Estou assistindo a um seminário patrocinado pelo Banco Central, reunindo vários banqueiros e ex-banqueiros centrais do mundo inteiro.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, teve a oportunidade de fazer a abertura. Veio com aquela conversinha mole, de que política monetária e política fiscal devem trabalhar em harmonia, são como que os dois braços da política econômica do governo.
Em seguida, começa o primeiro painel, com a participação, entre outros, do ex-presidente do BC argentino durante o mandato de Maurício Macri, Federico Sturzenegger. Recomendo fortemente que assistam à sua curta apresentação, entre os minutos 0:55 e 1:12 (o link está no final do post). Além de ser muito espirituoso (como, em geral, os argentinos são), Mr. Sturzenegger só trouxe verdades. Inclusive, quando falou do desastre que significou a mudança da meta de inflação, momento em que lamentou que Haddad tivesse já abandonado o evento.
Mas o ponto a que queria chamar a atenção na fala do ex-presidente do BC argentino ocorreu logo no início, em que ele refutou a imagem usada por Haddad. Na verdade, disse o ex-banqueiro central, a política fiscal são os dois braços, enquanto a política monetária é o coração do corpo. Confesso que raras vezes ouvi uma imagem tão perfeita.
Dizer que política monetária e política fiscal são os dois braços de um corpo supõe, de maneira implícita, que há um cérebro que comanda os seus movimentos. Ou seja, os braços se movem voluntariamente, obedecendo a um comando central. No caso do Brasil, este cérebro seria, obviamente, os poderes da República, presidente e congressistas.
Não, esta imagem está irremediavelmente errada. A atuação do Banco Central se aproxima à dinâmica do coração, um órgão que funciona sem que o cérebro interfira (ainda bem!). O coração bate mais forte ou mais fraco a depender da demanda do corpo: se o corpo está em repouso, o coração pode bater mais lentamente, se o corpo está acelerado (se os braços estão se movimentando muito), o coração precisa acelerar seus batimentos para prover o sangue necessário à atividade. Não é o cérebro que, voluntariamente, ordena que o coração faça uma coisa ou outra, mas antes o coração está “programado” para que, de maneira AUTONÔMA, responda aos estímulos do restante do corpo (desculpem-me os médicos se a imagem não é perfeita, só quis dizer que o coração não faz movimentos voluntários).
Assim também com o Banco Central: a política monetária somente reagirá aos estímulos do restante da política econômica, principalmente a política fiscal. Não há nada que o Banco Central possa fazer, a não ser garantir que o restante do corpo funcione bem. E o pressuposto para o bom funcionamento do corpo é uma moeda estável. Então, o BC fará o que for necessário para manter a estabilidade da moeda, respondendo de maneira proporcional aos estímulos que vêm do restante do organismo econômico. Note que o BC, a exemplo do coração, não “decide” voluntaria e discricionariamente qual será o nível da taxa de juros. O BC praticará a taxa de juros NECESSÁRIA para manter o restante do corpo econômico funcionando com uma moeda estável.
Claro que, assim como o coração, o BC tem um limite, a partir do qual já não consegue cumprir a sua missão. Quando isso acontece, a política monetária deixa de ter efeito, e a moeda se desestabiliza, desestabilizando todo o organismo econômico.
Como disse Federico Sturzenegger, às vezes é mais fácil aprender com o que deu errado. E muita coisa deu errado na Argentina. Vai lá, assiste, serão os 17 minutos mais bem empregados do seu dia hoje.
O filme “O curioso caso de Benjamin Button” fantasia em torno de um tema, como diz o título, curioso: o protagonista, Benjamin Button, nasce velho e vai rejuvenescendo ao longo do filme, morrendo na forma de um bebê. Não pude deixar de lembrar desse filme ao ler com mais cuidado sobre o MMT – Modern Money Theory. Além de virar de cabeça para baixo a noção que temos do dinheiro e das finanças públicas, o MMT lembrou-me o filme por outro detalhe: assim como Brad Pitt vive um tórrido romance com Cate Blanchett no único momento em que poderiam fazê-lo (no meio da vida dos dois), o MMT se encontra e se enrosca com o pensamento econômico dominante (que chamaremos de “mainstream”), fazendo-nos pensar porque, afinal, toda essa ginástica para chegar nas mesmas conclusões. Mas estou colocando o carro adiante dos bois. Vamos por partes.
Por que o MMT? Por que agora?
O MMT seria mais uma teoria maluca, dessas que aparecem de vez em quando na periferia do mainstream, não fosse por um pequeno detalhe: seu embaixador no Brasil é ninguém menos que André Lara Resende, banqueiro e um dos pais, junto com Pérsio Arida, de nada menos que o Plano Real. Foram também pais do Plano Cruzado, mas filho feio ninguém quer, não é mesmo? Lara Resende e Arida foram responsáveis pela parte heterodoxa do Plano Real, aquela que chamou a atenção pela sua mágica: o estabelecimento de uma moeda hiperindexada, a URV, que permitiu uma transição suave entre a moeda antiga e a nova, sem os congelamentos e tablitas que serviram de maldição para os outros planos. Lara Resende pariu o Real, mas quem realmente criou a moeda foram Gustavo Franco, Pedro Malan e outros heróis anônimos da equipe econômica de FHC, que enfrentaram a bucha de manter o Real como uma moeda confiável ao longo dos anos.
Como dizíamos, André Lara Resende vem fazendo propaganda do MMT, o que também não deveria chamar a atenção, dado que o economista, há muito tempo, está longe dos centros do poder. No entanto, Lara Resende foi chamado para a equipe de transição do governo Lula e, recentemente, vem se colocando como uma alternativa para o Banco Central. Dado que, para quem tem conhecimento do MMT de ouvir falar, a teoria casa perfeitamente com o zeitgeist do novo governo, achei por bem estudar melhor o assunto, para entender o que nos aguarda.
Fontes
Fui atrás de artigos acadêmicos que pudessem iluminar o meu caminho. Cheguei a ler alguns (não parecem ser muitos), e são todos muito repetitivos, você leu um, leu todos. Não há evidências empíricas (digo, estudos econométricos) que sirvam de base para suas conclusões. Trata-se apenas de uma forma de ver o processo de criação de dinheiro, que leva a conclusões curiosas. Conclusões estas, repito, que carecem de comprovação empírica. Existe a reivindicação de que fenômenos como a inflação baixa no Japão são plenamente explicáveis pelo MMT, sem, no entanto, a preocupação de explicar a ligação de uma coisa com a outra.
Mas este não é um artigo acadêmico. A pretensão é muito mais simples: entender o que propõe o MMT e tentar antecipar o que seria a sua aplicação ao caso brasileiro. Para tanto, nada melhor do que ir até o pai da matéria, André Lara Resende. O economista escreveu um excelente artigo, bastante didático, que nos serviu de fonte principal para este post: Consenso e contrassenso: déficit, dívida e previdência, publicado na revista do Centro Brasileiro de Relações Internacionais em 2019. Até onde pude encontrar, é o único artigo de fôlego do economista sobre o assunto, o resto são artigos de jornal. Portanto, este post será uma análise deste artigo.
Uma dívida “sem custo”
André Lara Resende começa seu artigo questionando o que ele chama de “custo fiscal da dívida pública”. Ou, em outras palavras, as dúvidas em relação à sustentabilidade da dívida pública. O economista, para defender seu ponto, expõe um truísmo matemático: se a taxa de juros real for menor do que a taxa de crescimento real da economia, na ausência de déficits primários a dívida pública será decrescente em relação ao PIB, qualquer que seja o seu tamanho. Não precisa grande elaboração para se chegar a essa conclusão. A fórmula, de verdade, é bem simples:
Quer dizer, atualizamos a dívida de ontem pelos juros, o PIB de ontem pelo seu crescimento e somamos o déficit primário para se chegar à relação dívida/PIB de hoje. Um exemplo numérico nos será útil para entender o conceito. Para tanto, vamos reescrever a fórmula acima da seguinte maneira:
A dívida brasileira, hoje, representa 78% do PIB. Vamos assumir que o crescimento econômico, neste ano de 2023, seja de 1%, os juros reais que incidem sobre a dívida sejam de 8% e o déficit primário seja de 1,5%. A relação dívida/PIB no final de 2023 chegaria a:
Ou seja, se essas premissas estiverem corretas, chegaremos ao final de 2023 com uma dívida de aproximadamente 85% do PIB. Claro, se houver uma surpresa inflacionária, os juros reais serão menores e a dívida (em relação ao PIB) será menor, mas isso é papo para outro artigo.
Por enquanto, temos apenas um truísmo matemático, não se trata de discussão econômica. André Lara faz uso desse truísmo para falar o óbvio com ares de grande descoberta: a dívida pública não teria custo fiscal (seria sustentável), SE a taxa de juros fosse menor que a taxa de crescimento do PIB e SE o déficit primário fosse igual a zero. Por exemplo, no caso acima, o déficit zerado e a taxa de juros em zero (menor que o crescimento de 1%), teríamos:
Bem, de fato, sob essas condições, a nossa relação dívida/PIB diminuiria. Mas a coisa funciona como seu eu afirmasse que, se minha mãe tivesse bigode, seria o meu pai. Uma boa parte do raciocínio posterior partirá da premissa de que o tamanho da dívida pública pouco importa, como se estes dois grandes “SEs” pudessem ser cumpridos a priori. Lara Resende dirá que a tarefa do BC é manter a taxa de juros abaixo da taxa de crescimento da economia, colocando um bigode na minha mãe. Mas não vamos colocar o carro adiante dos bois.
