Quem poderia imaginar…

Rapaz… quem poderia imaginar que se endividar até as tampas para jogar dinheiro de helicóptero diminuiria a pobreza só por um tempo, e tudo voltaria a ser como antes por causa da inflação? Por essa ninguém esperava…

Quer dizer, tudo voltaria a ser como antes, não. A pobreza continua a mesma, mas a dívida pública, quanta diferença! (essa é para os mais seniores, que se lembram da propaganda do xampu Colorama).

E a matéria do NYT tem um tom de alarme, como se assistência do governo tivesse o condão de mudar o patamar de pobreza de maneira definitiva. Talvez se o governo continuasse se endividando eternamente para manter a assistência no mesmo nível… bem, talvez Biden pudesse dar uma olhada para certo país na América do Sul, em que programas assistenciais existem há décadas, sem conseguirem mover o ponteiro da pobreza.

Talvez um dia se convençam de que a única forma de diminuir a pobreza é com o enriquecimento (crescimento) do país. Dinheiro do governo só serve como paliativo temporário. Enquanto o governo dá com uma mão, retira com a outra, via impostos e inflação. Trata-se de um jogo soma zero, em que o cidadão perde e os políticos populistas ganham.

O limite para a má gestão sempre chega

A Economist desta semana traz uma pequena matéria sobre as agruras da Bolívia. O Banco Central do nosso vizinho começou a vender dólares diretamente para o público, porque, aparentemente, as verdinhas acabaram nas casas de câmbio. E o BC parou de publicar estatísticas sobre as reservas internacionais, sinal claro de que estão chegando ao fim. Os bonds bolivianos no mercado externo estão pagando apenas 48 centavos por dólar.

A revista lista três fatores para os bolivianos terem chegado nesse estágio:

1) Apostaram que o boom de commodities iria durar para sempre;

2) Atrelaram sua moeda ao dólar e assim ficaram e

3) Foram hostis ao capital estrangeiro, nacionalizando boa parte da infraestrutura do país.

Claro, existem os fatores de curto prazo: taxas de juros altas no mundo e a guerra na Ucrânia são dois deles. Mas estes fatores atingiram igualmente outras economias, sem os mesmos efeitos. O presidente argentino (que desistiu de disputar a reeleição), põe a culpa dos problemas da economia argentina na maior seca do século, além dos dois fatores listados acima. A questão é que toda economia, mais cedo ou mais tarde, sofre choques externos. Se a lição de casa é feita, esses choques externos podem ser absorvidos. É a diferença entre uma família que tem reserva de emergência de outra que não tem. Acidentes acontecem, o que muda é como estamos preparados para enfrentá-los.

Gostaria de chamar a atenção para o timing da coisa: Evo Moralez assumiu a presidência da Bolívia em 2006, surfou a onda das commodities até 2011 e, desde, então, a Bolívia vem em uma longa descendente. Toda crise financeira se desenvolve lentamente e, depois, de repente.

As consequências da má administração de uma economia não aparecem imediatamente. Há maneiras de ir levando com a barriga, até que, de repente, não há mais. Por isso, acho meio ridículo apontarem a bolsa ou o câmbio em determinado dia como prova de que tal e qual medida do governo foi bem ou mal recebida pelo mercado. Não é assim que a coisa funciona. Más políticas serão punidas pelo mercado, mais cedo ou mais tarde. Pode levar anos, mas as consequências sempre vêm depois, como diria o conselheiro Acácio.

No Brasil, já tínhamos caído no precipício (ia dizer que estávamos à beira, mas 8% de queda de PIB em dois anos é um precipício), quando nosso sistema político arrumou um jeito de colocar o país nos trilhos novamente. Hoje, temos um novo governo de esquerda e, como diz a Economist, as dificuldades da Bolívia devem servir como um aviso para a América Latina. Nossa situação é muito mais confortável do que a da Bolívia, tanto em termos de reservas internacionais quanto em termos de política cambial, mas nada é tão bom que sempre dure. Políticas ruins nos levarão novamente para o buraco, mesmo que demore anos. Então, só nos restará o Centrão para nos colocar novamente nos trilhos.

