A verdadeira contribuição para o PIB da Lei Rouanet

Este post refere-se à informação, levantada no post anterior, de que a Lei Rouanet “injetou” na economia R$1,59 para cada R$1,00 investido sob os auspícios da Lei. Ou seja, segundo o estudo da FGV, valeu a pena, do ponto de vista econômico, incentivar a cultura, pois cada real investido apresentou “retorno” de 59%. Esse cálculo considera toda a cadeia produtiva da indústria cultural: montagem de palco, iluminação, agências de artistas e uma longa lista de etceteras.

Quem vê uma estatística dessas, pode legitimamente se perguntar porque só investimos R$1 bilhão por ano nisso aí. Deveríamos investir todo o orçamento disponível, e estaria resolvido o problema da pobreza do Brasil. Afinal, que outra atividade gera tamanho retorno?

Na verdade, podemos fazer a mesma conta para qualquer atividade econômica. Recentemente, engajei-me em uma discussão sobre a contribuição do agronegócio para o PIB. Existe um estudo por aí afirmando que o agronegócio geraria algo em torno de 25% do PIB. No entanto, pelos números do IBGE, a agricultura representa meros 6% do PIB. A que se deve essa diferença? Justamente a esse conceito de “cadeia de produção”. Para chegar nos 25%, o cálculo considerou toda a cadeia ligada ao agronegócio, o que inclui máquinas, logística de transporte e vários outros itens. O problema desse tipo de cálculo é a dupla contagem: como a indústria também considera a fabricação de tratores como um valor criado pelo seu próprio setor, temos duas contribuições para o PIB da mesma atividade. Se somarmos todo o PIB produzido por todas as “cadeias produtivas”, sem considerar essa dupla contagem, teríamos um PIB maior que o dos Estados Unidos.

O mesmo ocorre com a “cadeia da indústria cultural”. Esse cálculo de R$1,59 “gerados” pela cadeia inclui atividades que não tem nada a ver com a atividade cultural em si, como, por exemplo, a logística de transporte ou a montagem do palco. Alguém poderia dizer que, se não fosse a atividade cultural, essas outras atividades não existiriam. Pode ser que sim, pode ser que não, difícil dizer. Mas digamos que seja verdade. O ponto, na verdade, é outro. Para entender o problema, precisamos entender o conceito de PIB.O PIB é o conjunto de toda a produção de um país, medido na moeda local. O site do IBGE tem um exemplo simples mas elucidativo: o agricultor planta o trigo e o vende por R$100 para o moinho. O moinho moi o trigo e vende a farinha para a padaria por R$200. A padaria usa a farinha para fazer o pão e vende o pão por R$300. Neste exemplo, o PIB foi de R$300, que é o valor pago pelo pão. Cada etapa da produção criou R$100 de valor (essa é a palavra chave) e, no final, o consumidor topou pagar R$300 pelo pão. Topou pagar porque viu valor naquele pão equivalente a R$300. Este foi o PIB gerado por essa atividade econômica.

O PIB é a uma medida da riqueza de um país. Um país é tanto mais rico quanto maior é o seu PIB per capita. Por outro lado, note que só existe PIB onde há criação de valor. Se a padaria só encontrasse freguês disposto a pagar R$150 pelo pão, esse seria o PIB dessa atividade econômica. Isso significaria que os diversos agentes econômicos envolvidos na produção do pão, em conjunto, só produziram R$150 de valor. Como esse valor seria distribuído entre esses diversos agentes determinará a saúde ou a morte das empresas envolvidas. O fato é que o cliente final só está disposto a pagar R$150. Esse é o valor criado por esse processo.

Esse conceito é fundamental para entendermos o ”valor” criado pela indústria cultural. Digamos que a Lei Rouanet somente incentivasse iniciativas sem viabilidade comercial. Isso significa que o respeitável público não vê valor naquela iniciativa e não está disposto a pagar nada pelo ingresso. Sem o incentivo, portanto, aquela produção somente se viabilizaria com um mecenas, que vê valor na cultura e está disposto a pagar por isso. O governo, no caso, faz o papel de mecenas, através da Lei Rouanet. Mas, e isso é o mais importante, aquela atividade agrega zero para o PIB. Repito: zero.

Vamos colocar números para deixar o conceito mais concreto. Digamos que uma produção artística custe R$100 para ser montada. Um mecenas financia, e os ingressos são gratuitos, porque ninguém estaria disposto a pagar para ver aquilo. Seu prejuízo foi de R$100, o que anula a criação de valor das etapas anteriores. Seria mais ou menos como se a padaria pagasse R$200 pela farinha e ninguém quisesse comprar os pães por preço algum. Nesse caso, PARA FINS DE CÁLCULO DE PIB, a riqueza adicionada foi zero: R$100 do produtor de trigo, R$100 do produtor da farinha e -R$200 da padaria (o prejuízo do padeiro). Total: zero.

