Paranoia, uma característica dos extremos

Quem dá uma passeada por perfis governistas no Twitter sai com a nítida impressão de que estamos às vésperas de um golpe de estado. É impressionante, mas essa coisa do Moro pegou mesmo nas hostes governistas. O pessoal está em pânico, pintado pra guerra. Não entendo muito por quê, dado que Moro é uma sombra do que foi durante o julgamento da Lava-Jato, seu desempenho como político é pífio. Só se explica por uma espécie de paranoia, a mesma que fazia Bolsonaro e bolsonaristas ver traidores e ameaças debaixo da cama.

E olha que estamos com menos de 3 meses de governo. Imagine quando tiverem passado dois anos, com resultados medíocres (serão) e popularidade em baixa, qual será o nível de virulência contra qualquer sombra de ameaça. A data de validade do amor venceu no dia 30/10.

A Lei de Newton aplicada à economia

Esse caso do novo limite de juros para o crédito consignado é um dos raros exemplos, raríssimos mesmo, em que uma ação governamental tem efeito imediato sobre as decisões dos agentes econômicos. No caso, a relação de causa e efeito foi óbvia e à vista de todos: a oferta cessou imediatamente após o estabelecimento do preço em patamar artificial.

Nem sempre é assim. Aliás, quase nunca é assim. Decisões governamentais no âmbito econômico costumam levar meses, ou mesmo anos, para mostrar todas as suas consequências. Isso acontece porque a economia segue a lei de Newton (a toda ação segue uma reação de igual força na direção contrária), mas com defasagens temporais. Os agentes econômicos não são bolinhas rígidas em uma mesa de bilhar. Antes, são seres humanos que tomam decisões em ambientes de incerteza e com informação incompleta. Alguns são mais rápidos, outros são mais lentos, outros ainda simplesmente tomam a decisão errada. Mas isso não impede que, ao fim e ao cabo, as decisões governamentais tenham o seu efeito (benéfico ou deletério) sobre o ambiente macroeconômico.

Essa defasagem entre ação e reação dá margem às narrativas. Como não é óbvia a ligação entre uma decisão e seus efeitos, cada um conta a história que quer. Por exemplo, a grande recessão de 2015-2016 teria sido fruto da Lava-Jato e da queda dos preços das commodities. Nada a ver com as seguidas intervenções do governo Dilma no funcionamento dos mercados e com a verdadeira usina de cremação de dinheiro representada pelos empréstimos do BNDES e pelos projetos da Petrobras.

Como distinguir entre narrativa e a verdadeira lei de Newton? Pelos resultados de longo prazo. É famosa a foto tirada do espaço, mostrando o contraste entre Coreia do Norte e Coreia do Sul à noite. É a demonstração visual da superioridade do capitalismo sobre o comunismo como gerador de riqueza. Claro, hoje ninguém (a não ser alguns lunáticos) defende o comunismo da forma como a Coreia do Norte o adota. E, complemento, ninguém (a não ser alguns lunáticos) defende uma total ausência do governo no sistema econômico. O debate se dá a respeito do nível de intervenção que o governo deveria adotar no sistema capitalista, e de que modo essa intervenção deveria ocorrer.

A resposta é observar como os países capitalistas mais bem sucedidos alcançaram seu sucesso no longo prazo. Uma organização como a OCDE, por exemplo, reúne esse tipo de experiência, colocada à disposição para aqueles países dispostos politicamente a seguir por esse caminho. Lula e o PT desdenham esse tipo de experiência, justamente porque a OCDE propõe uma governança que limitaria a ação do governo. Preferem seguir o roteiro que já não vem funcionando há décadas, aproveitando-se das defasagens temporais entre causa e efeito para achar bodes expiatórios quando a coisa, novamente, não funciona.

A redução dos juros do consignado não foi só uma “trapalhada”. Foi um modus operandi. A natureza do governo do PT foi fielmente representada por essa decisão. A “trapalhada” foi somente escolher uma ação que teve uma reação imediata, não dando tempo para se criar uma narrativa (ainda que alguns balbuciaram algo como “ganância dos bancos”). Lula exigirá, das próximas vezes, mais cuidado em não deixar tão evidente as consequências nefastas das decisões de seu governo.

O falso paralelo que une petismo e bolsonarismo

O jornalista Breno Altman, do site Opera Mundi, é para o petismo aquilo que foi o jornalista Allan dos Santos para o bolsonarismo, uma espécie de propagandista e porta-voz informal. Portanto, ler Breno Altman é ler o verdadeiro pensamento petista em seu estado bruto, antes de ser lapidado pela realidade.

Sobre a Nicarágua, Altman nos propõe o seguinte paralelo: quem é a favor da investigação e prisão dos golpistas de 08/01 não pode ser contra a repressão de Daniel Ortega na Nicarágua, que também está agindo contra golpistas.

Segundo o “raciocínio” de Altman, há somente dois atores consistentes nessa história: os petistas, que defendem a ação dos governos contra os golpistas, e os bolsonaristas, que criticam a ação dos governos contra os seus críticos. Aqueles que criticam Ortega mas apoiam a ação do Estado brasileiro contra os bardeneiros de 08/01 estariam sendo contraditórios.

Esse paralelo de Altman é da mesma natureza daquele feito por Lula, quando comparou a longevidade de Ortega no poder com a mesma longevidade de Angela Merkel na Alemanha. A longevidade é a mesma, mas o processo para se chegar lá é completamente diferente em uma democracia e em uma ditadura. Basicamente, quem fazia campanha contra Merkel não corria o risco de ser preso. Não se trata de uma diferença semântica.