A vantagem de estar morto

Hoje, mais uma reportagem sobre as péssimas condições de vida na Venezuela.

No entanto, ontem, uma pequena nota nos trouxe a informação de que Chávez ainda tem 56% de aprovação pelo povo venezuelano, muito mais do que qualquer outro líder atual. Como se explica? Fácil: Chávez está morto.

Poucos se lembram, mas no último dia 5 de março completaram-se 10 anos da morte do comandante. Chávez saiu prematuramente do mundo da luta política para o plano dos mitos. Sua morte foi anterior à debacle dos preços do petróleo, que acabou com a fonte do bem-estar para todos os venezuelanos. Sobrou uma carcaça oca de economia, que os abutres do regime disputam sofregamente.

Na mesma pesquisa, Maduro aparece com apenas 22% de aprovação. Poderíamos questionar como Maduro consegue se reeleger com tão reduzida taxa de aprovação. A resposta, além da conhecida falta de lisura nas eleições, pode ser encontrada em uma pesquisa de um ano atrás, feita pelo mesmo instituto. Naquela pesquisa, Maduro também aparecia com uma avaliação péssima, mas não significativamente pior do que a de outros políticos venezuelanos de oposição. Ou seja, a situação é tão ruim, que basta estar vivo para ser mal avaliado. Chávez leva uma grande vantagem sobre seus concorrentes: está morto.

A cerca de 3 meses de sua morte, já em estado terminal, o ditador venezuelano disse: “Chávez não é um ser humano somente. Chávez é um grande coletivo. Chávez é o coração do povo, e o povo está no coração de Chávez”. Quem não se lembra das palavras de Lula em seu discurso no dia de sua prisão, em São Bernardo, também em terceira pessoa? “Eu não sou mais um ser humano. Eu sou uma ideia, misturada com as ideias de vocês”. Lula proferiu essas palavras às vésperas de sua morte política.

A vantagem de Chávez, como dissemos, é estar morto. Lula, por outro lado, ressuscitou, como afirmou a um mesmerizado Reinaldo Azevedo. Portanto, voltou ao mundo dos vivos, e isso faz toda a diferença. Chávez, assim como Lula, navegou o grande ciclo das commodities da primeira década do século, e morreu antes de ver o seu castelo de cartas ruir. Lula saiu da presidência como uma quase unanimidade. Se tivesse acompanhado seu companheiro venezuelano em sua viagem ao além, teríamos hoje um mito lulista imbatível. Mas Lula voltou do mundo dos mortos, e terá que lidar com a realidade dos recursos escassos e da falta de margem de manobra. Aquela mesma realidade que faz com que todos os políticos sejam mal avaliados. Nesse mundo, é bem mais difícil a construção de mitos. A longevidade de Lula, afinal, talvez seja uma benção para o país.

As consequências virão depois

Estive em Buenos Aires pela última vez em janeiro de 2014. Lembro que, na época, estava em discussão recolocar as catracas nas estações de trem metropolitano. Quer dizer, as catracas existiam, mas estavam deterioradas por falta de uso. Afinal, há muitos anos os trens em Buenos Aires eram de graça. Obviamente, a discussão sobre a volta da cobrança estava caliente.

Para ir a Tigres, precisávamos tomar um trem até uma determinada estação, de onde tomaríamos outro trem, turístico, até a cidade. O primeiro trem era “gratuito”, enquanto o segundo era pago.

Sem exagero: a viagem no primeiro trem foi aterrorizante. Totalmente deteriorado, não sei como aquilo tinha autorização para rodar. Fora que demorou uma eternidade para chegar.

Já tive oportunidade de escrever sobre a experiência do teleférico do Alemão, também “gratuito” e totalmente sucateado, a ponto de interromper o serviço.

A “gratuidade” dos serviços públicos parece algo simples: o governo arrecada impostos e financia os investimentos necessários e a manutenção do serviço. Por que, então, invariavelmente, a coisa não funciona?

