Quem se importa com os dados?

A reportagem do Valor Econômico pretendia chamar a atenção para um suposto aumento da atitude crítica dos mais pobres em relação à polícia. O único problema é que os dados não conversam com a tese.

A questão é que antes (2014), pobres e ricos tinham uma percepção semelhante em relação à polícia. Agora, os pobres têm uma percepção mais crítica se comparados com os mais ricos. O ponto é que, para que a manchete estivesse correta (“população de baixa renda começa a enxergar forças policiais de forma mais crítica”), a comparação correta deveria ser contra a percepção dos mesmos pobres no período anterior. Quando fazemos essa comparação, constatamos, na verdade, uma ligeira melhora: em 2014, 46% dos pobres tinham visão negativa da polícia, contra 40% hoje.

Ocorre que essa melhora foi muito maior entre os mais ricos. Então, a manchete correta deveria ser: ”imagem da polícia melhora substancialmente entre os mais ricos, e menos entre os mais pobres”. Ou seja, houve uma melhora generalizada, mais concentrada entre os mais ricos. O ridículo da manchete escolhida é que se a imagem da polícia não tivesse melhorado, não haveria notícia.

O fato é que a imagem da polícia melhorou nos últimos 8 anos, mais entre os mais ricos, menos entre os mais pobres, mas melhorou para todos. Esses são os dados. Mas quem se importa com os dados?

Não somos idiotas

“Jovem com problemas mentais, pedreiro sem antecedentes criminais, usando uma arma de brinquedo”. Note a quantidade de palavras usadas para caracterizar pureza. Assim o jornalista descreve o sequestrador do ônibus na ponte Rio-Niterói, em um perfil sobre o governador afastado do Rio feito para demonizar a agenda de confronto adotada pela polícia do Rio.

Não vou entrar aqui no mérito da adequação ou não dessa política de confronto. Não tenho opinião formada sobre isso. Meu ponto é só a maneira idiota (não consegui pensar em outro adjetivo) para defender o ponto de vista contrário.

Havia uma situação de risco para os passageiros do ônibus, as negociações se mostraram infrutíferas, a polícia agiu conforme o protocolo para salvar as vidas de inocentes. Caracterizar essa ação como o assassinato de um inocente é uma ofensa à inteligência alheia. Por isso, idiota.

A polícia tomou o risco de matar um inocente? Sem dúvida. Mas o risco inverso também existia: se escolhesse não matar o sequestrador, outros inocentes poderiam morrer. Afinal, a polícia não sabia que se tratava de um “jovem com problemas mentais, pedreiro sem antecedentes criminais, usando uma arma de brinquedo”. No cálculo de riscos, parece-me que a polícia tomou a decisão correta, nesse caso específico. Acho que o jornalista concordaria comigo se tivesse um parente naquele ônibus.

Esse tipo de abordagem adotada pelo jornalista causa o efeito justo oposto: ao tratar as pessoas como idiotas, o efeito é aumentar o apoio a medidas extremas. Certamente há formas mais inteligentes de ganhar apoio para a “causa da não-violência”.

Manchete marota

Daí você vai ler a matéria, e descobre que o inquérito apontou uma looonga cadeia de causalidades:

– Pessoas organizaram um baile contra a lei.

– A prefeitura não fiscalizou e coibiu o baile contra a lei.

– Bandidos fugiram de perseguição policial para dentro da multidão do baile.

– Pessoas que estavam no baile agrediram fisicamente os policiais que estavam perseguindo os bandidos.

– Os policiais jogaram bombas de gás para se defender das agressões da multidão.

– Pessoas pisotearam outras pessoas na tentativa de fugir da confusão.

Mas quem só leu a manchete, ficou achando que o inquérito incriminou os PMs. Veja, não estou dizendo que o inquérito esteja certo ou errado. Estou apenas dizendo que a manchete, escolhida a dedo para incriminar apenas um dos elos dessa cadeia, não tem nada a ver com a reportagem.

