Brasil e Argentina: um paralelo

A inflação no Brasil, este ano, deve fechar próxima de 5%. Os juros, apesar de estarem caindo, ainda estão muito altos. O Banco Central ainda mantém uma política monetária bastante apertada, pois ainda estamos distantes da meta de inflação, que é de 3% para o ano que vem. No entanto, do outro lado das Cataratas do Iguaçu, a inflação na Argentina está hoje em 140%, e só Deus sabe quanto vai fechar no ano.

Por que essa diferença gigantesca? O que o Brasil fez de certo, que lhe permite conviver com uma inflação civilizada? Ou, por outra, o que a Argentina fez de errado, para estar às portas de uma hiperinflação?

Como Brasil e Argentina acabaram com a hiperinflação

Investigar a história é sempre um exercício discricionário, no sentido da escolha que se faz do ponto de partida da narrativa. Neste artigo, decidi estabelecer o ponto de partida da comparação no início da década de 90, quando ambos os países resolveram o problema da hiperinflação que assolou a ambos na década de 80. Comecemos pelo Gráfico 1, que mostra justamente essa transição.

Não se deixe enganar pela escala! Mesmo em anos em que as barras estão pequenas, a inflação era muito alta para os nossos padrões atuais. Por exemplo, em 1986 (ano do Plano Cruzado no Brasil), a inflação brasileira foi de 80%, enquanto na Argentina foi de 82%. Observe que a Argentina resolve o seu problema inflacionário já a partir de 1991, com o Plano Cavallo (nome do ministro da economia de Carlos Menem) enquanto, no Brasil, este problema só é definitivamente endereçado em 1994, com o Plano Real. Vamos mostrar o mesmo gráfico a seguir, mas iniciando em 1995, quando ambos os países já tinham as suas inflações estabilizadas (Gráfico 2).

Observe que há duas fontes para a confecção deste gráfico, o FMI e um site chamado Trading Economics. Isso ocorre porque a base de dados do FMI não possui informações sobre a inflação da Argentina de 1997 para trás, e também para os anos de 2015 e 2016. O FMI somente coloca em sua base de dados informações que possuam um mínimo de confiabilidade. Aparentemente, não foi o caso da inflação argentina antes de 1997 e nos anos de 2015 e 2016. O site Trading Economics tem esses números, com exceção de 2016. Neste ano, nem com muito boa vontade.

A política cambial dos dois países

Voltemos para a análise. Note como, até o ano 2001, a inflação brasileira foi substancialmente superior à Argentina. Isso aconteceu porque o Plano Cavallo adotou uma dolarização disfarçada, chamada de “Currency Board”. Este mecanismo garantia a total conversibilidade entre o peso e o dólar, tornando a moeda norte-americana, na prática, a moeda de referência da economia argentina. No Brasil, também adotamos uma dolarização disfarçada, mas muito menos rígida: as “bandas cambiais”, em que o Banco Central comprava ou vendia dólares sempre que a moeda brasileira se afastava de um patamar pré-determinado. Esse mecanismo um pouco mais flexível gerou, como contrapartida, uma inflação muito mais alta do que a do nosso vizinho. No Gráfico 3, vemos os câmbios brasileiro e argentino no período que vai de 1995 a 1998, antes que ambos os governos desvalorizassem suas moedas. Podemos observar que o peso permanece em 1,00, enquanto o real se desvaloriza de 0,85 até 1,20.

No gráfico 4, temos a extensão do gráfico 3 até a desvalorização das duas moedas. Observe como a desvalorização do real, de 1,20 para cerca de 1,80, foi fichinha se comparada à desvalorização do peso, que foi de 1,00 até 3,80 em questão de meses. Isso aconteceu porque a economia argentina acumulou tensões durante muito mais tempo do que a brasileira, em um sistema muito mais rígido. Quando explodiu, a potência da explosão foi muito maior.