Vamos separar o problema em duas partes: a primeira é o financiamento, a segunda é a gestão.

O financiamento do serviço público é um problema de funding sustentável ao longo do tempo. O exemplo do teleférico do Alemão é clássico: o financiamento inicial foi suficiente para construir e manter o serviço durante um certo tempo. Mas outras prioridades foram comendo as verbas, ao mesmo tempo em que as receitas minguaram. Resultado: faltou dinheiro para manter o serviço. Aposto que este foi também o problema com os trens “gratuitos” de Buenos Aires.

O segundo problema tem mais a ver com serviços assumidos integralmente pelo Estado. É o caso da saúde (SUS) e educação públicas. À falta crônica de verbas, junta-se a incompetência administrativa e/ou os interesses corporativos dos funcionários públicos. Não seria, em princípio, o caso do transporte público, que continuaria sendo administrado pelas empresas privadas, a não ser que se crie uma grande estatal de transportes públicos. Não quero nem pensar nessa possibilidade.

Enfim, se a tarifa zero vingar, será uma medida recebida com banda e fanfarra. As consequências, como diria o conselheiro Acácio, virão depois.

Enganação populista

Essa dicotomia “disciplina fiscal” vs. “justiça social” é falsa.

Vou usar aqui números aproximados, mas não tem problema, foque apenas no conceito. Temos hoje, grosso modo, um orçamento federal de R$ 1,6 trilhões. Ou seja, o governo gasta R$ 1,6 trilhões por ano para manter a máquina e todos os seus investimentos e programas sociais.

Toda a discussão se dá porque dizem que esse montante não é suficiente para resgatar a nossa “dívida social”, como enfatizou o nosso futuro presidente em seu discurso.

Digamos então, por hipótese, que fosse necessário gastar R$ 400 bilhões a mais por ano, ad aeternum, para resgatar a dívida social. Isto significaria um aumento de aproximadamente 5% do PIB em nossa já alta carga tributária. Mas ok, tudo pelo social!

O que aconteceria? Isso mesmo que você pensou: esse dinheiro adicional seria gasto sem que nada mudasse de maneira substancial. Os pobres continuariam pobres, a saúde continuaria essa lástima que conhecemos, a educação com as prioridades erradas etc. E, dentro de alguns (poucos) anos, mais dinheiro seria solicitado para “resgatar a nossa dívida social”.

A grande questão é que somos um país pobre (baixa renda per capita), e, enquanto continuarmos a ser um país pobre, as mazelas sociais continuarão aí, intactas. Não será aumentando a carga tributária, ou aumentando o endividamento do governo que nos tornaremos um país rico. Só enriqueceremos e, assim, mitigaremos os nossos problemas sociais, quando conseguirmos produzir mais com menos recursos. O resto é enganação populista.

O pop-lulismo

Eugênio Bucci, em seu artigo de hoje, celebra as “adesões espontâneas” à candidatura Lula. ”Dancinhas no Tik Tok” e “charges no WhatsApp” estariam surgindo espontaneamente, em um movimento mais cultural do que político. Seria o “pop lulismo”, um movimento pop que transcende a esfera política.

Pelo visto, o petismo que come de garfo e faca “descobriu” a potência das redes sociais, e está encantado. Exatamente o mesmo fenômeno ocorreu em 2018 em torno de Bolsonaro. No entanto, na época, a campanha do atual presidente foi acusada de manipular as redes sociais com robôs e de ter uma central de produção de conteúdo. Quem não se lembra da “denúncia” de financiamento de disparos de WhatsApp por parte de “empresários” às vésperas da eleição? Hoje não, hoje é tudo ”espontâneo”. É o “pop lulismo”. Lula seria “pop” e, portanto, as adesões à sua candidatura seguiriam a lógica da adesão a grandes ídolos.

Bucci não está errado. De fato, uma parte relevante de nossa decisão de voto tem mais a ver com emoção do que com a razão, e líderes populares atraem votos. Mas o professor da ECA-USP trai o seu babaovismo ao negar a Bolsonaro o mesmo caráter. Lula seria o único “líder pop” do Brasil, e a sua eleição seria uma espécie de reconhecimento a esse caráter quase divino do ex-presidiário.

