de “selo de qualidade”, apesar de não garantir qualidade alguma. O mesmo ocorre com profissões como advogado e engenheiro.

Quando ocorre um acidente aéreo, o primeiro que se verifica é se aquela aeronave estava certificada pela ANAC e se o piloto tinha as licenças necessárias. São estes os “selos de qualidade” que a sociedade, de maneira geral, busca nos serviços que consome. Quando ocorre um golpe no mercado financeiro, pergunta-se onde estava a CVM ou o Banco Central, que não evitaram aquele desastre. A sociedade, de maneira geral, confia ao Estado o “filtro de qualidade” que Friedman dizia ser de competência exclusiva dos indivíduos.

Este longo preâmbulo serve para introduzir a discussão sobre a questão do passaporte das vacinas. Há dois campos bem definidos aqui: as pessoas que defendem o certificado, baseiam seu ponto de vista na ideia da cobertura vacinal, que seria tão mais eficaz quanto maior for o número de pessoas vacinadas. Os que são contra, baseiam o seu ponto de vista na preservação da liberdade das pessoas, que não deveriam ter os seus movimentos tolhidos em função de uma escolha pessoal. Além disso, a vacinação seria útil do ponto de vista individual, mas inútil do ponto de vista do comunidade, pois os vacinados continuam transmitindo a doença. Mas este último ponto é irrelevante para o que vai a seguir. Vamos nos concentrar na questão da liberdade individual.

Antes de mais nada, é claro que certas atitudes merecem o tolhimento dos movimentos do indivíduo. O cometimento de crimes, por exemplo. Ou o comportamento doentio antissocial. Nesses casos, parece não haver dúvida de que o Estado, em nome da sociedade, não só tem o direito, como tem o dever de isolar esses indivíduos do convívio social. Aqui, já não se trata de escolhas livres pessoais, mas de crime ou doença que ameaçam a vida em sociedade.

No caso da vacinação, escolher não se vacinar não é crime nem tampouco doença. Certa ou errada, trata-se de uma escolha livre individual. Neste caso, estaria o Estado autorizado a tolher os movimentos dessas pessoas?

Entra aqui o paralelo com a autorização para o exercício da medicina. Assim como no caso do certificado de vacinação, a exigência do CRM tolhe o movimento de profissionais que, de outro modo, poderiam exercer livremente a medicina. Assim como o CRM serve como um sinalizador externo de competência, o certificado de vacinação serve como um sinalizador externo de imunidade. Por outro lado, tanto um como o outro não representam, em absoluto, garantia de qualidade. O médico pode ser ruim e o vacinado pode pegar a doença e continuar a transmiti-la. Mas, assim como a sociedade exige que o Estado controle a qualidade dos médicos, também pode exigir que controle a qualidade da imunização dos indivíduos.

Claro que podemos pensar que um médico com CRM tem maior PROBABILIDADE de ser um bom médico, assim como uma pessoa vacinada tem maior PROBABILIDADE de não se contaminar e de transmitir a doença. Deste ponto de vista, o CRM e o certificado de vacinação não são indiferentes, ainda que não garantam 100% de eficácia. O contra-argumento é de que, ao confiar no CRM e no certificado de vacinação, podemos assumir mais riscos do que o que assumiríamos sem estes “selos de qualidade”, o que poderia não ser desejável.

Não quero e não vou entrar aqui no mérito da pertinência do certificado de vacinação. Meu objetivo era somente estabelecer a natureza do problema: tem o Estado, em nome da sociedade, o direito de restringir escolhas livres dos indivíduos com base em certos predicados? Friedman teve o mérito de radicalizar essa escolha, levando-a às suas últimas consequências, e permanecendo firme em sua tese. No entanto, no caso do certificado das vacinas, não vemos a mesma discussão sendo levada para vários outros âmbitos em que o Estado determina quem pode ou quem não pode exercer a sua liberdade. De maneira geral, aceitamos bem o fato de ser necessário um CRM para exercer a medicina ou uma carteira de motorista para dirigir um carro, e não percebemos que se trata de problemas de mesma natureza. Os defensores da liberdade não deveriam ir além em suas reivindicações?

No fim das contas, a vida em sociedade supõe um poder central que regula o que pode e o que não pode ser feito. A linha que separa a liberdade individual do poder estatal é borrada, sendo mais parecida com uma grande zona cinzenta do que com uma linha bem definida. O certificado de vacinação tornou-se o grande campo de batalha entre os defensores do poder do Estado e os defensores da liberdade individual. Acho que Friedman diria que este é apenas mais um detalhe, quase irrelevante, dado o atual nível de interferência do poder estatal nas escolhes livres das pessoas, que nem sequer notamos.

Liberdade seletiva

“Prefiro morrer a perder a liberdade”.

O presidente poderia estender a sua campanha pela liberdade para outras esferas da vida social.

Por exemplo, até hoje o serviço militar é obrigatório. O certificado de reservista é exigido de todos os homens do país que queiram exercer seus direitos civis, como votar e tirar passaporte. Essa coleira precisa acabar.

Aliás, por falar em passaporte, por que exigir passaporte de quem entra no Brasil? Isso é um atentado ao direito de ir e vir dos cidadãos. O governo Bolsonaro deveria simplesmente extinguir essa coleira, liderando um movimento global pela liberdade.

