Quebra de contrato no dos outros é refresco

Alguma forma de proteção de propriedade intelectual existe desde a Veneza da Renascença. Leis de Patentes foram criadas e aperfeiçoadas a partir do século XVI na Europa e mesmo no Novo Mundo, onde leis desse tipo já existiam nas colônias americanas.

É sempre difícil desenhar um mundo contrafactual. Portanto, seria uma afirmação a priori dizer que a evolução tecnológica da humanidade teria sido impossível sem leis de proteção a patentes. Mas esta não é, tampouco, uma hipótese absurda. Afinal, se o inventor solitário e genial talvez seja movido somente pelo seu ideal, o capitalista, que é o responsável pela produção em massa daquele invento, certamente é movido pelo lucro. E de nada adianta uma invenção revolucionária que permanece confinada ao laboratório do inventor genial. Para a humanidade, tão importante quanto a invenção em si é a capacidade de produzi-la, vendê-la e entregá-la em massa. A proteção intelectual de patentes, portanto, não protege apenas o inventor. Protege, através de um monopólio temporário, principalmente o capitalista que financiou a produção do invento.

Neste contexto, temos um caso singular: as patentes das vacinas contra a SARS-Cov-2. Uma emergência global do porte da pandemia de Covid-19 justificaria quebrar um contrato? Convém lembrar que a patente é um contrato entre o capitalista e o Estado, que assegura ao primeiro um monopólio temporário. Todo o cálculo da viabilidade econômica do investimento realizado pelo capitalista é baseado na boa fé da vigência desse contrato.

Vamos imaginar um cenário alternativo: digamos que o governo dos EUA, a União Europeia e a OMC decretassem, logo no início da pandemia, que não haveria concessão de patentes para vacinas contra o novo coronavírus. Haveria desenvolvimento de vacinas? Se sim, qual seria a sua velocidade? Como dissemos acima, é sempre difícil imaginar um mundo contrafactual. Mas, neste caso, pelo menos as regras do jogo seriam conhecidas desde o início.

Há quem diga que os governos, principalmente nos EUA, investiram muito dinheiro dos contribuintes no desenvolvimento das vacinas e que, portanto, teriam “direito” a quebrar as patentes. Bem, se o dinheiro do governo tem esse poder de criar vacinas, porque fizeram parcerias com laboratórios privados? E por que não estabeleceram, desde o início, que o seu investimento estaria sujeito ao não estabelecimento de patentes? Haveria parcerias se houvesse uma cláusula desse tipo? Haveria vacinas?

Joe Biden quer posar como o Anjo Bom do mundo, nem que para isso precise fincar uma picareta em uma das colunas mestras do capitalismo, o respeito aos contratos. A sua iniciativa é inócua do ponto de vista de oferta de vacinas, porque não há capacidade produtiva ociosa no momento e não vai haver durante muito tempo, além de o preço das vacinas não estar sendo um impeditivo para a sua aquisição pelos governos.

Mas a iniciativa do presidente norte-americano não é inócua do ponto de vista de investimentos em pesquisa: qual será a próxima “grande emergência” que justificará a quebra de contratos? Se o objetivo de Biden é estatizar a atividade de pesquisa, está no caminho certo.

O viés ideológico de cada um

O professor da USP Humberto Gomes Ferraz escreve artigo sobre a demora em se conceder patentes no Brasil, um problema antigo.

O professor começa citando o GII, Global Innovation Index, ranking no qual o Brasil, a exemplo de todos os outros rankings de produtividade, aparece em posição vergonhosa. Depois vai citando casos (inclusive o seu próprio) de patentes que levaram mais de década para serem analisados. E termina o artigo com uma boa notícia: o Inpi, ligado ao Ministério da Economia, anunciou uma mudança de sistemática na análise de patentes, o que, reconhece o professor, deve acelerar em muito o processo. Até aí, tudo bem.

O que me causou espécie no artigo foi o seu início, lido à luz de sua conclusão. Segundo o professor, o Brasil deve despencar no ranking da GII, “dada a falta de interesse com que o atual governo enxerga a ciência e a tecnologia”. Ou seja, o mesmo governo que muda o Inpi para acelerar a análise de patentes (que é um dos itens do GII) será responsável pela queda no ranking de inovação pois não teria “interesse” em ciência e tecnologia.

A vontade de criticar o governo é tão grande e tão grande é a ojeriza ideológica em relação ao governo, que o professor da USP sequer percebeu a contradição do seu artigo. Triste.