O articulista termina com uma nota de rodapé, comentando o jogo de palavras entre “pop lulismo” e “populismo”. Afirma que essa identificação não é acidental, mas ressalva que há dois tipos de populismo: o do mal, encarnado por Bolsonaro, e o do bem, encarnado por Lula. Daí a defender uma “ditadura do bem” é um pulinho. É dessa cepa que é feita a intelectualidade petista.

O passado mítico

Entrevista hoje com o analista político argentino Carlos Pagni. Sua leitura do papel do peronismo na debacle argentina é bem interessante. A ideia é simples: Peron usou de uma vantagem competitiva da Argentina no pós guerra para inundar o país de políticas populistas, mas teve a “sorte” de ser deposto e não pegar as consequências nefastas de um modelo não sustentável. Ficou, assim, na memória do povo, o mito de “melhor presidente da história da Argentina” e, desde então, os argentinos procuram voltar àquele passado mítico.

Getúlio Vargas não teve a mesma “sorte”, e seu governo, apesar de ser reconhecido como “defensor dos trabalhadores”, não se notabilizou por uma especial bonança econômica. Nesse sentido, o nosso Peron é Lula.

Entre 2003 e 2010, Lula foi bafejado pela sorte, com a China crescendo dois dígitos todo ano e provocando a valorização dos preços das commodities. A sensação de riqueza fez o governo Lula entrar em um frenesi de populismo que cobrou o seu preço alguns anos depois. No entanto, Lula, a exemplo de Peron, teve “sorte” ao sair do poder antes da debacle, que caiu no colo da sua sucessora. Ficou, então, o mito de um passado glorioso. É este mito que dá a Lula o seu capital de votos.

Olhando para os nossos vizinhos, espero, sinceramente, que não sejamos vítimas de um peronismo tropical, que fará o país estagnar por décadas.

Não contem comigo

A vantagem (ou desvantagem) de ser mais experiente (velho não!) é lembrar-se das coisas mais antigas. No final de 2012, o então governo Dilma fez uma mandracaria regulatória (a MP 579) misturada com redução de encargos, que conseguiu baixar o preço da energia elétrica em 20% em 2013. Faço a análise dessa MP no episódio 6 da série A Economia Brasileira na Era PT. Pois bem. Os petistas, a exemplo dos bolsonaristas de hoje, não se cansavam de repetir que o governo do PT havia conseguido reduzir as tarifas, e quem criticava estava só exercitando o seu direito ao choro.

Nada como a perspectiva do tempo. Aquela MP se mostrou um desastre de proporções bíblicas, desarrumando o setor elétrico e cavando um buraco orçamentário que estamos pagando até hoje. E as tarifas de energia elétrica voltaram a subir com força nos anos seguintes.

Fast forward para 2022. Bolsonaristas comemoram a queda dos preços dos combustíveis no melhor estilo petista de 2013. Seria como que a prova definitiva de que, graças a Bolsonaro, a vida do povo está melhorando, e todo e qualquer “mas” não seria mais do que mimimi ou choro de perdedor. O problema, como sempre, é o teste do tempo.

A queda do preço dos combustíveis se deu pelo corte de impostos arrecadados pelos estados. Alguém aí viu algum estado anunciando um ajuste fiscal através do corte de despesas? Não, você não perdeu nenhum anúncio. É que não aconteceu. As despesas continuam exatamente do mesmo tamanho. Não é muito difícil antecipar o que vai acontecer nos próximos anos: depois de acabar a gordura da arrecadação por conta da inflação, os estados vão começar a quebrar um atrás do outro. E adivinha quem vai ter que socorrer? Você, que está economizando algum dinheiro com o combustível mais barato agora, sugiro que guarde o montante economizado para pagar a conta do aumento de impostos e/ou aumento dos juros e/ou aumento da inflação no futuro para pagar a conta.