Na verdade, Lara Resende concede que os financiadores da dívida podem, de uma hora para outra, perder a confiança na sustentabilidade da dívida. Esse seria o único grande “problema”, uma espécie de profecia autorrealizável, em que uma dívida perfeitamente sustentável passa a não o ser porque os financiadores “ficam com medo” de que não seja. Pois eu GARANTO para Lara Resende que, se o BC puder praticar taxas de juros menores que o crescimento econômico sem gerar inflação, e o déficit público for zerado, os financiadores estarão ávidos por comprar a nossa dívida. Essa “desconfiança” surge justamente porque essas premissas não se cumprem na maior parte do tempo.
Vale aqui reproduzir um trecho do artigo, que demonstra a construção de toda uma teoria no ar: “A possibilidade de que, no futuro, o juro possa ser superior ao crescimento, é a principal razão para cautela em relação ao aumento da dívida. Mas se o juro for fixado pelo banco central e puder ser sempre inferior à taxa de crescimento, a dívida efetivamente nunca terá custo fiscal. A tese é surpreendente, pois contradiz frontalmente o consenso entre os formuladores de políticas e a teoria macroeconômica estabelecida”. A “tese” não contradiz nada, é um puro truísmo matemático. SE o BC puder fixar a taxa de juros onde quiser, então estará tudo resolvido. Lara Resende passará o restante do artigo tentando provar que o BC pode colocar a taxa de juros onde quiser, e este é o ponto que interessa para entender um potencial futuro presidente do Banco Central. Vejamos.
A MMT
Lara Resende dedica a segunda parte do seu artigo a descrever em detalhes a Modern Money Theory. Foi nessa parte que me senti vingado! A tese foi originalmente formulada por um sujeito chamado Warren Mosler, um financista como eu, não um economista! Portanto, se foi um financista, um practioner, como dizem com certo desdém os acadêmicos, que formulou os princípios da MMT, estou muito à vontade para desmontá-los. Talvez por isso a academia não tenha se dedicado tanto ao assunto. Imagine se euzinho tivesse tido a pretensão de elaborar uma nova teoria sobre o dinheiro! Nada feito. Mas, por algum estranho motivo, alguns professores da Universidade de Missouri-Kansas se interessaram e começaram a escrever sobre o assunto, chamando a atenção de, adivinhem, Bernie Sanders. Daí, foi um pulinho para chegar ao Brasil pelas mãos de Lara Resende.
Bem, depois do preâmbulo da vingança, vamos à teoria.
Para entender a base da MMT, é preciso revisitar duas das três funções clássicas da moeda: ser meio de troca e unidade de conta. Acostumamo-nos a pensar na moeda, em primeiro lugar, como meio de troca para facilitar o comércio, minimizando a necessidade de fazer escambo. No início, mercadorias dos mais diversos tipos foram usadas, a depender da comunidade onde se dava o comércio. Com o passar do tempo, os metais preciosos assumiram esse papel, por serem facilmente divisíveis e relativamente raros. Mais um pouco de tempo, casas bancárias especializadas se apresentaram como fiéis depositárias das reservas em ouro, em troca das quais emitiam recibos que eram aceitos como meio de troca. Nascia o papel-moeda. Passa o tempo, e os Estados modernos assumem o monopólio da emissão do dinheiro, mas ainda com lastro no ouro. Por fim, tão recentemente quanto 1971, o padrão-ouro é definitivamente abandonado, e as moedas nacionais passam a ser puramente fiduciárias, ou seja, dependem da confiança nos governos que as emitem.
Essa brevíssima história do dinheiro é virada de ponta-cabeça pelos proponentes do MMT. Para estes, o dinheiro é uma simples unidade de conta criada pelo Estado. Funcionaria como uma espécie de “conta corrente” entre o Estado e os cidadãos, onde créditos e débitos são feitos de acordo com os gastos do Estado (crédito para os cidadãos / débito do Estado) e os impostos são pagos (débito dos cidadãos / crédito do Estado). O dinheiro seria apenas uma convenção útil para essas trocas entre Estado e cidadãos.
A função de “unidade de conta” do dinheiro é a forma como expressamos os preços das coisas. Em uma economia funcional, a unidade de conta coincide com o meio de troca. Já em uma economia disfuncional, inflacionária, a função de unidade de conta da moeda nacional se perde. Os preços são denominados em dólares, por exemplo. A liquidação das operações pode até se dar na moeda nacional (meio de troca), mas o preço é em alguma moeda estável. No Brasil da hiperinflação, nos acostumamos a denominar preços em forma de índices. Assim, por exemplo, os impostos eram denominados em UFIRs, ainda que liquidados em cruzeiros. A URV, que serviu como antecessora do real, era uma “moeda” que servia somente como unidade de conta, para expressar preços, mas não como meio de troca. Passou a servir como meio de troca quando se transformou em real.
Afirmar que a moeda nasceu antes como “unidade de conta” é muito difícil de imaginar. Seria como se o mundo tivesse vivido a experiência da URV antes de emitir moedas, e as moedas seriam apenas a materialização desse “ente” chamado URV. É um pouco como se o pensamento que temos da realidade antecedesse a própria realidade, como se a realidade fosse uma criatura do nosso pensamento.
Na prática, não é necessário entender essa distinção entre “meio de troca” e “unidade de valor” para entender a proposta do MMT. A coisa é relativamente mais simples do que isso: ao invés de a moeda ser uma criatura das necessidades trazidas pelo comércio, trata-se de uma criação do Estado para o pagamento de impostos. Na medida em que há um poder soberano, este poder tem a prerrogativa de criar uma dívida para os cidadãos ou súditos, e estes cidadãos ou súditos somente podem pagar essa dívida (impostos) com a moeda emitida por este poder soberano. A moeda torna-se de aceitação universal justamente porque todos precisam pagar impostos, e todos sabem que aquela moeda será aceita pelo Estado para o pagamento desses impostos.
Fico imaginando o que acontece em países como a Argentina ou a Venezuela, onde a moeda emitida pelo Estado é preterida por outras mais estáveis. Onde estaria a “aceitação universal da moeda para pagar impostos”?
Voltando. Se a moeda é uma simples “unidade de conta” na qual são expressos os impostos que os cidadãos precisam pagar, e o Estado emite a moeda com a qual esses impostos serão liquidados, segue-se que o Estado não precisa arrecadar impostos para gastar, mas, ao contrário, gasta para arrecadar impostos. Não confunda: não estamos aqui na macroeconomia desenvolvimentista, em que se espera que os gastos do Estado fomentem a atividade econômica para, daí, aumentar a arrecadação de impostos. A coisa é completamente diferente, e muito mais estranha: o Estado não precisa de impostos! O Estado pode emitir moeda à vontade para financiar os seus gastos, não precisa arrecadar. Na verdade, os próprios gastos do governo geram o dinheiro, não faz sentido a palavra “financiar” nesse contexto. O governo, ao gastar, credita a conta corrente dos cidadãos “out of thin air”, criando dinheiro do nada.
Novamente, pra você que está esfregando os olhos e acha que não leu direito: segundo o MMT, o Estado não tem restrição financeira alguma, pode gastar emitindo moeda à vontade, pois todos vão aceitar a única moeda que serve para pagar os impostos que todos devem ao Estado. A relação de causalidade é invertida: o Estado não precisa arrecadar antes para gastar depois, o Estado gasta quanto quer, e depois o dinheiro volta via os impostos! Nas palavras de Lara Resende, “é o gasto do governo que cria moeda, e não a disponibilidade de moeda que viabiliza o gasto do governo”. Note o verbo “criar” utilizado.
Claro que o arguto leitor já deve estar incomodado com a contradição: se, afinal, o Estado não precisa de impostos para gastar, por que, afinal, existem impostos? Por dois motivos: 1) os impostos servem como uma espécie de “regulador” do mercado. Se o governo gastasse e não “enxugasse” a demanda via impostos, “talvez” esse dinheiro pressionasse a demanda, o que causaria a sua desvalorização com o tempo; e 2) se não houvesse cobrança de impostos, como se daria a “aceitação universal” da moeda emitida pelo Estado? Se não houvesse essa obrigação, ruiria todo o sistema. Então, os impostos servem para garantir que haja aceitação do dinheiro que o próprio Estado usa para fazer os seus gastos. Trata-se de uma espécie de dominação totalitária: o dinheiro deixa de ser a expressão da vontade livre dos homens em suas trocas comerciais, para ser a expressão de um Estado que domina toda a realidade econômica, gastando tanto quanto é necessário segundo seus próprios critérios, e obrigando a todos que aceitem essa moeda por meio da imposição de impostos. Esse tipo de construção mental é típico de quem vê o Estado como o alfa e o ômega da sociedade.