É dessa época o famoso “corralito”, um esquema de sequestro de dólares que pegou os argentinos de calças curtas, equivalente ao calote do Plano Collor.

A Odisseia dos Tontos é um filme com Ricardo Darín que tem como pano de fundo o corralito. Muito bom para quem quiser entender o ambiente da Argentina na época.

Temos, então, já de cara, uma diferença fundamental entre Brasil e Argentina: o governo brasileiro decidiu por um sistema cambial mais flexível, mesmo durante o período do “câmbio administrado”, que durou apenas 4 anos. O Currency Board argentino durou nada menos do que 11 anos, do início de 1991 até o final de 2001, acumulando todo tipo de distorção. Sua saída foi caótica, com o presidente De La Rua tendo que sair de helicóptero do telhado da Casa Rosada e nada menos do que 4 presidentes se sucedendo em pouco menos de duas semanas.

A coisa começa a se estabilizar somente a partir de 2003, com a chegada ao poder de Néstor Kirchner e o início do superciclo das commodities, que irá beneficiar o Brasil, a Argentina e todos os outros exportadores de commodities. No gráfico 5, temos o real e o dólar nesse período, que vai de 2003 a 2011.

Note, no entanto, uma coisa estranha: enquanto o real se valoriza de maneira impressionante nesse período, passando de 3,50 para 1,50 entre 2003 e 2008, o peso pouco se move, permanecendo no patamar de 3,00 durante todo esse período. Ora, era de se esperar um comportamento semelhante, dado que os termos de troca eram favoráveis aos dois países, assim como a todos os outros exportadores de commodities. O peso chileno, por exemplo, saiu de 600 para 450 por dólar nesse período.

Por que isso aconteceu? O câmbio serve como um termômetro da saúde de um país. Se o peso não seguiu a tendência dos países exportadores de commodities, é porque algo errado havia. Se observarmos o que aconteceu após a Grande Crise Financeira (GCF) de 2008, ainda no gráfico 5, essa dicotomia fica ainda mais clara: enquanto o real se recupera da grande desvalorização do final de 2008, o peso começa uma escalada de desvalorização que irá somente piorar dali para frente. Podemos estabelecer este evento (a GCF) como o ponto inicial da deterioração da moeda argentina que dura até hoje, apesar de que, como vimos, a distorção está presente desde o abandono do Currency Board.

No gráfico 6, podemos observar o comportamento do ágio entre o câmbio oficial e a cotação do principal câmbio paralelo, o “blue” (infelizmente, só consegui dados a partir de 2008).

Note como o ágio é praticamente zero até 2011, o que indica que o câmbio oficial flutuava livremente. A partir de 2012, algo começa a acontecer, e o governo da então presidente Cristina Kirchner, que havia assumido no final de 2007, começa a controlar o câmbio. Com isso, o ágio explode, variando em torno de 60% a partir de 2013 até a vitória de Maurício Macri, que assume o governo em 2016. O novo governo libera o câmbio, que flutua livremente, fazendo com que o ágio voltasse para zero. Este quadro permanece assim até que Macri perde as eleições, e o novo governo de Alberto Fernández decide tabelar novamente o câmbio, fazendo com que o ágio explodisse novamente. É nesse ponto que estamos hoje.

Para o brasileiro, passou a ser estranho falar de “câmbio paralelo”. A última vez que o Estadão publicou a cotação do câmbio paralelo foi em abril de 2001, ou seja, há mais de 20 anos, e cerca de dois anos após o governo deixar o câmbio flutuar. Na Argentina, onde o câmbio é administrado pelo governo, o mercado paralelo é o que fornece a real cotação do peso.

Última publicação do “dólar paralelo” no Estadão, em abril/2001

As reservas internacionais

O acompanhamento das reservas internacionais fornece uma outra perspectiva do problema externo argentino. Em 2006, a exemplo do Brasil, a Argentina também “se livrou” do FMI. Portanto, vamos acompanhar a evolução das reservas argentinas desde então, no gráfico 7, com e sem os aportes do FMI.