Essa é a diferença fundamental entre a repressão de Ortega e os processos contra os baderneiros de 08/01 na forma da lei de um estado democrático. Comparar os dois eventos só serve para legitimar o regime nicaraguense (como fazem os petistas) ou para deslegitimar o regime brasileiro (como fazem os bolsonaristas). Não há termos de comparação entre uma ditadura e uma democracia, por mais falha que seja.

O ser humano é surpreendente

É simplesmente impressionante a semelhança de discurso entre anti-petistas e anti-bolsonaristas. Posso dizer que tenho uma rede diversificada de amigos aqui, mais pendente para a direita mas, mesmo assim, com vários amigos que são anti-bolsonaristas convictos, além dos anti-petistas, que são em maior número.

Tanto anti-petistas como anti-bolsonaristas não são, em princípio, bolsonaristas e petistas respectivamente. Pelo menos, não se colocam como tal, chegam a tecer críticas a Bolsonaro e a Lula (respectivamente). Mas são vistos pelo outro lado como bolsonaristas ou petistas enrustidos.

Em ambos os casos, o voto em Bolsonaro ou Lula, respectivamente, representa a luta pela decência na política, pela verdadeira democracia, pela limpeza, na medida em que evita que o outro lado chegue, ou permaneça, no poder. O outro lado representa tudo o que é oposto a isso.

O mais incrível é que todas essas pessoas são decentes, trabalhadoras, cidadãos respeitáveis. Simplesmente não é possível que somente um lado seja desonesto intelectualmente ou tenha sido acometido de cegueira ideológica. O ponto é que veem o mundo de sua própria perspectiva, com seus próprios óculos.

Acho isso tudo fascinante. É realmente incrível como uma mesma realidade tenha o condão de gerar avaliações morais opostas. O ser humano é surpreendente.

PS.: tenho certeza que os comentários irão comprovar a tese.

A boa imprensa

Esta manchete me fez lembrar que Cuba é o único país do mundo onde a imprensa é 100% “amiga” do governo. Ok, Coreia do Norte também, e Venezuela está se juntando ao grupo.

Lá não tem “fake news”, tudo o que o governo faz é retratado de maneira fidedigna, para que o povo fique “bem informado”.

A julgar pelo que os petistas diziam na época dos governos do PT e pelo que dizem hoje os bolsonaristas, imprensa boa é o Granma.

Com os fatos não se discute

Existem, digamos assim, dois grandes campos em que a imprensa pode assumir posições desagradáveis.

O primeiro refere-se ao campo dos costumes e do comportamento. Estão neste campo o tratamento dado à segurança pública, o que é ou não homofobia, o debate sobre ideologia de gênero, a questão ambiental, e uma longa lista de etceteras.

Neste primeiro campo, existe o lado “progressista”, normalmente defendido por partidos de esquerda, e o lado “conservador”, normalmente defendido por partidos de direita (ou grupos, pois partido de direita, no Brasil, é que nem cabeça de bacalhau – o PSL foi criado ontem, é um catadão).

A imprensa, no que se refere a costumes, é claramente esquerda. Grande parte do que se publica em reportagens tem o viés dos “direitos humanos” e proteção de minorias. Existe uma pauta consensual que abarca e corrobora a agenda da esquerda. Coisas como considerar, por exemplo, que meninos e meninas podem ser diferentes, são consideradas como aberrações, não como um assunto a ser debatido entre dois lados igualmente capacitados. Aliás, toda a pauta conservadora é considerada uma grande aberração.

O segundo grande campo em que a imprensa pode causar desconforto é a crítica ao poder de plantão. Este papel da imprensa incomoda principalmente àqueles muito preocupados com o primeiro campo.

Uma parte dos petistas (aqueles que não tinham boquinhas a perder) estava genuinamente preocupada com o “retrocesso” que o impeachment poderia causar à pauta de comportamento e costumes. Por isso, os petistas negavam todas as notícias de corrupção do governo. Não podia ser verdade, era invenção de uma imprensa apenas interessada em derrubar o governo. A autonegação dos petistas era um sintoma de um apego a um mundo que não podia cair.

Esse longo preâmbulo se fez necessário para entender o que está acontecendo entre alguns bolsonaristas.

A clara distorção da fala da jornalista do Estadão, Constança Rezende, que foi acusada de ter admitido que seu objetivo era arruinar o governo Bolsonaro, é um exemplo claro de que alguns bolsonaristas caminham na mesma direção dos petistas. A fala está gravada (com ruídos e claramente truncada), e ela diz que o caso poderia arruinar o governo, não que ela tivesse esse objetivo. Mas o próprio presidente da República ajudou a disseminar a versão falsa.

O presidente, claro, tem interesse em proteger o próprio filho de suas eventuais enrascadas. Mas qual o interesse de alguns bolsonaristas em propagar uma versão claramente falsa? A mesma dissonância que acometeu os petistas: em nome de uma agenda de costumes, tudo vale para dar suporte ao presidente. É tudo invenção da imprensa esquerdista, que quer derruba-lo.

O que é preciso ficar claro é que a imprensa tem o papel de fiscalizar o governante de plantão. Isso independe de qual seja sua pauta de costumes. A mesmíssima autonegação que afetou os petistas está agora afetando alguns bolsonaristas. Não estou aqui negando haver viés da imprensa. Isso é uma coisa. Outra coisa bem diferente é negar fatos. E os fatos são que Queiroz está enrolado e Constança não disse o que disseram que ela disse.

Podemos debater tudo, menos fatos. Esses devem ser respeitados, sob pena do debate virar briga de torcida.