Essa tese dos impostos como fator de aceitação da moeda de um país é facilmente refutável. Em primeiro lugar, o recolhimento de impostos é função de alguns poucos agentes econômicos (empresas e uma fração dos trabalhadores), de modo que, quem não recolhe impostos, segundo essa teoria, não teria porque aceitar a moeda. Além disso, apenas uma parte da renda dos agentes é dedicada ao pagamento de impostos. Por que os agentes aceitariam toda a base monetária, se somente uma parte dela é usada para pagar impostos? No limite, os agentes reservariam a moeda nacional suficiente para pagar os impostos e trocariam o restante por moedas não expostas à corrosão inflacionária. Aliás, é isso o que acontece em países como Argentina ou Venezuela, desafios à tese de que a moeda é sempre aceita dentro da jurisdição do Estado.
O excesso de moeda não necessariamente provoca inflação
Verdade. Lara Resende gasta sua tinta para provar algo que não precisa ser provado, assim como o truísmo matemático que abriu este post e que foi nos trazido pelo economista com ares de grande novidade.
A grande “prova” de que excesso de moeda em si não causa inflação (a única prova incessantemente martelada em todos os artigos sobre MMT) é o “quantitative easing” praticado pelos Bancos Centrais das economias desenvolvidas: foram trilhões injetados no sistema financeiro, através da compra, pelos bancos centrais, de tudo o que havia nos balanços dos bancos. Os BCs ficaram com os títulos, enquanto os bancos ficaram com o dinheiro emitido pelos BCs. O que aconteceu? Nada. O dinheiro ficou lá, dormindo nas reservas bancárias, porque não havia demanda para tudo aquilo, e não havia apetite dos bancos para emprestar tudo aquilo. A moeda “criada” pelos BCs não criou inflação. Claro, não foi gasto!!! Lara Resende apresenta esse fato como uma subversão da sabedoria do mainstream, quando, na verdade, trata-se de uma verdade comezinha: dinheiro guardado no cofre não gera inflação.
O que gera inflação é gasto. Lara Resende escreveu este artigo em 2019. Gostaria de ver um artigo depois da grande inflação de 2021/2022, com o dinheiro dos governos indo diretamente para a mão do povo, e não para os bancos. Claro, a explicação é que se trata de “inflação de oferta”, não de “inflação de demanda” e blá, blá, blá. Como se a demanda por bens não tivesse explodido durante a pandemia (basta ver a explosão das vendas on line) e, depois da abertura, não tivesse explodido a demanda por serviços. Ok, houve também gargalos de produção localizados, mas a inflação não teria atingido os níveis que atingiu somente por restrição de oferta.
Sim, Lara Resende afirma que é o excesso de demanda agregada que gera inflação, não o excesso de moeda em si, como provou o “quantitative easing”. Mas com isso concordamos todos. É aquele momento do filme (haverá outro) em que o Brad Pitt do MMT se encontra com a Cate Blanchett do mainstream com a mesma idade, e pinta um clima. O problema é o excesso de demanda causado pelos gastos do governo, não necessariamente o excesso de moeda, sendo esta apenas uma consequência. Isso será abordado mais para frente em mais detalhe.
Uma confusão dos diabos
Como vimos, o MMT propõe que o governo não tem restrição financeira alguma. Não precisaria, em princípio, nem recolher impostos e, além disso, nem contrair dívidas para gastar. Basta creditar o dinheiro na conta dos cidadãos, dinheiro este que todos aceitam porque o usam para pagar os impostos. A decisão de se endividar tem a natureza de uma simples gestão dos passivos: tanto faz emitir moeda ou dívida para financiar os seus gastos, no final é tudo um governo só.
Nesse contexto, é incompreensível porque o governo se endividaria pagando juros. Afinal, se tanto faz emitir moeda ou se endividar, muito melhor é emitir moeda, que paga juros zero. Aliás, é quase a essa conclusão que chega Lara Resende: segundo ele, a melhor forma de o governo se financiar é através da dívida de curtíssimo prazo, o overnight. Nada de emitir dívidas longas, que custam o olho da cara. Faltou coragem para dar o próximo óbvio passo: pra que emitir dívida, se é possível emitir moeda, que não paga juros? Em recente artigo no Valor, Lara Resende afirma que a dívida pública é uma espécie de “bem público”, necessário para que os rentistas possam obter seus ganhos. Sem a dívida pública, pasmem, não haveria onde aplicar o dinheiro, e a economia cairia em profunda recessão! Ora, o MMT tem o remédio: para evitar esse destino cruel, bastaria o governo aumentar os seus gastos emitindo moeda. Torna-se realmente incompreensível porque existe dívida pública no mundo do MMT.
Lara Resende, para demonstrar que o governo não precisa se endividar para financiar os seus gastos, usa novamente o exemplo do “quantitative easing”, citando uma entrevista de Ben Bernanke, então presidente do Fed, em que este afirma que não precisa de dinheiro dos impostos (ou de novas dívidas) para comprar os títulos em poder dos bancos: basta creditar a conta dos bancos junto ao Banco Central, uma operação que necessita apenas de um computador. Estaria, assim, sendo criado dinheiro “do nada”. Lara Resende confunde esse “crédito de dinheiro nas contas dos bancos” com os gastos do governo. Trata-se de uma confusão dos diabos. A Casa Branca não tem como “creditar dinheiro na conta das pessoas” como faz o Fed com os bancos. O cheque que Trump e Biden enviaram para a casa das pessoas durante a pandemia teve sua origem em dívida, que precisou ser emitida e comprada por financiadores da dívida. Não é a mesma coisa. O governo precisou se endividar para obter a moeda, não a emitiu. Realmente não sei de onde Lara Resende tirou a ideia de que se trata da mesma coisa que fez Ben Bernanke ou os outros banqueiros centrais que lançaram mão do quantitative easing.
A realidade dá as caras, finalmente
Em certo ponto do artigo, Lara Resende reconhece que o governo, apesar de não ter restrição financeira, tem a restrição da realidade produtiva do país. Assim, os gastos do governo, ao pressionarem a demanda, podem gerar inflação, se a capacidade produtiva não conseguir responder ao aumento da demanda. Aleluia!
Mas é neste ponto que o MMT entra em contradição. Segundo palavras de Lara Resende, “a eventual pressão inflacionária decorre da sobrecarga exercida pelos gastos do governo na economia e não da expansão monetária”. Ou seja, não é o excesso de dinheiro na economia, mas os gastos do governo que são o culpado pela inflação. Mas, ora, se os gastos do governo são, segundo o MMT, os responsáveis pela emissão (existência!) da moeda, então estamos falando de coisas absolutamente equivalentes, ou, no mínimo, uma causalidade necessária: ao gastar, o governo emite moeda. Portanto, a emissão de moeda é equivalente aos seus gastos, e, neste caso, tanto faz dizer que foi o excesso de moeda ou o gasto do governo o culpado pela inflação. Trata-se de um caso diferente do evento muito particular do empoçamento de moeda nos bancos americanos na crise de 2008, quando o excesso de moeda não causou inflação.
E é justamente quando o MMT entra em contradição (ou Lara Resende, que não traduziu corretamente o MMT) que o segundo encontro entre Brad Pitt e Cate Blanchett acontece. Ambos, mainstream e MMT, concordam que são os gastos do governo que pressionam a inflação. Aleluia, irmão? Sim, aleluia.
É neste ponto que entra a estranha ideia de que a cobrança de impostos por parte do governo serve para regular a demanda. Não que o governo precise de impostos para financiar seus gastos, lembre-se que o governo não tem restrição financeira alguma. Os impostos servem somente para enxugar o excesso de demanda causada pelos gastos do governo. O governo, assim, mantém toda a economia na ponta dos dedos, gastando o que tiver que gastar, e enxugando o excesso via impostos. Impostos estes, vamos lembrar, que servem para que a moeda emitida pelo governo tenha aceitação universal. Então, mesmo que não precisasse estabelecer impostos para enxugar a demanda, os impostos seriam necessários para forçar a aceitação da moeda.
De qualquer forma, Lara Resende reconhece que, apesar de o governo não ter restrição financeira alguma, sua atuação nos gastos e arrecadação de impostos tem sim impactos relevantes, tanto do ponto de visto macroeconômico quanto do ponto de vista microeconômico. Do ponto de vista macroeconômico, os gastos do governo podem gerar excesso de demanda e inflação. Do ponto de vista microeconômico, gastos de má qualidade e impostos distorcivos podem gerar má alocação de recursos e, no final, contribuírem para o baixo crescimento econômico e a má distribuição de renda. Milton Friedman não falaria melhor.
Dívida foi feita para ser rolada, não paga
O mundo continuará girando em torno do Sol. Pessoas continuarão nascendo. Países continuarão existindo. Essas certezas levam Lara Resende a defender que a história de que “nossos filhos serão obrigados a pagar pelas nossas dívidas” é uma falácia. O motivo é simples: nossos filhos também terão filhos, que também terão filhos, e assim indefinidamente. Então, as dívidas do governo podem também ser roladas indefinidamente. Nas palavras de Lara Resende, “enquanto houver futuro, existe a possibilidade de empurrar para frente uma transferência, ou uma dívida, que melhore o bem-estar hoje. Dívidas da sociedade consigo mesma não precisam ser pagas e não drenam recursos.”