Observe como, a partir de 2011, as reservas, que se encontravam por volta de US$ 50 bi, começam a recuar, até atingir US$ 25 bi em 2014. A partir de meados de 2016, o governo Macri, aproveitando uma onda de boa vontade do mercado internacional de capitais com o seu governo, adota a estratégia de emitir dívida para reforçar as reservas internacionais. Entre abril/16 e maio/18, o governo argentino emitiu US$ 66 bilhões em dívida externa, enquanto as reservas cresceram US$ 20 bilhões nesse período. Só nesta distorção já podemos perceber que havia algo de podre no reino de Buenos Aires. Esse “algo de podre” forçou o governo Macri, em junho/18, a fechar o maior acordo da história do FMI, um stand-by de US$ 56 bilhões. A partir de então, o governo argentino foi sacando desse acordo. Entre junho/18 e agosto/23, a Argentina sacou US$ 50 bilhões deste acordo. Descontando este montante, as reservas argentinas estão negativas em US$ 25 bilhões.

A comparação direta com a trajetória das reservas brasileiras fica prejudicada por conta da diferença de tamanho entre as duas economias. Assim, optei por mostrar a razão entre reservas e o total de importações mais pagamento de serviços de cada país (dados mensais), dado que as reservas servem justamente como uma reserva de emergência para este tipo de gasto. O resultado está no gráfico 8.

Observe como, a partir de 2009, esta relação se deteriora na Argentina, saindo do intervalo de 10-15 meses de importações (como a brasileira), para algo como 5 meses. Com o aumento das reservas feito por Macri, essa relação foi para o intervalo de 15-20 meses (como era a brasileira na época), mas deteriorou-se a partir de então. Note que, mesmo com o aporte do FMI, as reservas argentinas hoje conseguem pagar algo como 5 meses de importações, ao passo que as reservas brasileiras pagam algo como 10-15 meses.

O problema fiscal

Até agora, somente verificamos os sintomas da doença argentina, a inflação e o câmbio. Para entender, contudo, a doença, é preciso abrir o paciente. Ou seja, verificar a sua situação fiscal. É o que fazemos no gráfico 9, a seguir:

Note, em primeiro lugar, que não há estatísticas brasileiras dos resultados das contas públicas na base do FMI antes de 2001. Ocorre que, de fato, estatísticas fiscais do setor público brasileiro consolidado só começam a ser compiladas a partir de 2001. Antes disso, temos estatísticas do governo federal e banco central, em conjunto, a partir de 1991, e separadamente somente a partir de 1999. Temos também estatísticas dos governos subnacionais a partir de 1991, mas sem consolidação com o governo federal. Ou seja, antes de 2001, as contas públicas brasileiras eram bastante opacas, e sabemos que, para qualquer ação de saneamento, antes é necessário ter uma noção da situação real.

Vejamos a situação da Argentina. Durante os anos do Currency Board, a Argentina tinha uma situação fiscal relativamente equilibrada, com baixos superávits e déficits fiscais. Portanto, a saída atabalhoada da paridade cambial, em 2001, deve-se mais aos desequilíbrios externos do que à situação fiscal doméstica. A partir de 2003, assim como o Brasil, a Argentina produziu superávits primários bastante expressivos, aproveitando-se do crescimento econômico trazido pelo superciclo das commodities. O quadro começa a mudar a partir da GCF de 2008. A partir daí, a Argentina começa a produzir déficits fiscais em série e cada vez maiores. Note a diferença para o Brasil, que também tem problemas fiscais, mas somente a partir de 2014 e em escala muito menor. A Argentina não produz superávit primário simplesmente desde 2009, o que nos leva à conclusão de que os problemas atuais se devem não a desequilíbrios externos, mas ao desequilíbrio doméstico. Com o Banco Central argentino tendo que financiar esses gastos, não é à toa que a inflação saiu do controle.