Alguns petistas, quando escrevi a série sobre a economia brasileira na era PT, se disseram, com uma ponta de ironia, ansiosos para ver outra série sobre o governo Bolsonaro. Expliquei que, em economia, é preciso ter a perspectiva do tempo. Decisões que parecem boas hoje só mostram todo o seu potencial destrutivo ao longo do tempo. Portanto, seria preciso aguardar alguns anos após o fim do governo Bolsonaro para julgar a sua obra.

Nesse sentido, ainda é muito cedo para dizer que o governo Bolsonaro é superior ao governo PT em termos de política econômica. Na verdade, os primeiros 4 anos do governo Lula foram exemplares nesse aspecto. Se alguém escrevesse uma análise da economia brasileira no final do primeiro governo Lula, a balança seria francamente positiva. Claro que o ambiente externo havia ajudado, ao contrário desses 4 primeiros anos do governo Bolsonaro, mas Lula se ajudou também: aprovou uma reforma da previdência dos funcionários públicos, manteve a estrita disciplina fiscal, respeitou a autonomia do BC, aprovou algumas reformas microeconômicas. Nada faria supor o que viria nos anos seguintes.

Quer dizer, nada não. No segundo episódio da minha série de artigos, chamo a atenção para os sinais que já se faziam presentes ainda no 1o mandato de Lula sobre o desastre que estava por vir. Claro, tenho o benefício do hindsight, de já saber o final da história. Na época, pouca gente, inclusive eu, deu a devida importância a esses sinais.

Tendo a experiência como guia, os sinais emitidos pelo governo Bolsonaro são preocupantes. O populismo fiscal virou a norma. Pode não haver o viés ideológico que orientou os passos dos governos PT na economia, mas o efeito final sobre as contas públicas é o mesmo. Nesse sentido, os quatro primeiros anos do governo Lula foram claramente superiores aos quatro primeiros anos do governo Bolsonaro. Claro, sempre se pode dizer que, se Lula tivesse o mesmo azar de Bolsonaro, teria feito a mesma coisa ou ainda pior. Pode até ser verdade, não temos o contrafactual. Mas o ponto é que, se nenhum governante seria capaz de fazer algo diferente do que Bolsonaro fez, dadas as suas condições concretas, então, na prática, tanto faz quem vai ser colocado lá na cadeira do presidente. Essa espécie de “fatalismo econômico”, traduzido na frase “não tinha como fazer algo diferente”, é o aval para o voto nulo, dado que tanto faz mesmo.

Enfim, não contem comigo na comemoração de medidas econômicas populistas.

E la nave do populismo va

Anteontem, foi aprovado no Senado um pacote de bondades no valor de R$ 41 bilhões. Como não há espaço no teto de gastos, foi aprovado, em conjunto, a decretação de um “estado de emergência”, o que permite gastos acima do teto. A PEC (sim, foi necessário emendar a constituição para aprovar essa despesa, dado que o teto de gastos está inscrito na constituição) foi aprovada, no primeiro turno, por incríveis 72 votos a 1 e, na segunda votação, por 67 votos a 1. Além disso, sua tramitação levou poucos dias, um verdadeiro recorde para uma PEC, que, normalmente, tem seu tempo de tramitação medida em meses, quando não em anos.

Este episódio é um suco concentrado de Brasil, e nos permite observar a realidade política e econômica brasileira de diversos ângulos. Vejamos.

1) A lenda de que Bolsonaro não realizou tudo o que queria porque é refém do Legislativo (desculpa normalmente usada para poupar o presidente da crítica de não ter avançado com reformas estruturais) cai por terra. No presidencialismo, quando o presidente quer, mas quer de verdade, a coisa acontece. Um pacote de bondades com o objetivo de ajudá-lo nas eleições foi aprovado por uma quase unanimidade na velocidade da luz. Se isso não é poder político, não sei mais o que é.

2) Dois terços dos senadores não enfrentarão eleições neste ano. Portanto, a desculpa de que estão tentando surfar em medidas populistas para ganhar votos não se aplica. A grande maioria votou por convicção mesmo. O que não deixa de ser assustador.