Mas, tem um detalhe: isso só funciona em um tipo particular de economia, que Lara Resende chama de “Samuelsoniana”, em referência a Paul Samuelson, que a formulou. Para que funcione, a taxa de juros (que é o “preço” pago pela transferência de um gasto de hoje para amanhã) deve ser menor que a taxa de crescimento da população ou, de maneira mais geral, da economia. Neste caso especial, esquemas de gastos como o sistema previdenciário de repartição (a lá INSS) e os gastos do governo de maneira geral aumentam o bem-estar da sociedade como um todo, já considerando a geração atual e todas as gerações futuras.
Volta aqui, em outra roupagem, a premissa que abriu esse artigo, naquele truísmo matemático: se a taxa de juros real for menor que a taxa de crescimento da economia, tudo estará resolvido.
A coisa pode ser melhor entendida se traçarmos um paralelo com uma empresa. Quando um banco empresta dinheiro para uma empresa, avalia se o fluxo de caixa futuro dessa empresa será suficiente para pagar esse empréstimo. Essa verificação ocorre no momento do empréstimo e sempre que este empréstimo é renovado. A empresa pode não pagar nunca essa dívida, sempre a rolando para frente. Mas, a cada rolagem, o banco verificará se o fluxo de caixa futuro será suficiente para pagar a dívida.
Pois bem. No caso do governo, como um país dificilmente deixa de existir, mesmo que não haja fluxo de caixa futuro (superávit primário igual a zero), a dívida é sustentável se a taxa de juros for menor que a taxa de crescimento da economia. Aliás, não por outro motivo, as taxas de juros cobradas de governos são, invariavelmente, menores que as taxas cobradas de empresas. Não há nada de surpreendente ou novo aqui.
A tal “economia Samuelsoniana” das gerações superpostas funciona enquanto as taxas de juros forem menores que a taxa de crescimento econômico. O problema, como sempre, é combinar com os russos. No caso, com as taxas de juros.
Se não é assim, que seja assim
Chegamos ao ponto fulcral do pensamento “mmteano”, capitaneado no Brasil por Lara Resende, e que pode ter implicações práticas para a atuação do Banco Central sob a sua direção. Acompanhe com atenção.
Segundo o MMT, o controle da inflação não é tarefa da política monetária, mas da política fiscal. Ao Banco Central caberia apenas manter a taxa de juros abaixo da taxa de crescimento da economia, como preconiza a economia “Samuelsoniana”, para que o bem-estar seja maximizado pelos gastos públicos. Na verdade, nessa economia, a presença de um banco central passa a ser quase dispensável: a taxa de juros passaria a ser determinada por uma regra automática, e não por um certo grau de discricionariedade do banqueiro central, que está sempre em busca da taxa de juros ótima que possa trazer a inflação para baixo sem penalizar em demasia o crescimento econômico.
O controle da inflação se daria exclusivamente através da política fiscal. O governo, através de uma mistura de gastos e impostos, regularia o montante de moeda na economia, de modo a atingir um equilíbrio não inflacionário. Difícil compatibilizar essa ideia com a premissa de déficit zero para que a dívida seja sustentável no longo prazo, naquele truísmo que vimos logo no início. Mas vamos ignorar essa contradição para continuar com nossa análise.
O mundo do “dever ser” é um mundo lindo, maravilhoso mesmo. Neste mundo, o crime simplesmente não existe, por exemplo. Não existe simplesmente porque o crime é errado. Ponto. Neste mundo, a polícia é dispensável, claro. Assim também no maravilhoso mundo do MMT: a política monetária é dispensável, porque o governo controlará a inflação através da política fiscal (gastos e impostos). Seria ótimo viver nesse mundo. Infelizmente, o mundo real é diferente.
No mundo real, o governo gasta muito quando a economia está em recessão e gasta mais ainda quando a economia está em crescimento. A inflação é o resultado líquido e certo da política fiscal do governo. De qualquer governo. Tanto faz se a moeda é um meio de troca ou se é uma unidade de conta entre o governo e os cidadãos que pagam impostos. No final do dia, deixado à sua própria natureza, o governo forçará a demanda agregada, porque esse é a natureza do processo político. O banco central é a polícia, que está ali para evitar que o crime inflacionário seja cometido.
Lara Resende tem um pé na realidade. Sabe que os financiadores da dívida têm receio justamente deste comportamento do governo e, portanto, pedem taxas de juros mais altas quanto mais longos forem os títulos públicos. Por isso, defende que o governo se financie somente no overnight, não sancionando este tipo de temor dos rentistas. Afinal, o governo cumprirá a sua parte e, portanto, não faz sentido pagar taxas de juros mais altas do que a taxa determinada pelo banco central, que, como sabemos, será menor que a taxa de crescimento da economia. Ao se financiar somente no overnight, o governo garante essa relação. Fica difícil imaginar porque os outros agentes econômicos se financiariam a prazos mais longos, se nem o governo toma dinheiro emprestado nesses prazos. Viveríamos uma economia no overnight, como nos melhores tempos da hiperinflação, sem crédito de longo prazo.
Banco central que mantém as taxas de juros abaixo da taxa de crescimento econômico, na crença de que o governo controlará os seus gastos para não gerar excesso de demanda e, como consequência, inflação. Esta é a economia do MMT, preconizado por Lara Resende. O que acontecerá quando assumir o Banco Central?
Bejamin Button, afinal, é uma aberração
Lara Resende e os proponentes do MTM insistem na tese de que o governo pode tudo, não tendo restrição financeira alguma, na medida em que é o criador da moeda e não pode, por isso, dar calote. No entanto, ao longo de todo o artigo, o economista vai concluindo o que todo economista mainstream sabe: sem equilíbrio fiscal, nada feito. Tanto faz a explicação que se dê, tanto faz a tese que embasa a conclusão, o que importa é o governo não gastar em excesso e mal.
O MMT seria apenas uma construção mental inútil, por chegar às mesmas conclusões do mainstream, se não fosse perigosa. Como diz Lara Resende, as premissas do MMT, se mal-entendidas, “correm o risco de serem apropriadas pelo populismo para justificar o gasto público demagógico e o estado patrimonialista”. Pois é. Para que correr esse risco, se um governo fiscalmente responsável é também premissa da macroeconomia mainstream? Com a vantagem de que os economistas ortodoxos nutrem um saudável ceticismo em relação aos governos, o que os levam a preconizar um banco central independente, que controla o nível de juros de acordo com metas de inflação, como um contraponto ao governo que “cria” moeda ao gastar.
Não, o normal é que as pessoas nasçam novas e morram velhas. Benjamin Button pode ter alguns pontos de contato com uma vida normal, mas é, no final do dia, uma aberração. A construção mental do MMT é desnecessária, no mínimo. E, como admite seu defensor no Brasil, pode ser perigosa, ainda mais em um país viciado em inflação.
O Nobel Richard Taler, especialista em economia comportamental, condensou em seu livro Nudge (que poderia ser traduzido por “empurrãozinho”) as suas ideias de como levar os seres humanos a tomarem melhores decisões de investimento. E não só. Na verdade, ele aborda vários aspectos da vida, e demonstra como pequenos truques podem levar a melhores decisões.
Um dos seus primeiros exemplos é o da alimentação nas escolas. Ele sugere que os alimentos menos saudáveis estejam longe do alcance visual das crianças. De fato, o consumo desses alimentos diminuiu onde o esquema foi testado. Outro exemplo: em um país da África com alto índice de acidentes de ônibus intermunicipais, colou-se um adesivo com os dizeres “grite com o motorista se ele estiver dirigindo muito rápido”. nas costas dos bancos. Ônibus com esses adesivos tiveram menos acidentes.
A isso Taler chama de “arquitetura da escolha”. Certos truques são projetados para que as pessoas evitem os seus instintos ou inércia e tomem a melhor decisão para si. Os críticos desse tipo de “empurrãozinho” dizem que se trata de algo autoritário, pois alguém teria o poder de induzir as decisões que outros tomam, como se soubessem o que é melhor para você. Mas poucos defenderão que crianças comendo porcarias ou ônibus sendo guiados em alta velocidade sejam decisões sábias.
Todo esse preâmbulo vem a respeito de uma frase usada por Luís Eduardo Assis em seu artigo de hoje, sobre o embate entre Lula e o Banco Central. Assis afirma, no melhor estilo libertário, que é legítimo o direito de Lula de errar, e que tal erro seria punido nas eleições de 2026. O que dizer?
A autonomia do BC é uma “arquitetura da escolha”. Com esse desenho, o BC é levado a tomar decisões de acordo com sua missão, que é a de defender a estabilidade da moeda. No entanto, ao contrário dos exemplos de Taler, essa arquitetura não foi definida por terceiros. O próprio Estado brasileiro, através de seus representantes, o fez. Aqui, a coisa se parece mais com os marinheiros do barco de Ulisses, que enchem seus ouvidos de cera para que não escutem o canto das sereias. Trata-se de medida auto-infligida, pois a experiência mostra que, de outra forma, o resultado é desastroso.