O comprovante de votação é outra coleira exigida dos cidadãos, que são obrigados a votar, senão não conseguem exercer outros direitos civis.

Dirigir meu carro quando quero e onde quero? Também não tenho essa liberdade. Agora mesmo estou sendo obrigado a renovar minha carteira de motorista, com direito a exame médico fake, para apresentar essa coleira ao primeiro guarda que me parar em uma blitz. As mães são obrigadas a mostrar a carteira de vacinação dos seus filhos para fazer matrícula nas escolas públicas. Quando Bolsonaro nos livrará de mais essa coleira?

Fumar em estabelecimentos públicos é outra liberdade que me foi tirada (em tese, porque não fumo, mas e se eu quisesse começar?). Não exigem passaporte de não-fumante, porque a nicotina não sai do pulmão do fumante para o ar, mas, mesmo assim, trata-se de um atentado à minha liberdade.

Bolsonaro está claramente falhando nessa batalha pela nossa liberdade. Não está honrando o salário que recebe como presidente, pago com meus impostos. Aliás, tem coleira maior do que ser obrigado a pagar impostos para manter governantes ineptos no poder? Espero que Bolsonaro também se atente a essa falta de liberdade e torne voluntário o pagamento dos impostos. Ou a liberdade, que enche a boca do presidente, é seletiva?

Deixem a memória do Holocausto em paz

Protestos tomam conta da Áustria e outros países da Europa contra novas medidas de contenção do coronavírus. As restrições aos não vacinados fizeram surgir um tipo de paralelo comum quando se quer jogar uma bomba de fumaça sobre a real natureza do que está em jogo: a comparação com o Holocausto.

Os anti-vacinas não estão sendo originais. Aqui mesmo no Brasil, há pouco tempo, Weintraub comparou os bolsonaristas presos com os judeus perseguidos pelo nazismo. E, na campanha eleitoral de 2014, Lula comparou os petistas com os judeus, perseguidos pelos nazistas do PSDB.A diferença fundamental entre essas situações e a dos judeus europeus na década de 30 (na verdade, a dos judeus europeus de qualquer década), é que estes pagaram com a vida pelo simples fato de terem nascido judeus. Não foi uma escolha política, como ser petista, bolsonarista ou anti-vacina.

Nesses casos, há um entendimento torto do conceito de liberdade de escolha, em que a escolha não traz consequências. Quer dizer, reivindicam o direito de serem petistas, bolsonaristas ou anti-vacina sem qualquer tipo de resistência. Se há oposição à escolha (natural, porque há outros elementos da vida em sociedade que vão além da liberdade pessoal), já se colocam como vítimas de perseguição.

Alguns estranharão o fato de classificar o movimento anti-vacina como político. Pois é, não tem nada mais político do que sair protestando nas ruas. Os protestos pretendem imputar aos governos uma intenção política na decisão de restringir os direitos dos não-vacinados, como se quisessem separá-los do resto da sociedade, atribuindo-lhes um status infra-humano. Daí as estrelas amarelas, um símbolo político forte. Não por coincidência, os movimentos anti-vacina se identificam com uma determinada corrente política.

Meus avós maternos escaparam de campos de concentração. Por isso, para mim, ver a estrela amarela ser usada como símbolo político é revoltante. Comparar essa situação com a dos judeus perseguidos pelo regime nazista é de uma canalhice sem limites. Não quer tomar vacina, ok, direito seu. Mas deixe a memória do Holocausto em paz.

Cada candidato sabe de sua estratégia eleitoral

A regra para assistir a jogos de futebol é ter tomado as duas doses da vacina. Essa é a regra, concordando com ela ou não.

Bolsonaro conhecia a regra. Portanto, foi à Vila Belmiro com o objetivo de ser barrado e criar um fato político.

O não ter ainda se vacinado já é, em si, um fato político. Tentar forçar a entrada em eventos é só a sua continuidade. Fica a questão: o que Bolsonaro pensa que ganha com isso?

Hoje, aproximadamente 149,5 milhões de pessoas já tomaram a 1a dose da vacina. O eleitorado brasileiro deve estar em mais ou menos 151,5 milhões de eleitores, o que nos leva à conclusão de que praticamente 100% do eleitorado se vacinou. Portanto, Bolsonaro, em sua posição anti-vacina, está representando praticamente ninguém.

Além disso, é nada menos que óbvio que é a vacina que está permitindo a reabertura das atividades econômicas no mundo inteiro. Reabertura que um político que precisa desesperadamente de boas notícias no front econômico deveria desejar acima de tudo. Portanto, Bolsonaro deveria estar liderando a campanha pela vacinação, não fosse por outro motivo, por interesse eleitoral.

O único ganho visível dessa postura é marcar posição por um mal-entendido conceito de “liberdade”, como se ameaças à saúde pública estivessem no rol das liberdades individuais. Neste quesito, Bolsonaro fala a um pequeno grupo, longe, muito longe, de garantir-lhe maioria eleitoral. E, por outro lado, afasta um grupo bem maior, que entende a importância da vacinação em massa. Enfim, cada um sabe o que faz com sua estratégia eleitoral.