Por que, afinal, o Brasil se diferenciou da Argentina

Até aqui, fizemos um diagnóstico da situação, mas não entramos na discussão sobre os motivos que levaram o Brasil a seguir uma trajetória diferente da Argentina. Como tudo em economia, não há respostas definitivas. Listo, a seguir, algumas hipóteses.

  1. Câmbio controlado: o Brasil teve um período relativamente curto de câmbio controlado, menos de 4 anos, entre 1995 e 1998, ao passo que a Argentina segurou o Currency Board por mais de 10 anos, entre 1991 e 2001. Além disso, o controle brasileiro era mais flexível, permitindo desvalorizações da moeda ao longo do tempo. Assim, a economia brasileira acumulou bem menos tensões do que a argentina nesse período. E o pior: com exceção do breve período do governo Macri, o câmbio argentino nunca deixou de ser controlado pelo governo, ao contrário do câmbio brasileiro, que flutua livremente desde 1999.
  2. Banco Central autônomo: o Banco Central brasileiro sempre contou com mais autonomia que seu homônimo argentino, mesmo antes da aprovação da sua independência formal, em 2021. O nosso Banco Central não pode financiar o governo, comprando dívida pública, em um processo que chamamos de “monetização da dívida”. Na Argentina, até hoje o BC dá uma mãozinha para o Tesouro, comprando títulos emitidos pelo governo. Além disso, o sistema de metas de inflação só funciona quando o mercado acredita que o BC é autônomo, o que não é o caso na Argentina.
  3. Problema fiscal: como vimos no gráfico 9, o problema fiscal argentino é bem maior que o brasileiro, por incrível que pareça. Além disso, dada a opacidade dos dados do governo argentino, não duvido que esses números não sejam ainda piores, escondidos em rubricas que escapam da contabilidade oficial. Aqui, por ruim que seja, temos uma regra que limita os gastos do governo (o novo “arcabouço fiscal”). Na Argentina, não existe algo semelhante.

Note como as três hipóteses acima formam o nosso “tripé macroeconômico” (câmbio flutuante, metas de inflação e superávits primários), a estrutura em torno do qual se mantém a nossa estabilidade macroeconômica.

Hoje os argentinos escolhem o político que vai pegar essa batata quente. Sergio Massa e Patrícia Bullrich são mais do mesmo do que foi feito nos últimos anos pelos peronistas e por Maurício Macri. Javier Milei, por outro lado, é um salto no escuro. Sua plataforma de enxugamento da máquina do Estado vai na direção correta, ainda que seja preciso entender qual será o real apoio político que terá para tirá-la do papel. Por outro lado, a ideia de dolarizar a economia e aposentar o Banco Central vai na mesma direção do Currency Board, que tantas distorções causou na economia argentina na década de 90 e teve um fim desastroso. Faria bem o candidato, se eleito, se dedicar a fazer o feijão com arroz bem feito, o que já é difícil, e deixar as pirotecnias de lado. O Plano Real, que colocou o Brasil nos eixos, não foi um show de pirotecnia, mas antes, foi a construção de todo um arcabouço fiscal e monetário que permitiu ter alguma estabilidade macroeconômica.

Que nossos hermanos possam tirar alguma lição dessa experiência. E que nossos governantes tenham a sabedoria de preservar o que deu certo.

30 anos. E os novos velhos problemas

Ontem, como parte da pesquisa para escrever meu próximo livro, assisti a um Roda Viva de dezembro de 1993, com o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. Além de ser engraçado ver jornalistas como Miriam Leitão, Carlos Alberto Sardemberg e Celo Ming 30 anos mais jovens, foram vários os aspectos interessantes do programa, alguns servindo como parâmetro para os desafios que temos hoje. Vejamos.