Vamos radicalizar ainda mais o argumento para tentar convencer os mais incrédulos. Imagine que, ao invés de incentivar produções culturais, o governo contratasse pessoas para cavar buracos e tampá-los, na popular imagem criada por Keynes. Trata-se também de uma atividade inútil, no sentido de que ninguém está disposto a pagar por isso. Igualmente, a atividade de cavar buracos e tampá-los também “cria valor” ao longo de toda uma cadeia: produção de pás, as roupas que os escavadores usam, sem contar que o salário dos escavadores será usado no comércio, “fazendo a economia girar”. Mas, do ponto de vista de criação de PIB, essa atividade acrescenta literalmente zero: toda a criação de valor anterior é “destruída” em uma atividade na qual ninguém vê valor e, portanto, não está disposta a pagar para comprá-la.

Na verdade, a coisa é ainda pior. Como é o governo que financia essas atividades, esse dinheiro foi retirado, via impostos, de outras atividades que poderiam estar verdadeiramente gerando riqueza. Há, literalmente, destruição de valor.

Todo esse raciocínio será refutado pelos desenvolvimentistas e pelos defensores da cultura. Os desenvolvimentistas dirão que esse raciocínio simplista não é capaz de captar a intrincada dinâmica das cadeias de produção, e que os multiplicadores demonstram, sem sombra de dúvida, que pagar pessoas para cavar buracos e enterra-los em seguida cria sim valor. Os defensores da cultura dirão que há muito mais no mundo do que dinheiro, e a arte não deveria ser medida pelo valor do ingresso.

O raciocínio que vai acima é só contábil e considera a metodologia do PIB: se uma atividade vale zero para as pessoas, essa atividade agrega zero para o PIB, qualquer que seja a “cadeia de produção” por trás ou os salários pagos. Não fosse assim, seria muito fácil “criar PIB”, e não haveria país pobre no mundo. Podemos até discutir se o PIB é uma medida adequada de riqueza. Mas, por enquanto, não foi inventada outra melhor.

A Apple e o PIB do Brasil

Já escrevi isso aqui quando a Apple se tornou a primeira empresa a atingir valor de mercado de US$ 2 trilhões e volto a escrever agora, quando a soma do valor das ações da mesma Apple atinge a estonteante marca de US$ 3 trilhões: esse valor não tem NADA a ver com o PIB dos países como sugere a reportagem.

Em linguagem técnica, PIB é uma medida de fluxo enquanto o valor de mercado é uma medida de tamanho de patrimônio. Em língua portuguesa, isso significa que o PIB é a quantidade de riqueza produzida em um país a cada ano, enquanto o valor de mercado é a SOMA da quantidade de riqueza que uma empresa, supostamente, produziu e produzirá enquanto existir segundo a avaliação dos investidores.

Para calcular o PIB de um país, somam-se todos os valores agregados por todas as empresas. Grosso modo, é como se fosse a soma dos lucros de todas as empresas de um país. Para comparar a Apple com o PIB, o mais adequado seria comparar o seu lucro anual, que foi de US$ 95 bilhões no ano fiscal de 2021. Mais ou menos equivalente ao PIB do Equador e várias vezes menor que o PIB brasileiro.

Mas não fique muito entusiasmado. Comparando maçãs com maçãs, o valor de mercado de todas as empresas listadas na bolsa brasileira somava cerca de US$ 810 bilhões no final de dezembro. Ou seja, o investidor da Apple pode comprar três vezes todas as ações das empresas brasileiras e ainda sobra um troco para o jantar. A Petrobras, a maior empresa brasileira, a nossa joia da coroa, que controla o estratégico ouro negro, vale US$ 110 bilhões. A Apple, que produz esse troço supérfluo chamado iPhone, vale 28 vezes mais.

Alguns dirão que esses números não passam de jogos especulativos dos investidores em bolsa, não representando, de fato, a riqueza que as empresas geram para a sociedade. São normalmente os mesmos que acham que o PIB não mede o verdadeiro bem-estar dos cidadãos. Ok, é uma forma de ver a realidade.

Ficamos mais pobres

Ontem foi manchete em todos os jornais a queda do PIB (a maior em um ano desde o ano do Plano Collor) e a “saída” do país do grupo das 10 maiores economias do mundo.

Dois rápidos comentários.

O primeiro refere-se à queda em si. Em termos comparativos, não ficamos tão mal (veja gráfico abaixo com a queda do PIB ao redor do mundo). Encolhemos bem menos do que os nossos pares latino-americanos e os países europeus.