Mas não tenho dúvida que o autor dessa manchete marota vai correndo procurar a PM quando se vir privado de seus direitos.

O diálogo que resta

Ontem, mais uma vez uma amiga postou a balbúrdia instalada em frente ao seu prédio, altas horas da noite, com direito a pancadão, que se seguiu a um “desfile de bloco” que não estava na programação.

Minha amiga pergunta: onde está o poder público? Cadê a PM para colocar ordem na casa? Ao que eu respondo: está afastando seus agentes que procuraram colocar ordem na casa.

Ontem mesmo, circulou vídeo de truculência policial contra estudantes de uma escola estadual.

Obviamente, foi objeto de reportagem indignada da Globo News, com direito a entrevista com “especialista”, que recomendava o diálogo como melhor forma de enfrentar esse tipo de situação.

Pergunto: a direção da escola, ao chamar a polícia, já não havia tentado o “diálogo” com os estudantes? A chamada da polícia já não caracteriza o esgotamento de todas as outras possibilidades de resolver o problema? Aliás, tanto na matéria da Globo News quanto na reportagem do Estadão (de onde tirei a manchete) não há menção ao tipo de problema causado pelos estudantes, a ponto de a direção do colégio ter sentido necessidade de chamar a polícia. Os repórteres nos devem essa informação, que não é um mero detalhe.

Obviamente, nada justifica a truculência policial. Excessos devem ser punidos. Mas a cobertura jornalística deveria procurar levantar todas as informações, para que os leitores e telespectadores pudessem formar sua opinião com mais objetividade. A polícia é a vilã em 100% dessas “reportagens”. Há algo de errado.

Voltando ao pancadão no bairro de classe média. Se a PM aparecesse por lá, provavelmente o “diálogo” com “foliões” bêbados seria infrutífero. Os policiais, então, seriam obrigados a empregar força. Aliás, é para isso que serve a polícia. Se o diálogo resolvesse, os próprios moradores poderiam conversar com os “foliões”. Ao empregar força, imagens da “truculência policial” viralizariam imediatamente, levando ao afastamento dos agentes da lei. A PM sabe disso. Talvez por isso, estejam preferindo deixar a população resolver seus problemas com “diálogo”.

Pancadões e cidadãos de segunda classe

O seu direito termina onde começa o meu.

Esse princípio basilar da justiça é colocado em cheque com os pancadões. Festas realizadas nas ruas, os pancadões opõem o direito à diversão dos jovens ao direito ao silêncio dos moradores. Todos os artigos que li até o momento sobre o assunto glamurizam os pancadões: seriam autênticas expressões da cultura brasileira ou, o que é mais comum, a única forma de diversão para uma juventude desempregada. Segundo reportagem do Estadão, serve também para movimentar a economia das comunidades.

Estou seguro de que todos os que escreveram essas análises moram confortavelmente em seus apartamentos de classe média, e não precisam conviver com som nas últimas até altas horas da madrugada. Na prática, tratam os seus concidadãos que vivem nas comunidades como cidadãos de segunda classe, pessoas que não teriam direito ao silêncio como todos os outros.

Não se tratam os pancadões como o que são: crime. Assim como roubos e assassinatos, os pancadões são tratados como “falhas da estrutura da sociedade”. “Os jovens não têm onde se divertir” é o equivalente para “o jovem não tem emprego” que justifica os outros crimes. Sem dúvida há problemas sociais que devem ser endereçados. Mas nunca devem ser usados para justificar crimes. A polícia existe para combater crimes. Portanto, estão cumprindo o seu dever ao atender chamados para coibir os pancadões. Óbvio que isso não justifica agressões deliberadas contra inocentes, e a corporação tem um belo quebra-cabeça para resolver, compatibilizando a repressão ao crime com o direito de inocentes não serem importunados. Mas é óbvio também que caracterizar a atuação policial como um crime em si, como repressão a uma “manifestação cultural”, está fora de lugar.