– É curioso ver como aqueles jornalistas experimentados não conseguiam entender a lógica da URV, unidade de conta que entraria em vigor 3 meses depois. Enquanto os jornalistas tentavam entender como seria o “dia D” da entrada do novo padrão monetário, FHC tentava explicar que não haveria “dia D”. Ao contrário dos planos econômicos anteriores, o governo não determinaria nada, a não ser o valor do salário mínimo em URV. O resto seria livremente pactuado entre os agentes econômicos, o que era uma novidade de difícil entendimento, por fugir completamente à lógica de um Estado interventor na atividade econômica.

– Também é curioso notar como todas as cifras eram denominadas em dólares. Era a confissão implícita do fracasso monetário brasileiro. Quando até o próprio ministro da Fazenda expressa os números do orçamento nacional em uma moeda estrangeira, é que a moeda virou uma peça de ficção. Isso é inimaginável hoje em dia, e uma grande prova de quanto evoluímos neste aspecto.

– O plano Real tinha três etapas, sendo que a primeira era alcançar um “equilíbrio fiscal” das contas públicas. FHC afirmava que, sem essa primeira etapa, a introdução da URV e, depois, do próprio Real, seriam inviáveis. Para tanto, havia um pacote de ajuste a ser aprovado no Congresso, no valor de US$ 22 bilhões. Segundo dados do FMI, o PIB brasileiro, no final de 1993, era de US$ 430 bilhões. Ou seja, o déficit estimado era de aproximadamente 5% do PIB! Hoje, estamos tentando zerar um déficit que, este ano, deve ser algo em torno de 2% do PIB. A tarefa parecia bem mais complexa do que é hoje. Mas, não é bem assim por três motivos: acurácia dos números, carga tributária e flexibilidade do orçamento. É o que veremos nos três itens a seguir.

– Um dos jornalistas lembrou que o ex-ministro Dilson Funaro esteve ali, no mesmo programa, afirmando que havia sido enganado quando lhe afirmaram que o déficit havia sido zerado. Na verdade, Funaro não havia sido enganado. É que ninguém sabia mesmo qual era o déficit naquela barafunda das contas públicas brasileiras, em que a inflação e ralos dos mais diversos tipos e tamanhos contribuíam para a zona. Talvez a coisa tivesse melhorado um pouco nos anos seguintes, mas é duvidoso afirmar que havia uma compreensão completa do orçamento como temos hoje. Então, provavelmente, FHC deve ter colocado um coeficiente de segurança nos números. Tanto que, em determinado momento do programa, Celso Ming questiona o montante com base em algumas premissas, e FHC sai pela tangente.

– Perguntas dos telespectadores (por fax!) chegavam, e a maioria versava sobre o aumento de impostos do pacote. Nesse momento, FHC afirma que o brasileiro não quer pagar imposto para manter os serviços públicos que reivindica, e que a carga tributária no Brasil era baixa: 18% do PIB no nível federal, 4% do PIB nos níveis sub-nacionais. Como sabemos, o ajuste fiscal brasileiro, desde então, foi feito por aí: a carga tributária saiu de 22% para os atuais 34% do PIB. E, mesmo assim, ainda rodamos com déficit. O que demonstra que as necessidades do Estado brasileiro sempre aumentarão e ultrapassarão a capacidade do mesmo Estado de arrecadar impostos. Hoje, a saída adotada por FHC de aumentar a carga tributária parece ser mais difícil, mas não impossível.

– FHC citou dois grandes números importantes em sua entrevista: 20% das despesas do governo eram com pessoal e 20% eram com aposentadorias. O governo ainda gastava 40% do seu orçamento com outros itens obrigatórios e tinha somente 20% de espaço para gastos discricionários. Segundo FHC, esses 20% eram muito pouco espaço para o governo fazer suas políticas, de modo que o pacote fiscal incluía algum nível de desvinculação de receitas. Pois bem: esses números hoje são os seguintes: os mesmos 20% para os funcionários públicos, 45% para aposentadorias, 30% para outros gastos obrigatórios e 5% para gastos não obrigatórios. Não por outro motivo, a primeira coisa que fez o governo Lula foi aprovar um pacote de gastos adicionais de R$ 200 bi, pois aqueles 5% não dão para nada. Hoje, o orçamento público é absolutamente engessado, e a questão das aposentadorias vai somente piorar ao longo do tempo, comendo uma parte cada vez mais relevante dos impostos pagos. A situação, hoje, é muitas vezes pior do que na época de FHC.