Lula, amarrado ao poste do navio pelas cordas da autonomia do BC contra a sua vontade, grita e se esgoela para que seus marinheiros tirem a cera dos ouvidos, pois o canto da sereia do crescimento econômico é belo, e um pouco mais de inflação não faz mal a ninguém. No entanto, ao contrário de decisões que afetam somente a própria vida, Lula quer levar o País inteiro para o desastre. Ciclos eleitorais já se mostraram insuficientes para levar o navio da economia a bom porto. Pelo contrário, ciclos eleitorais avivam a chama do populismo. Por isso, o Estado brasileiro optou pela arquitetura da autonomia do BC.
Para quem não tiver paciência de ler esse artigo de André Lara Resende, vou resumi-lo em poucas palavras: o BC fez mal ao país ao subir os juros, porque os gastos com juros tiram dinheiro das necessidades sociais mais prementes e, além disso, impulsionam a inflação, porque os juros pagos aos rentistas se transformam em consumo. Além de impulsionar a demanda, o BC erra ao não considerar que vivemos uma inflação de oferta, de modo que não adianta nada subir os juros.
No mundo segundo André Lara Resende, o BC deve fazer considerações sobre o gasto do Tesouro com juros antes de decidir sobre o nível da Selic. Segundo Lara Resende, é o BC, e só o BC, que determina o custo da dívida. Nesse estranho mundo, é o devedor quem determina a taxa de juros que vai pagar para se endividar.
Infelizmente, André Lara Resende não aceitou fazer parte do governo. Seria o complemento ideal para a fantástica equipe que temos até o momento na Fazenda. Com suas ideias, experimentaríamos o próximo nível de desorganização do mercado, que faria o período Dilma parecer um passeio no parque.
Política monetária é aquela que se refere à administração da moeda no mercado doméstico, enquanto a política cambial trata da administração da moeda no mercado externo. A primeira procura manter a inflação controlada, enquanto a segunda procura manter o equilíbrio no balanço de pagamentos. Há vasos comunicantes entre as duas políticas, porque, afinal, trata-se sempre da mesma moeda.
O governo Lula herdou do governo FHC o tripé macroeconômico: metas de inflação, câmbio flutuante e superávits primários. As duas primeiras pernas desse tripé referem-se às políticas monetária e cambial, enquanto a terceira refere-se à política fiscal, abordada no episódio anterior.
As políticas monetária e cambial, por tratar-se do controle da moeda, são atribuição do Banco Central, enquanto a política fiscal é atribuição direta do governo. Nem sempre foi assim, mas essa independência operacional do BC ganhou força durante o governo FHC e, como veremos, foi respeitada durante a fase da Grande Ilusão, que coincidiu, em grande parte, com a liderança de Henrique Meirelles à frente do BC. A coisa começa a degringolar nos Anos da Húbris, com alguns sinais já no final do governo Lula, mas atingindo o apogeu da deterioração durante o governo Dilma e seu fiel escudeiro no BC, Alexandre Tombini.
A Política Monetária
Antes de começarmos, precisamos explicar brevemente como funciona o sistema de metas de inflação. Nesse sistema, a meta serve como uma âncora de longo prazo para os agentes econômicos. Na falta de qualquer outra informação, os agentes econômicos olham para o futuro e preveem que a inflação estará em torno da meta, se o Banco Central tiver credibilidade. Este “se” é de extrema importância. Se o Banco Central cria uma fama de “leniente” com a inflação, os agentes econômicos começam a duvidar que a meta será cumprida e, consequentemente, começam a prever uma inflação no futuro acima da meta. Isso tem importância no momento de precificar taxas de juros, por exemplo: os bancos procuram “prever” a inflação futura para estabelecer as taxas de juros do crédito. Além disso, outros agentes econômicos, como empresas e até pessoas físicas, começam a querer se proteger antecipadamente de uma inflação mais alta no futuro, o que leva a uma elevação da inflação já no presente. Por isso, nesse sistema, é de grande importância que o Banco Central tenha credibilidade, ou seja, que os agentes econômicos acreditem que a autoridade monetária irá perseguir a meta de inflação ao longo do tempo.
Para que o Banco Central cumpra a sua missão, é fundamental que reaja de maneira coerente às ameaças inflacionárias, aumentando ou diminuindo os juros quando necessário, e que se comunique de maneira coerente com o mercado de taxas de juros, de modo a coordenar as expectativas dos agentes econômicos. No sistema de metas de inflação, esse conjunto de atividades do Banco Central (determinação da taxa básica de juros e comunicação com o mercado) determina o seu sucesso ou fracasso em sua missão de controlar a inflação ao longo do tempo.
Nesse sentido, o governo Lula começou com o pé direito, indicando para o Banco Central um executivo com grande credibilidade junto ao mercado financeiro, o ex-presidente do Bank Boston, Henrique Meirelles. E Meirelles, consciente do seu desafio de construir credibilidade em um mar de desconfianças, começou seguindo a receita do governo FHC: juros altos para manter a inflação sob controle. Em várias ocasiões, o BC de Henrique Meirelles mostrou ser conservador, surpreendendo o mercado e enfurecendo o setor produtivo. Por exemplo, no COPOM de 18/junho/2003, depois de ter elevado a taxa Selic de 25% até 26,50% desde o início do ano, o BC decidiu cortar a taxa Selic em apenas 0,50%. A reação foi a seguinte:
No Copom seguinte, em 23/julho/2003, a Selic foi reduzida novamente, desta vez em 1,50%, mas a reação foi a mesma:
No Copom de 21/janeiro/2004, o BC surpreende novamente o mercado, que esperava novo corte de juros, decidindo pela sua manutenção:
Esta será uma constante em praticamente todo o mandato de Henrique Meirelles à frente do BC. Em 18/setembro/2005, o próprio Armínio Fraga, presidente do BC no 2º mandato de FHC e introdutor do sistema de metas de inflação no Brasil, reconheceu a austeridade do BC de Henrique Meirelles:
O resultado foi a redução da inflação para níveis compatíveis com a meta, conforme podemos observar no gráfico abaixo, que mostra a inflação (medida pelo IPCA, em azul), e a meta (em laranja). Observe como a inflação, depois de uma grande volatilidade no início do governo Lula (muito em função da desvalorização cambial causada pelo próprio receio do mercado com relação à sua eleição), convergiu para a meta, principalmente a partir de 2006.
No entanto, estávamos no fim da fase da Grande Ilusão também na política monetária. No final de seu mandato, até Meirelles se rendeu à lógica eleitoral, e interrompeu um ciclo de alta de juros que havia sido iniciado em abril de 2010. Após apenas 3 altas, o BC deu por encerrado o ciclo, mesmo com as expectativas de inflação ainda subindo, em meio a uma forte recuperação da atividade econômica naquele ano.
Os analistas estavam corretos. No primeiro Copom do governo Dilma, o novo presidente do BC, Alexandre Tombini, precisou retomar a alta dos juros. Foi a primeira vez, desde o início do sistema de metas de inflação, que um ciclo de alta precisou ser retomado após uma breve pausa. A segunda vez seria em 2014, quando o ciclo de alta foi interrompido em abril para ser retomado na semana seguinte do 2º turno das eleições. O fato de ser também um ano eleitoral não é mera coincidência.
O BC, então, recomeça o processo de elevação dos juros. No entanto, na reunião de agosto de 2011, Tombini começa a virada que marcará, daí em diante, a sua atuação frente ao Banco Central. Surpreendendo o mercado, e sem respaldo nas expectativas de inflação, que continuavam a subir, o BC decide dar um cavalo-de-pau e reduzir as taxas de juros:
Esta foi a primeira (e, até o momento, única) vez em que o BC iniciava um ciclo de queda de juros sem que o ciclo de alta anterior tivesse tempo para fazer o seu efeito. A justificativa foi uma virada no cenário externo (na época, a situação na Europa estava realmente se deteriorando), que provocaria uma recessão global e afetaria negativamente o crescimento brasileiro e, por tabela, reduziria a inflação. Além disso, apostava-se na “austeridade” do governo Dilma. Sem dúvida, uma aposta e tanto!
De fato, a inflação saiu de 7,23% no mês de agosto de 2011, até atingir 4,92% em junho de 2012, respondendo ao aperto monetário feito até junho de 2011. Em outubro de 2012, quando a taxa Selic atingiu a mínima histórica de 7,25%, a inflação já havia subido para 5,45%, e estava em processo firme de alta. Lembrando sempre que a meta era de 4,50%. Foi então que começou a se cristalizar no mercado a convicção de que o Banco Central estava, na realidade, trabalhando com uma espécie de “meta paralela” de inflação. A meta oficial era de 4,50%, mas o mercado começou a desconfiar que o BC estava perseguindo algo entre 5,50% e 6,50%, que era o topo da meta. A exemplo de outras áreas do governo Dilma, o BC estaria “jogando com as regras debaixo do braço”, trabalhando no limite de seu mandato e não para atingir a meta oficial.