Os pancadões não podem ser tratados como “terra sem lei”, funcionando como “pics” de bandidos, onde esses seriam inalcançáveis pelo longo braço da lei. A primeira coisa que faz uma sociedade democrática é tratar todos as pessoas como cidadãos de primeira classe, com direitos iguais. O fato de uma pessoa morar em uma favela não a faz ter menos direito ao silêncio do que qualquer outra.

Caiu a ficha

Hoje caiu-me uma ficha.

Foi um daqueles momentos em que uma determinada realidade aparece nítida, onde antes havia algo incompreensível.

Sou meio lento pra entender as coisas. Mas procuro me colocar no sapato dos outros, para entender suas razões e motivações. Mesmo não concordando, é um exercício útil, recomendo.

Neste fim de semana, lendo uma montanha de manifestações a respeito da postura de Bolsonaro diante do Congresso, como eu disse, caiu-me uma ficha.

Bolsonaro não vai conversar com o Congresso. O parlamento brasileiro representa o que há de mais abjeto. Só há interesses mesquinhos, para ficar na coisa mais branda, ou inconfessáveis, se quisermos traduzir o sentimento geral.

Se Bolsonaro cedesse e negociasse com este Congresso, estaria traindo o sentido mesmo de sua eleição, que foi o de negar as negociatas que têm lugar ali.

Para Bolsonaro e seu núcleo duro de eleitores (acho que 15%-20% dos leitores, os restantes 35%-40% que lhe deram a vitória no 2o turno são mais anti-PT do que bolsonaristas) o Congresso deveria votar as medidas enviadas pelo Executivo por patriotismo. O que não deixa de ser uma contradição em termos: bandido patriota parece ser um oximoro.

Minha premissa, nesses dias todos, estava equivocada. Ao pensar que Bolsonaro pudesse agir como um “político normal”, que negocia com o Congresso a sua pauta, estava simplesmente esquecendo a alma da campanha do agora presidente: limpar a política de toda a sua podridão. O meme que marcou a minha, digamos, “iluminação”, foi o das malas de dinheiro do Gedel, com a frase: “articulação política”. Sim, se isso é o que se entende por articulação política, então é óbvio que não tem negociação. Com ninguém.

Se não existe possibilidade de negociação com este Congresso (e, a bem da verdade, com qualquer Congresso, porque político é tudo igual), restam três alternativas:

1) O Congresso aprova as medidas enviadas por Bolsonaro sem qualquer tipo de “negociação” – negociação entre aspas para assumir o sentido bolsonarista da palavra. Os congressistas, ao se depararem com as consequências nefastas para a nação de não votarem com o governo, colocariam a mão na consciência. Há dois problemas com essa alternativa: a) bandido não tem consciência e b) pode haver parlamentares honestos que simplesmente não concordam com as medidas, ou que pensem que não sobrevirá o caos se não forem aprovadas.

2) O Congresso não aprovas as medidas, e o governo torna-se, na melhor das hipóteses, um lame duck durante 4 anos. Na pior, o presidente cai em função da piora significativa das condições econômicas. (Observação importante: não estou aqui prevendo e muito menos torcendo pela queda do presidente. Estou apenas cobrindo todas as possibilidades)

3) Na impossibilidade de passar medidas importantes, o Congresso é fechado, limpando-se o caminho para as reformas necessárias, sem precisar “negociar” com bandidos. Para quem acha isso um exagero, li muitas manifestações nesse sentido neste fim de semana.

Enfim, e para encerrar, vocês não vão mais ler aqui que Bolsonaro “deveria fazer isso”, ou “deveria fazer aquilo”. Bolsonaro é o que é, e trairia seus eleitores se fosse ou fizesse outra coisa.

Vamos ver onde isso tudo vai dar.