O Plano Real foi apenas o início, não o fim, do processo de estabilização. Várias iniciativas foram realizadas para recolocar as contas públicas nos eixos, desde o fechamento dos bancos estaduais, passando pelas grandes privatizações até a LRF e o estabelecimento de um comitê de política monetária independente. Voltamos para trás na disciplina dos entes sub-nacionais e não avançamos em outros pontos, como o equacionamento da previdência (a reforma foi muito pouco, muito tarde). A inflação, que servia para fechar as contas que não fechavam, parece domada. Mas, se não pactuarmos uma forma de financiar o orçamento, é questão de tempo para que volte. Primeiro, devagar. Depois, de repente.

Era uma casa muito engraçada, não tinha fundação, não tinha nada

Estou lendo A Moeda e a Lei, de Gustavo Franco, que conta a história monetária do Brasil desde a década de 30 com base nas várias legislações que regeram a moeda brasileira. No capítulo sobre o plano Real, Franco relembra a primeira iniciativa de FHC como ministro da Fazenda, a edição do PAI, Programa de Ação Imediata. Copio a seguir a exposição de motivos do PAI, que fazem a fundação do Plano Real:

– O Brasil só consolidará sua democracia e reafirmará sua unidade como nação soberana se superar as carências agudas e os desequilíbrios sociais que infernizam o dia a dia da população.

– A dívida social só será resgatada se houver ao mesmo tempo a retomada do crescimento autossustentado da economia.

– A economia brasileira só voltará a crescer de forma duradoura se o país derrotar a superinflação que paralisa os investimentos e desorganiza a atividade produtiva.

– A superinflação só será definitivamente afastada do horizonte quando o governo acertar a desordem das suas contas, tanto na esfera da União como dos estados e municípios.

– E as contas públicas só serão acertadas se as forças políticas decidirem caminhar com firmeza nessa direção, deixando de lado interesses menores.

Note a construção do edifício da estabilização. Ele começa com o teto e vai descendo até as fundações. O objetivo final é retomar o crescimento econômico, que permita resgatar a dívida social e reafirmar o Brasil como nação soberana. Para tanto, é preciso combater a inflação e, para isso, é preciso arrumar as contas públicas. Essa é a ordem: contas públicas arrumadas, inflação baixa, crescimento, resgate da dívida social, soberania.

O Plano Real trocou a inflação por juros altos. Comentei hoje mais cedo que o novo guru de Lula, Gabriel Galípolo, está muito preocupado com os juros altos. Este é o problema do diagnóstico desenvolvimentista, tentar começar a construir o edifício pelo teto. A coisa funcionaria mais ou menos da seguinte forma: o governo faz dívida para investir no resgate da dívida social, este resgate gera crescimento, este crescimento faz com que a dívida pública diminua, jogando os juros para baixo, o que, por sua vez, retroalimenta o crescimento, em um círculo virtuoso. O problema dessa construção é iniciar com o aumento da dívida, o que pressiona os juros para cima. Por isso, Galípolo se diz preocupado com a escalada dos juros, o que sugere alguma medida heterodoxa inicial para segurar os juros enquanto a mágica do crescimento não funciona. Já vimos esse filme antes.

Não à toa, Galípolo propõe a moeda única sul-americana como ideia para robustecer a nossa “soberania monetária”. Ou seja, uma construção que começa com o teto (a soberania), sem nenhuma menção à fundação (a organização das contas públicas). Típico.