Essa desconfiança tinha a sua razão de ser. Vejamos o gráfico a seguir:
Observe como, durante os 4 anos do primeiro mandato de Dilma Rousseff (quadro pontilhado vermelho), a inflação nunca ficou abaixo da meta de 4,5%, mas ficou sempre orbitando em torno de 5,5%, o que, com o tempo, foi minando a confiança do mercado.
Mas essa falta de credibilidade do BC foi um trabalho a quatro mãos. Não somente a postura ambígua do BC começou a chamar a atenção do mercado, mas o próprio discurso intervencionista do governo contribuiu para aumentar a desconfiança. A esse respeito, é precisa a descrição da jornalista Claudia Safatle, do Valor Econômico, ao comentar a decisão do Copom de 06/03/2013, em que a diretoria do BC sinaliza que deverá iniciar um ciclo de alta dos juros na reunião seguinte, apenas 6 meses após ter encerrado o ciclo de baixa anterior:
O resultado, como vimos, foi uma inflação constantemente mais alta do que a meta ao longo do tempo, com um estouro da boiada em 2015, pós-eleição, quando os preços administrados foram liberados. Aliás, controle de preços de combustíveis e energia elétrica faziam parte da “maquiagem” da inflação. Era como usar a Petrobras e a Eletrobras para fazer política monetária. Com o fim dessa política, a inflação rapidamente chegou a 10% no final de 2015.
Alguns poderão dizer que estamos novamente com uma inflação de dois dígitos, então este BC é tão leniente quanto o da época do PT. No entanto, é preciso contextualizar e, para isso, ser-nos-á útil comparar a inflação brasileira com a inflação global. É o que fazemos no próximo gráfico:
Note como, a partir de 2011, primeiro de maneira lenta, e depois mais rapidamente, a inflação brasileira vai se descolando da inflação global, até atingir uma diferença de quase 8 pontos percentuais em 2015 (barras verdes). Agora em 2021, com o mesmo nível de inflação de 2015, a diferença para a inflação global é menor que 4 pontos percentuais. Ou seja, hoje, a inflação brasileira tem um componente global muito maior do que em 2015, quando a inflação foi essencialmente fruto da barbeiragem local.
Para finalizar, uma palavra sobre a postura intervencionista do governo Dilma nas taxas de juros, que, de resto, foi a sua marca registrada em praticamente todas as áreas da economia. O ponto alto, sem dúvida, foi o discurso da presidente por ocasião do Dia do Trabalho de 2012:
O governo Dilma já vinha usando o Banco do Brasil e a Caixa Econômica para “reduzir” as taxas de juros, mais ou menos a mesma coisa que vinha fazendo com a Petrobras para “reduzir” os preços dos combustíveis e como faria, no final deste mesmo ano, com a Eletrobras para “reduzir” os preços da energia elétrica. Ficou até famosa a campanha publicitária do Banco do Brasil, “Bom Pra Todos”, em que anunciava os juros mais baixos:
O problema, como sempre, foi a realidade. O gráfico a seguir mostra os spreads de crédito do sistema financeiro, já contando com Banco do Brasil e Caixa, para pessoas físicas e jurídicas:
Em maio de 2012, quando Dilma fez o seu incendiário discurso demonizando os bancos, o spread de crédito (quanto os bancos cobram acima da taxa básica de juros) para as pessoas físicas e jurídicas era de 26,0% e 9,6% respectivamente. A partir de então, os spreads até recuaram um pouco, mas em abril de 2016, quatro anos depois e no mês de seu impeachment, esses mesmos spreads estavam em 36,2% e 9,6% respectivamente. Ou seja, os spreads para a pessoa física haviam aumentado em 10 pontos percentuais, enquanto para a pessoa jurídica estavam no mesmo lugar, não haviam recuado.
Em maio de 2012, quando Dilma fez o seu incendiário discurso demonizando os bancos, o spread de crédito (quanto os bancos cobram acima da taxa básica de juros) para as pessoas físicas e jurídicas era de 26,0% e 9,6% respectivamente. A partir de então, os spreads até recuaram um pouco, mas em abril de 2016, quatro anos depois e no mês de seu impeachment, esses mesmos spreads estavam em 36,2% e 9,6% respectivamente. Ou seja, os spreads para a pessoa física haviam aumentado em 10 pontos percentuais, enquanto para a pessoa jurídica estavam no mesmo lugar, não haviam recuado.
Aprendemos (aprendemos?) que não são discursos contundentes ou o uso de bancos estatais que resolvem o problema dos juros altos. Aliás, este tipo de intervencionismo normalmente tem o efeito justo inverso: aumenta o risco percebido pelo sistema, que coloca prêmios de risco maiores nas taxas de juros para se protegerem de eventuais intervenções ou mudanças de regras de jogo no futuro.
A Política Cambial
Lula iniciou seu governo em uma situação realmente delicada, em parte criada pela própria expectativa de sua eleição, o que piorou algo que já não era bom. No gráfico abaixo, podemos observar o valor do dólar, ajustado pelo diferencial de inflação entre Brasil e EUA. Ou seja, o nível real do dólar, já descontado o efeito da inflação, o que nos dá o real poder de compra da moeda brasileira em relação ao dólar ao longo do tempo.
Observemos que Lula iniciou seu governo com o dólar próximo de R$ 7,00 a valores de hoje. Logo nos primeiros meses de seu governo, a moeda voltou para o nível de R$ 5,50, mesmo nível da segunda metade do governo FHC e, a partir de meados de 2004, engatou um processo de valorização que iria se reverter apenas brevemente durante a crise financeira de 2008 e encerrar-se em meados de 2011, com o dólar batendo R$ 2,50 em dinheiro de hoje.
Mas este foi um período de grande desvalorização do dólar globalmente. No gráfico a seguir, podemos verificar que o Real não se valorizou sozinho. Escolhemos o período que se inicia em 30/04/2003 para expurgar o overshooting pré-eleição, até o ponto de mínimo, em 31/07/2011.
Observemos que o Real foi a moeda que mais se valorizou, mas não foi a única. De modo que uma parte desta valorização foi, de fato, mérito do governo Lula, mas outra parte foi devido a um movimento global que favoreceu as moedas de países exportadores de commodities e até moedas de países mais desenvolvidos, como Franco Suíço e Iene.
Esta grande valorização do real foi firmemente combatida pelo ministro Guido Mantega, que até cunhou uma expressão para se referir a este movimento: “guerra cambial”. O jornal britânico Financial Times, nesta reportagem, foi o primeiro a chamar a atenção para este termo:
Segundo o ministro brasileiro, após a crise financeira de 2008, os países desenvolvidos, liderados pelos EUA, estariam depreciando propositalmente as suas moedas, através de estímulos monetários gigantescos. Estes estímulos monetários (que significam taxas de juros menores), acabaram, segundo Mantega, por afastar investidores destes países, que passaram a procurar rendimentos maiores em países como o Brasil, que precisam praticar taxas de juros maiores para controlar a inflação. Mantega, no melhor estilo desenvolvimentista, passou a demonizar o real apreciado, colocando nele a culpa da nossa “falta de competitividade”.
Veremos que Mantega tinha razão no diagnóstico, ainda que sua narrativa de um complô dos países desenvolvidos careça de racionalidade. De fato, como veremos mais adiante quando abordarmos a formação das reservas internacionais, uma boa parte do fluxo de dólares foi de investimentos financeiros. O problema é que os países desenvolvidos estavam procurando combater uma grande recessão, e o único instrumento monetário disponível era trazer a taxa de juros para zero. A depreciação de suas moedas é apenas um efeito colateral, não o seu objetivo maior. Mas, a narrativa desenvolvimentista sempre envolve manipulação do câmbio, e com Mantega não é diferente.
É irônico que a expressão “Guerra Cambial” tenha ganhado destaque apenas dois dias antes da megacapitalização da Petrobrás, que atraiu nada menos que R$ 21 bilhões de investidores estrangeiros.
Ou seja, ao mesmo tempo que o governo, com uma mão, amaldiçoa o fluxo de recursos do exterior, com a outra procura avidamente estes mesmos recursos para financiar as suas atividades. É um pouco como, por um lado, demonizar os credores da dívida pública, e por outro, fazer déficits que aumentam essa mesma dívida. Mas, sigamos.
Será que Mantega tinha razão? Será que fomos vítimas de uma armação dos EUA para minar a competitividade da nossa indústria via câmbio?
Bem, se você perguntar para qualquer desenvolvimentista, o câmbio sempre estará pelo menos 20% mais apreciado do que deveria estar para “impulsionar” a indústria, qualquer que seja o nível da moeda. E se, por obra e graça da providência, o câmbio estiver no “lugar certo”, faltará a garantia de que ficará ali para sempre, o que, em um regime de câmbio flutuante, é obviamente impossível de se garantir. O câmbio é o preço de nossa moeda, e qualquer tentativa de se controlar preços é inócua, e pode até ser perigosa. Em nossa história econômica já vivemos muitas crises de balanço de pagamentos, justamente porque o câmbio foi “tabelado”, o que sempre acaba por redundar em escassez de moeda forte. O câmbio flutuante é uma benção, e desde a sua adoção, em 1999, não sabemos mais o que é crise de balanço de pagamentos. Ao contrário, por exemplo, de nossos vizinhos ao sul.