3) A definição de “emergência” passou a ser mais elástica. Em 2020, a pandemia, que paralisou a economia global por vários meses, foi considerada uma emergência. Ok, fazia todo sentido. Em 2021, os efeitos da pandemia ainda se faziam sentir, mas a vacinação avançava e a economia já vinha em franca reabertura. Isso não impediu que a lei orçamentária fosse aprovada prevendo uma claraboia no teto de gastos, para despesas “emergenciais” com a pandemia, o que incluía basicamente qualquer coisa. E agora, a “emergência” é o aumento dos preços dos combustíveis. Três anos seguidos de emergência, o governo já pode pedir música no Fantástico. É o jeitinho institucionalizado.

4) A banalização do conceito de emergência era tudo o que o PT queria. Fica demonstrado que esse teto de gastos é para inglês ver. Gastar acima do teto passou a ser a norma, não a exceção, o que esfrega a desmoralização da âncora fiscal na cara da nação. Não à toa, em seu programa de governo, o PT afirma que o teto de gastos está desmoralizado. E não à toa, votou em peso por mais essa pá de cal no esquema de controle das contas públicas. Somente José Serra (o único senador que votou contra) terá moral para apontar o dedo e acusar um governo do PT de ser fiscalmente irresponsável.

5) Se esse pacote de bondades era realmente imprescindível, não seria difícil encontrar espaço no orçamento para gastos de R$ 41 bilhões. Trata-se de uma situação completamente diferente da de 2020, quando foram gastos R$700 bilhões em uma verdadeira emergência. No entanto, quem disse que tem espaço em um orçamento de R$ 1,6 trilhões para acomodar mais R$ 41 bi de gastos? Cada milímetro do orçamento é defendido com unhas e dentes por interesses dos mais variados. E essa é a lição deixada por mais essa exceção na regra: todo mundo quer patrocinar bondades, desde que não signifique mexer no meu queijo.

6) Tem quem defenda que há espaço para gastar mais porque o governo tem tido sucesso na gestão fiscal, produzindo superávits primários e obtendo receitas extraordinárias, como os dividendos da Petrobras e a venda da Eletrobras. Essa é uma visão míope da realidade. Grande parte do superávit foi obtido através de receitas inflacionárias, que não foram gastas com o funcionalismo, que tem o seu salário congelado há algum tempo. É óbvio – não, é muito óbvio – que esse esquema não se sustenta no tempo. A inflação vai cair em algum momento e, mais cedo ou mais tarde, a inflação passada terá que ser incorporada ao salário dos servidores. Esse superávit primário tem muita semelhança com os programas alardeados pelo PT: conquistas grandiosas que não têm como se sustentar no tempo. Além disso, nós precisamos fazer superávit primário para diminuir a dívida pública. Se, a cada vez que fizermos superávit, inventarmos uma emergência para gastar, a nossa dívida nunca irá diminuir e o nosso gasto com juros só vai aumentar.

7) E por falar em gastos com juros, o mercado vem respondendo com mau humor a essas “flexibilizações” do teto. A taxa de juros tende a ser mais alta, pois a inflação tende a ser mais alta no futuro. Quem acredita que o governo brasileiro vai deixar de gastar como se não houvesse amanhã, permitindo que o BC traga a inflação para a meta de 3% nos próximos 10 anos, o Tesouro Direto tem uma oportunidade imperdível: título prefixado com vencimento em 2033 e pagando 13% ao ano. Ou seja, um título do governo pagando 10% ao ano acima da inflação oficial! Um negócio da China! Alguém pode desconfiar da esmola, e com razão. Afinal, por que um título do governo está pagando uma taxa de juros tão alta? Simples: porque os investidores estão desconfiados de que a inflação pode ser bem mais alta nos próximos anos, dado o comportamento fiscal do governo. Coisas como esse “pacote emergencial” por fora do teto só fazem aumentar essa desconfiança. Resultado: o custo da dívida aumenta. Se nada for feito, chegará uma hora em que nenhuma taxa satisfará os investidores. Aí, só com inflação descontrolada para rolar a dívida.