O nosso edifício foi construído pela metade. Estamos longe de uma hiperinflação, mas estamos igualmente longe de termos inflação e juros civilizados. Nos demos por satisfeitos tendo uma fundação meia-boca, o que nos leva a ter um edifício fraco: nosso crescimento é medíocre, nosso resgate da dívida social é exasperantemente lento e a nossa moeda é respeitada somente dentro de nossas fronteiras, e olhe lá. Precisamos de um novo Plano Real, que enfrente o desajuste das contas públicas de frente. Sobre este fundamento, o restante do edifício poderá ser construído com segurança. Sem isso, continuaremos em busca de soluções mágicas, que prometem o céu e entregam o inferno.

Vida longa ao Real!

Hoje, 14/10/2018, o Real completa 8.871 dias de existência. Ou 24 anos, 3 meses e 13 dias.

Mas o que esta data tem de tão especial, poderão perguntar. E com razão.

Esta data é especial porque o Real, a partir de hoje, passa a ser o padrão monetário brasileiro mais longevo desde a substituição dos Réis pelo Cruzeiro em 01/11/1942, ainda no governo Getúlio Vargas.

O Cruzeiro, estabelecido por Getúlio Vargas, durou até 13/02/1967, quando outro governo ditatorial, o de Castelo Branco, cortou três zeros e substituiu a moeda pelo Cruzeiro Novo.]

A moeda criada por Getúlio Vargas durou exatos 8.870 dias, e era, até hoje, a moeda brasileira mais longeva da história, depois dos réis. Até hoje.

A seguir, um breve resumo dos padrões monetários brasileiros desde a criação do Cruzeiro (considerei mudança de moeda somente quando houve corte de zeros):

Cruzeiro: 01/11/1942 a 13/02/1967 (8.870 dias)

Cruzeiro Novo (e depois, Cruzeiro novamente): 13/02/1967 a 28/02/1986 (6.955 dias)

Cruzado: 28/02/1986 a 16/01/1989 (1.053 dias)

Cruzado Novo (e depois, Cruzeiro novamente): 16/01/1989 a 01/06/1993 (1.658 dias)

Cruzeiro Real: 01/06/1993 a 01/07/1994 (334 dias)

Real: 01/07/1994 até hoje (8.871 dias, and counting)

A moeda é a expressão da respeitabilidade de um país. Hoje em dia, nada lastreia uma moeda, a não ser a confiança de que o seu emissor vai respeitá-la. Aceitamos receber um pagamento em reais porque temos confiança de que estes reais serão aceitos por um terceiro logo adiante. E, importante, pelo mesmo valor pelo qual os recebemos.

Isto pode parecer uma bobagem, mas em países como a Argentina, o dólar tem mais curso do que a própria moeda. Isso significa que as pessoas aceitam melhor o dólar do que o peso.

Um país avilta a sua moeda quando o seu governo, responsável último por emiti-la, inflaciona o seu valor para financiar seus próprios gastos. Quando isso acontece, o dinheiro passa a ser um mero papel pintado, com escasso valor.

Quando Fernando Henrique colocou em prática a ideia do Real, deixou muito claro que aquilo só funcionaria se a realidade sobre as contas públicas não fosse escondida. O nome “real” não foi escolhido à toa: a ideia era que representasse a realidade, a coisa real.

Assim, o real foi uma construção baseada na realidade. Nesse contexto, vários esqueletos foram tirados dos seus armários. O maior deles foi o rombo dos bancos públicos estaduais. O governo FHC patrocinou a renegociação dessas dívidas, federalizando e privatizando esses bancos. Em outras palavras, aquela dívida, que estava escondida nos balanços desses bancos, foi explicitada e incorporada na dívida da União. O PT acusa o governo FHC de ter aumentado a dívida pública de 30% do PIB para 60% do PIB em seu governo, o que é verdade. O que não falam, no entanto, é que esta dívida já existia, escamoteada em mil e uma artimanhas usadas para esconder a real condição das contas públicas brasileiras.