O que provavelmente levou a esse encolhimento menor foi o nosso auxílio emergencial mais generoso do que a média global. Mas este encolhimento menor teve um custo: o aumento brutal de nossa dívida. O risco percebido pelos agentes econômicos acabou se refletindo na taxa de câmbio. Conforme podemos observar no gráfico abaixo, a nossa moeda só perdeu para o peso argentino em termos de desvalorização em relação ao dólar.

Isso nos leva ao outro ponto deste post: a queda no ranking das maiores economias do mundo. No ano passado éramos a nona maior economia, neste ano fomos ultrapassados por Canadá, Coréia e Rússia, caindo para a 12a posição.

O detalhe deste ranking é que a contabilização é feita em dólar, de modo a se poder comparar os países entre si. Ora, como a nossa moeda foi a que mais se desvalorizou, caímos no ranking não pela queda do PIB em si, mas pela desvalorização do Real. A ligação entre queda do PIB e queda neste ranking é simplesmente inadequada.

Ficamos mais pobres em dólar. Em reais, nosso PIB encolheu 4,1%. Em dólares, 23,3%. Enquanto isso, o PIB russo encolheu 10,5%, o canadense 5,7% e o coreano 1,5% em dólares. Não é à toa que caímos esse tanto no ranking.

Isso significa que não ficamos tão mais pobres quando consideramos a nossa capacidade de compra de produtos fabricados aqui dentro (incluindo serviços), mas ficamos sim bem mais pobres quando se trata de comprar produtos e serviços no exterior. Além disso, o nosso posicionamento relativo no mundo perde força.

Como voltar a subir nesse ranking? Mais importante do que o crescimento do PIB em si é a revalorização do Real. E, para que o Real volte a se valorizar, é necessário diminuir o risco percebido pelos investidores. Não intervir em estatais seria um bom começo. O encaminhamento de reformas estruturais e privatizações também ajudaria. Além, claro, de tratar a dívida pública de maneira séria.

Mas alguém sempre poderá dizer que ficar bem nesse ranking é bobagem, o que importa é que o brasileiro tenha uma vida digna (um dia vou escrever um post sobre o que raios significa esse “vida digna”). Ok, é uma escolha. Ser pobre é uma escolha. Cada país caminha na direção de suas escolhas.

Apple vs. Brasil

As pessoas (jornalistas incluídos) fazem confusão entre PIB e riqueza. PIB é fluxo, riqueza é estoque. Explico.

PIB é o quanto um determinado país produziu em um ano. A riqueza de um país é a soma de todos os PIBs anteriores mais as riquezas naturais e menos a depreciação daquilo que já foi produzido.

Este valor de mercado da Apple é a riqueza da Apple, não o seu PIB. Aliás, está riqueza da Apple conta também com a sua produção futura, a expectativa de seus lucros futuros.

A riqueza do Brasil é muitas, mas muitas vezes maior do que US$ 1,8 trilhão. Na verdade, a cada ano o Brasil agrega U$ 1,8 trilhão à sua riqueza. A riqueza é o estoque do que foi produzido.

Portanto, dizer que a Apple é mais “valiosa” que o Brasil é errado. Trata-se de uma ignorância de conceitos econômicos básicos.

Efeito eleitoral

Aos que, de olho em 2022, estão fazendo as contas dos efeitos da brutal recessão que vamos enfrentar sobre a popularidade do presidente, um pouco de história.

Em 2008 ocorreu a maior crise financeira de todos os tempos, o que jogou o mundo em uma recessão global em 2009. Muitos viram na crise a morte do governo Lula.

Pois bem. A recuperação do PIB foi tão brutal como a recessão: o país cresceu 7,5% em 2010, número suficiente para eleger um poste.

A história pode não se repetir exatamente assim, pois estamos um ano para trás em relação ao ciclo eleitoral. Mas eu seria cauteloso ao avaliar o efeito dessa crise nas eleições de 2022.

Torcendo os números

O jornal eletrônico Nexo conseguiu traduzir em linguagem simples a lorota da divisão entre “PIB do Governo” e “PIB Privado”. Essa divisão simplesmente não tem como ser feita. Não por outro motivo, a SPE não abre a metodologia que usou. O que podemos dizer é que os gastos do governo caíram, mas isso não é novidade, é fato corriqueiro no 1o ano de qualquer governo, que sempre é um ano de ajuste.

O fato nu e cru é que o PIB cresceu só 1% em 2019, e deve crescer menos de 2% em 2020. Quero é ver a convicção privatista desse governo se o pibinho insistir em ficar entre nós. Até Mauricio Macri, que tinha bem mais convicção que Bolsonaro, cedeu aos apelos populistas quando a água bateu em suas nádegas liberais. Que dirá o corporativista recém-convertido ao credo liberal. E aí, não vai adiantar o Guedes tentar torcer os números para que contem uma história bonita.