8) Os bolsonaristas que entendem tudo o que vai acima, mas ainda assim apoiam a medida, o fazem porque seria a única forma de enfrentar o PT na eleição, um partido que também não mede meios para atingir seus objetivos. Vale “fazer o diabo”, como bem disse a ex-presidenta. Seria como que uma licença para gastar em anos eleitorais, deixando a austeridade para anos não eleitorais. Pode ser. Viveríamos de criar bondades que valem somente para anos eleitorais, sendo retiradas nos outros anos, dado que não existe espaço no orçamento. Resta saber se o mercado e os eleitores se deixariam enganar por esse tipo de “bondade não permanente”.

A PEC ainda vai ser votada na Câmara, mas deverá passar por ampla maioria. E la nave do populismo va.

O estadista e o populista

Entre 1984 e 1985, Margaret Thatcher enfrentou e venceu uma greve de um ano dos trabalhadores das minas de carvão. Na época, as minas eram estatais, e o governo Thatcher anunciou uma reestruturação, com o fechamento de algumas minas, o que detonou a greve. Vale notar que o mesmo sindicato, 10 anos antes, havia derrubado o último governo conservador britânico, liderado por Edward Heath. Thatcher foi firme apesar de todas as consequências da greve, que terminou sem uma única concessão do governo.

O Brasil é um país onde este tipo de evento é inimaginável. Somos o país da contemporização. Em linguagem comum, do “jeitinho”. Nossa independência foi sem sangue, nossos golpes foram de gabinete, nossa guerras civis foram brincadeiras de crianças quando comparadas com as guerras fratricidas de outros países. Na guerra de secessão nos EUA, por exemplo, morreram 600 mil pessoas, o que equivaleria, em população de hoje, a nada menos do que 5 milhões. Foi o preço que Abraham Lincoln topou pagar para manter o país unido.

Thatcher e Lincoln eram estadistas. Enxergavam o efeito de suas ações além do seus mandatos. Atuavam pelo princípio, não pela conveniência imediata. O oposto de estadista é o populista. O populista está de olho no efeito imediato de suas ações. Mede os seus atos pela simpatia que levantam entre os seus. Sob a capa do “bom senso”, não medem as consequências do que fazem em termos de anos ou décadas, mas em termos de dias e semanas. O país, na mão de populistas, piora e nem sabemos exatamente porque, dadas todas as “coisas boas” que os populistas fazem.

Essa reflexão vem a respeito dos ataques à governança da Petrobras. Nossos liberais suspiram quando ouvem o nome de Thatcher, mas acham natural que um dos pilares do capitalismo, o respeito aos acionistas de uma empresa, seja atacado por conveniência eleitoral. A diferença entre o estadista e o populista não poderia ser mais clara neste caso. O estadista sacrificaria o curto prazo pelo princípio. Já o populista sacrifica o principio pelos supostos ganhos de curto prazo.

A mensagem desse ataque à Petrobras é muito clara: mesmo em um governo dito “liberal”, a governança de uma empresa tem pouco valor. Não se poderá, portanto, criticar um governo de esquerda que adote a mesma agenda. Este é o efeito deletério dessa ação, justificar o mesmo modus operandi daqui para frente. Aliás, nesse aspecto, mais respeitável é um governo de esquerda, pois intervirá na Petrobras de acordo com a sua visão de mundo, de acordo com aquilo que avalia ser melhor no longo prazo. Pode estar errado, mas, pelo menos, é coerente.

E o pior de tudo é que, mesmo atacando a governança da empresa, o governo Bolsonaro está longe de ter o efeito eleitoral desejado. É mais provável que colha aquilo que Churchill, outro grande estadista, vaticinou sobre Chamberlain: entre a desonra e a guerra, escolheu a desonra, e terá a guerra. Parafraseando, entre atacar os minoritários e perder a eleição, escolheu atacar os minoritários, e perderá a eleição.