A reação do governo Lula foi a de tentar conter o fluxo de capital estrangeiro através de taxação e outras medidas que puniam o ingresso de recursos. A estreia dessa estratégia ocorreu em 20/10/2009, quando o governo estabeleceu uma alíquota de IOF de 2% sobre o investimento estrangeiro em renda fixa e bolsa.
Essa foi apenas a primeira de uma série de medidas que se sucederiam alucinadamente nos 4 anos seguintes, como podemos observar no gráfico a seguir (em vermelho temos as intervenções para fazer o dólar subir, enquanto em verde são as intervenções para fazer o dólar cair):
Estas intervenções são tão deletérias para o bom funcionamento do mercado cambial, que uma das principais exigências para a adesão à OCDE é justamente a eliminação de cobrança do IOF em operações neste mercado. O governo do PT, em linha com sua visão de mundo, usou e abusou desses instrumentos, com resultados pífios do ponto de vista da cotação da moeda que, como vimos, segue leis macroeconômicas próprias. É um pouco como a criança que pretende segurar as ondas do mar com suas mãozinhas.
Para terminar este episódio, vamos entender de onde vieram as reservas internacionais acumuladas durante o governo do PT, uma das grandes conquistas alardeadas pelo partido.
A construção das reservas internacionais
O acúmulo de reservas internacionais é um dos grandes legados do governo Lula. Este fato é cantado em verso e prosa toda vez que se acusa o governo do PT de ter sido um mal para a economia brasileira. De fato, trata-se de um seguro que nos dá o conforto de afastarmos a ameaça de uma crise de balanço de pagamentos, tão comum ao longo da história econômica brasileira. A falta de dólares sempre foi um fator de desestabilização. A manutenção de um sistema de câmbio quase fixo durante o primeiro mandato de FHC quase nos quebrou, exaurindo as poucas reservas que tínhamos. Tivemos que fazer um acordo com o FMI, acordo este que foi encerrado durante o primeiro governo Lula, fato que o ex-metalúrgico faz questão de lembrar com justificável orgulho.
No gráfico a seguir, podemos observar a evolução de nossas reservas (a parte hachurada cobre todo o período dos governos do PT):
Observe como as reservas começam a decolar em 2006 e principalmente em 2007, fazem uma pausa em 2008 e atingem o nível atual em 2012, já no governo Dilma. Portanto, o grosso das reservas atuais são construídas em 5 anos, entre 2007 e 2011, em grande parte na fase que chamo de Anos da Húbris.
Vamos entrar no detalhe de como essas reservas foram construídas. Para tanto, precisamos entender como os dólares são obtidos pelo governo brasileiro.
Como imprimimos reais e não dólares, é preciso que estrangeiros estejam dispostos a comprar os nossos reais com os seus dólares. Isso acontece, basicamente, através de dois canais: receitas correntes e investimentos financeiros.
As receitas correntes de um país (chamada de “conta corrente”) são formadas por três componentes: 1) a balança comercial (o comércio de mercadorias com outros países), 2) a balança de serviços (os serviços que consumimos e fornecemos para outros países) e 3) o pagamento de juros e dividendos.
Já o investimento financeiro é constituído de dois componentes: 1) o Investimento Estrangeiro Direto (chamaremos de IED daqui em diante) e 2) os investimentos em títulos (ações e renda fixa). Em primeiro lugar, vamos ver de onde vieram as reservas observando o comportamento da conta corrente e dos investimentos financeiros no gráfico a seguir:
Observe como os anos de 2007 a 2014 são caracterizados por um grande fluxo de investimentos financeiros (barras laranjas). O fluxo foi tão grande que mais que compensou o déficit em conta corrente até 2012 (barras azuis), fazendo com que sobrasse recursos. Esses recursos (bolinhas brancas) são as reservas. Portanto, o que permitiu construir as reservas foi o fluxo financeiro para o país, principalmente a partir de 2009.
Antes de continuarmos, vamos explorar esta distinção entre conta corrente e investimento financeiro. É importante entender essa diferença, porque nos diz sobre a permanência desses recursos no Brasil. No caso da conta corrente, o dinheiro que entra é nosso. Como foi fruto do comércio, vendemos mercadorias e o dinheiro passa a ser nosso, não precisamos devolvê-lo no futuro. Já o fluxo financeiro não é nosso. Trata-se de um dinheiro “emprestado”. No caso do IED, trata-se de um empréstimo de longo prazo, que será cobrado na forma de juros e dividendos ao longo dos anos, quando não pela venda do empreendimento e repatriação do dinheiro. Veremos adiante que a conta dos juros e dividendos não é pequena. Já o investimento em títulos (ações e renda fixa) pode ser resgatado a qualquer momento. Por isso, é preciso ter muito cuidado ao dizer que podemos usar as reservas para isso ou para aquilo. Na verdade, as reservas são nossas somente se a conta corrente é positiva. Como a nossa conta corrente é negativa, usamos uma parte do fluxo financeiro para pagar esses gastos. Portanto, estamos na verdade em débito. Se, de uma hora para outra, todos os investimentos estrangeiros resolvessem sair do país, não teríamos dólares para pagar a todos, pois usamos uma parte do dinheiro que entrou para pagar o nosso déficit em conta corrente. Por isso, é bom tratar bem os investidores estrangeiros. Vejamos, no gráfico abaixo, o detalhamento desse fluxo financeiro:
Podemos observar que grande parte desses recursos foram Investimentos Estrangeiros Diretos (barras laranjas), ou seja, recursos, em tese, de mais longo prazo para investimentos no país. Digo em tese, porque uma parcela desses recursos entrou como empréstimos intercompanhias, o que poderia ser interpretado como um simples fluxo financeiro. Também tivemos um grande fluxo para a compra de ações (barras amarelas), principalmente em 2007, 2009 e 2010, ano da megacapitalização da Petrobrás.
Por outro lado, a conta corrente brasileira foi negativa em grande parte desse período. Vejamos no gráfico a seguir:
Observe como a conta corrente torna-se positiva somente durante um breve período (de 2003 a 2006), passando a ficar novamente negativa a partir de 2008. O aumento do saldo da balança comercial (barra laranja) é o grande responsável pelo equilíbrio da conta corrente até 2007. A partir de 2010, a conta corrente torna-se bem mais negativa, principalmente porque a balança de serviços (“pobre viajando de avião”) e o pagamento de juros e dividendos começam a cobrar o seu preço. Em outras palavras, o crescimento da renda da população, que começa a demandar serviços do exterior, e o pagamento dos investimentos estrangeiros feitos no passado fazem com que a conta corrente torne-se bastante negativa. No entanto, ainda teríamos um bom fluxo de investimentos estrangeiros para cobrir essa conta, e as reservas permaneceram intactas.
Há, neste ponto, portanto, um grande equívoco, ao relacionar a ascensão da China como potência global, puxando o consumo de commodities, e a constituição das reservas. Sim, há um aumento do saldo positivo da balança comercial neste período. Mas vimos que o grande responsável pela constituição das reservas foi o fluxo financeiro (mais especificamente, o Investimento Estrangeiro Direto). Além disso, como podemos ver no gráfico abaixo, a China vai ganhar importância na balança comercial muitos anos depois da constituição das reservas.
Note que a participação das exportações para a China, de fato, sobe de praticamente zero até o ano 2000, para 5% em 2003, ficando neste patamar até 2007. Ou seja, neste período em que as exportações se elevam, a única região que ganha importância relativa é o Mercosul, que havia perdido muito nos anos anteriores. Na realidade, de maneira geral, as participações das diversas regiões se mantêm mais ou menos constantes durante todo esse período. A China vai ganhar relevância somente a partir do ano de 2009. Mas, como vimos, o saldo da balança comercial está longe de ser brilhante neste período.
Pode-se argumentar que, enquanto é verdade que a China cresce de maneira relevante como parceiro comercial somente após 2009, não é menos verdade que as nossas exportações alcançaram um novo patamar após a ascensão do PT ao poder. Este novo patamar pode ser visto no gráfico abaixo, que divide a balança comercial entre exportações e importações:
De fato, as exportações crescem de algo como US$ 50 bilhões até 2002 para quase US$ 200 bilhões em 2008, atingindo US$ 250 bilhões a partir de 2011. Esse salto permitiu aumentar igualmente as importações, o que significa uma maior abertura da economia brasileira ao mundo, o que costuma ser benéfico para o aumento da renda e da produtividade. É o que chamamos de corrente de comércio, a soma das exportações e importações.
Mas vamos analisar em detalhe a corrente de comércio brasileira no gráfico a seguir:
Quando medimos a corrente de comércio em percentual do PIB, como é a norma para a comparação da abertura comercial entre países, podemos observar que a nossa corrente de comércio cresce de 13% para 21% do PIB ainda no segundo mandato de FHC, e fica oscilando entre este patamar e 24% do PIB até a Grande Crise Financeira, quando cai para baixo de 20% do PIB, oscilando entre 17% e 20% do PIB até o fim do governo PT. Não há realmente nada de excepcional aqui. O aumento da corrente de comércio em dólar reflete o aumento do PIB em dólar, tanto pela valorização do real como pelo próprio crescimento do país neste período.