Dilma Rousseff tentou fazer o mesmo quando a coisa começou a sair do controle. Usou o balanço dos bancos públicos para esconder o rombo das contas públicas, além de tocar um verdadeiro orçamento paralelo no BNDES. Caiu diante da Lei de Responsabilidade Fiscal, instituição criada no governo FHC justamente para evitar que o orçamento público se tornasse novamente uma peça de ficção.

A mentira sobre as contas públicas é a verdadeira causa da inflação e da falência da moeda de um país. No Brasil, antigamente, quando faltava dinheiro para pagar as contas do governo, sempre havia um banco públicos para salvar o dia. O dinheiro aparecia como que por mágica. Hoje, o salário e a aposentadoria dos funcionários públicos dos estados estão sendo atrasados. Falta dinheiro, e os estados não têm mais como gerá-lo do nada.

O teto de gastos é a simples constatação da realidade das coisas. Quando vejo candidatos à presidência dizendo que o teto é inexequível, no fundo vejo a resistência à realidade, como se os problemas pudessem ser resolvidos com a força do pensamento mágico.

O Real é a moeda mais longeva dos últimos 75 anos porque conseguimos montar um arcabouço institucional que nos prende à realidade das coisas. Arcabouço este, inclusive, que serviu de base técnica para o impeachment de um presidente. Não é pouca coisa.

A discussão sobre a reforma da previdência em particular e sobre o equilíbrio das contas públicas em geral é apenas a continuação desse esforço de construção de uma moeda respeitável. Fazer de conta que o problema não existe, que os credores de nossa dívida têm paciência infinita com a leniência, é não se render à realidade das coisas. É, em última instância, minar a credibilidade da moeda.

A moeda de um país é o fruto de muitos anos de respeito às instituições. Sofremos muito com a inflação no passado. Espero sinceramente que tenhamos aprendido a lição.

Vida longa ao Real!

Ainda há esperança

Da página de Gustavo Franco:

Hoje, 1 de julho de 2018, o real faz 24 anos. É o padrão monetário mais bem sucedido de todos os 9 que o Brasil já teve. Até hoje, 24 anos depois, voce vai ter dificuldade com o troco para a nota de R$100. Em 1967, quando o cruzeiro de 1942 foi substituido pelo cruzeiro novo, Pedro II, da cédula de Cr$ 100, ganhou um carimbo redondo e passou a valer 10 centavos. Vamos festejar uma reforma que fizemos direito, e que era muito dificil. Podemos perfeitamente resolver os outros problemas, o Brasil não é um caso perdido.

A falta de legitimidade de Temer

Leio aqui e acolá que ao governo Temer falta legitimidade, por não ter sido eleito pelo voto, mas ter chegado ao Planalto por meio de um impeachment. E isso não de petistas, mas de analistas ditos isentos, inclusive no mercado financeiro.

Itamar Franco também assumiu o governo por meio de um impeachment. Isto não lhe tirou legitimidade para que patrocinasse o Plano Real, a maior transformação institucional do Brasil no pós-guerra.

Qual a diferença?

Em primeiro lugar, a narrativa. Em 1992, a esquerda ajudou a derrubar o presidente. Em 2016, foi ela a ser apeada do poder. Como a esquerda domina a narrativa no mundo da cultura, nas universidades e na mídia, colou essa história de “golpe”.

Mas este não é o motivo principal.

Em 1992, Itamar não estava metido nas falcatruas de Collor. Era visto como um político honesto. Em 2016, pelo contrário, Temer é visto como parte da quadrilha que assaltou a República. Este é, de longe, o principal motivo de seu déficit de legitimidade.

O impeachment é um processo legítimo, feito dentro dos ditames constitucionais, tanto em 1992 quanto hoje. Achincalhar este instituto atenta contra a democracia e o Estado de Direito. Atribuir a falta de legitimidade de Temer ao impeachment só serve para proteger o bando que se apossou da Praça dos 3 Poderes.