Portanto, não devemos buscar na soja ou no minério de ferro a explicação do grande montante de reservas internacionais acumulados nesse período. A reservas foram constituídas porque o governo Lula se mostrou confiável durante os anos da Grande Ilusão, a ponto de atrair investimentos estrangeiros, então abundantes no mundo. Tratava-se de um governo de esquerda com políticas macroeconômicas razoáveis, fazendo uma combinação irresistível para este investidor. Realmente uma pena que tenha sido somente uma Grande Ilusão.
Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:
Há quem diga que um país pode se endividar à vontade em sua própria moeda, pois os financiadores não têm escapatória, a não ser financiar o governo. Isto valeria especialmente para o Brasil, onde não são muitas as alternativas dos investidores além dos títulos públicos. No limite, o governo resolve seu problema rodando a maquininha de imprimir aquele papel de gosto duvidoso chamado Real. Não quer meu título de dívida? Tome aqui esse papel colorido e vai com Deus!
Em países onde prevalece uma longa história de respeito pelos contratos, isso até certo ponto é verdade. EUA, Alemanha, Japão, Reino Unido formam um grupo de países que podem, até certo ponto, abusar de sua prerrogativa de endividar-se. Do lado de baixo do Equador, no entanto, isso está longe de ser verdade.
Há três dias “comemorávamos” os 31 anos do confisco dos haveres dos brasileiros pelo Plano Collor. Foi o único calote de fato da dívida interna, incluindo o papel pintado. Os outros “calotes” se deram através da inflação.
Este preâmbulo serve como pano de fundo para analisar a decisão do BC de elevar a taxa Selic pela primeira vez nos últimos 5 anos. De todos os bancos centrais do mundo que importam, somente a Turquia está elevando juros. É compreensível: estamos em meio a um desastre sanitário sem precedentes, que atingiu o emprego e a renda de uma parcela relevante da população. Pensar em inflação nesse contexto parece fora de lugar.
Não no Brasil. Aqui, o BC reagiu a uma deterioração das expectativas de inflação, que ameaça romper a banda superior da meta esse ano e ficar acima da meta no ano que vem. Em princípio, essa deterioração vem do fato de que o câmbio está muito pressionado, contaminado vários preços da economia, a começar dos combustíveis.
Mas o câmbio é apenas o sintoma, não a doença. A doença é a percepção de que o governo brasileiro, em todos os níveis e esferas, não está a fim de cortar gastos. “Gasto é vida”, já disse uma ex-presidenta de triste memória. Sua desastrosa passagem pelas nossas vidas não foi o suficiente, no entanto, para arrancar esse mantra que permanece nos corações e mentes da sociedade brasileira.
Vejamos o exemplo concreto, que foi o gatilho para a piora substantiva dos preços no mercado financeiro nas últimas semanas: a aprovação do auxílio emergencial em troca de alguns “gatilhos” de contenção de gastos. O que são esses “gatilhos”? Basicamente o congelamento do salário dos servidores públicos quando as despesas obrigatórias (e salários são despesas obrigatórias) ultrapassarem 95% das despesas totais. O mecanismo que permitiria corte de salários e jornadas de trabalho foi descartado.
Não passou despercebido o seguinte: o efeito do congelamento de salários sobre os gastos do governo (em relação às receitas) é tanto maior quanto maior for a inflação. Os salários não são reajustados e perdem o seu poder de compra. Ou seja, o ajuste das despesas do governo PRESSUPÕE QUE EXISTA INFLAÇÃO. E, quanto maior, melhor. Se não houver inflação, esses gastos diminuem apenas na medida do crescimento da economia que, como sabemos, é muito fraco.
Quer dizer, a mensagem foi a seguinte: o ajuste fiscal se dará através da inflação. E, claro, com uma mensagem dessas, os financiadores da dívida pedem um prêmio mais alto para carregá-la, de modo a se protegerem da inflação futura. O BC apenas sanciona algo que já foi percebido pelos credores da dívida.
É claro que este é um círculo vicioso: taxas de juros mais altas produzem mais despesas financeiras, que por sua vez aumentam a dívida, piorando a percepção de risco. O BC tenta fazer a sua parte, mas é como dar um anti-febril para um paciente com Covid e mandá-lo de volta para casa. O vírus continua lá, fazendo o seu trabalho no pulmão do indivíduo.
Quando assumiu a presidência da Argentina, Maurício Macri tinha um plano de reorganização das finanças públicas argentinas. Como sabemos, fez muito pouco, muito tarde. Lá, como aqui, as dificuldades políticas são enormes para se cortar despesas. Lá, como aqui, os credores sabem que a inflação é o único remédio para esse problema. Macri pagou o preço. Bolsonaro aprenderá com seu vizinho do sul?
Você consegue imaginar a inflação nos EUA em 12% e a taxa básica de juros (a Selic deles) em 20%? Pois é, isso aconteceu nos selvagens inícios dos anos 80.
Com o 2o choque do petróleo em 1979, a inflação subiu de maneira descontrolada no mundo desenvolvido. Paul Volcker era então o presidente do Federal Reserve, o equivalente ao Banco Central norte-americano, responsável por manter o poder de compra da moeda. O instrumento para isso, assim como hoje, eram as taxas de juros básicas, determinadas pelo board do Fed.
Paul Volcker não teve dúvida: para uma inflação que já estava em dois dígitos, não se deixou levar pela cantilena do “esse é um choque de oferta, não um problema de demanda em excesso”, argumento preferido dos adeptos do “um pouco mais de inflação para um pouco mais de crescimento”. Para Volcker, inflação era inflação, não tinha raça nem cor.
A política monetária de Volcker jogou os EUA em uma grande recessão, além de quebrar os países mais endividados, como México e Brasil. Mas controlou a inflação, que era o seu objetivo. E os EUA, para não variar, saíram melhores do que entraram. Tudo porque o presidente do Banco Central, que cumpriu seu mandato sob presidentes democratas e republicanos, teve a ousadia e a autonomia para cumprir o que prescrevia o livro-texto.
Quando, em 2015, Maurício Macri foi eleito, pensamos todos: que sorte a da Argentina! Livraram-se de Cristina Kirchner através de eleições, sem chorôrô. Aqui, tivemos que passar pelo complicado processo de impeachment, além de ficar ouvindo o tempo inteiro “foi golpe!”.
Mas Macri, com todo o seu discurso liberal, fez pouco no início de seu mandato, optando por uma abordagem gradualista. Anexei dois gráficos neste post: o primeiro é da inflação e o segundo das taxas de juros na Argentina nos últimos 4 anos.
No início do governo Macri, a inflação bateu 40% ao ano, devido ao ajuste dos preços públicos, represados durante o governo Kirshner. Qualquer semelhança com o represamento dos preços dos combustíveis por aqui não é mera coincidência. Depois desse pico, a inflação recuou para a faixa de 25% ao ano em 2017.
Agora observe o gráfico das taxas de juros praticadas pelo BC. Depois de um pico de 32% no início do governo Macri, voltou para 25%, nível em que ficou até meados de 2018. Ou seja, a taxa de juros real praticada foi praticamente zero.
Vamos relembrar o que foi feito pelo BC local. Quando a inflação foi para 11%, o BC, AINDA NO GOVERNO DILMA, elevou a taxa de juros até 14,25%. Ou seja, mesmo o Tombini foi mais ortodoxo do que o BC de Macri. Essa taxa de 14,25% permaneceu por um longo tempo, tendo sido baixada apenas por Ilan Goldfjan, já no final de 2016. E mesmo assim, beeem lentamente, quando a inflação já estava em queda livre. Foi esta ortodoxia que permitiu uma convergência segura da inflação, e hoje podemos usufruir de inflação e taxas de juros mais civilizadas.
Voltando para a Argentina: em 2018, com a elevação das taxas de juros nos EUA, os mercados ficaram nervosos com países que não fizeram suas lições de casa. A Argentina e a Turquia sofreram ataques especulativos contra suas moedas, e não tiveram outra alternativa a não ser elevar brutalmente suas taxas de juros. Na Argentina, a taxa foi para 60% ao ano, como pode ser observado no gráfico. Hoje, a taxa foi elevada para 74% ao ano, em resposta a mais uma desvalorização do peso. Brutal, ainda mais em um país já em profunda recessão. Vale lembrar que o Brasil não precisou subir suas taxas de juros em 2018, mesmo estando na histórica mínima de 6,5% ao ano.
Não estou aqui nem entrando no mérito das contas fiscais, outro ponto em que Macri adotou uma “postura gradualista”, e que ajudou na falta de credibilidade junto aos mercados.
Até entendo os argentinos: se é para ter recessão, moeda super-desvalorizada e inflação, melhor um presidente que pelo menos distribua bolsa-família.
Fica aqui a lição para o Brasil: não há atalhos. É preciso fazer a lição de casa ortodoxa, sempre. Países com um longo histórico de defaults e malandragens não contam com a boa vontade dos seus financiadores. Precisam estar o tempo todo provando que são comportados.