A desqualificação do outro

Eliane Catanhêde e Renata Cafardo escrevem hoje colunas reveladoras de uma certa forma de ver o mundo. Não pelo assunto em si, mas pela forma a que se referem aos que delas discordam.

Catanhêde, ao condenar uma suposta subversão de valores por parte de Bolsonaro, que se coloca como defensor da democracia, refere-se aos bolsonaristas como “robôs de carne e osso” e de repetir coisas “sem pensar”.

Cafardo, ao analisar o projeto de homeschooling, refere-se aos seus defensores como “um grupinho de doidos”.

Coincidentemente, um excelente artigo, publicado hoje no mesmo jornal, encontra no regime de Putin várias características do que poderíamos definir como fascismo. Dentre elas, a primeira é identificar um inimigo com características sub-humanas, contra o qual todas as armas podem ser usadas.

Ainda no mesmo jornal, encontramos uma entrevista com a autora de um romance ambientado na Polônia da 2a Guerra. Ao ser questionada sobre a possibilidade do ressurgimento de um regime nazista, a entrevistada responde que o regime nazista foi único, ao defender que algumas pessoas eram sub humanas.

Em um episódio de Black Mirror, soldados são destacados para matar mutantes que estariam supostamente arruinando colheitas.

O que se descobre depois (spoiler!) é que se trata de seres humanos, que são vistos como mutantes pelos soldados por causa de um dispositivo cerebral que estes usam. Não por acaso, esses mutantes são chamados de “baratas”.

A desqualificação do diferente, de quem não pensa como nós, é o primeiro passo de um longo caminho que leva ao arbítrio. Porque se o outro não pode ser considerado um ser humano, tudo o que se fizer com ele estará justificado.

Ao dizer que o outro “não pensa” ou que é “doido” (o que vem a ser o mesmo), Catanhêde e Cafardo rebaixam o “outro lado” à categoria de sub-humanos. Portanto, não se pode permitir que “essa gente” tenha voz.

Não se pense, no entanto, que se trata de uma característica exclusiva de anti-bolsonaristas. Anti-petistas desqualificam igualmente “o outro lado”. “Esquerdopatas”, “gado”, “ladrões” são alguns termos usados para qualificar quem pensa que Lula é menos pior que Bolsonaro. São as pessoas “de bem” contra as “baratas”.

Há algum tempo, escrevi um artigo intitulado “Escolha política não define caráter”. Em resumo, defendo a ideia de que a opção política, dentro dos parâmetros democráticos, não deveria ser usada como guia moral para classificar as pessoas, pois cada um vê o mundo de um ponto de vista diferente. Somos todos seres humanos buscando o bem, apenas escolhemos caminhos diferentes.

Bolsonaro e o desastre educacional brasileiro

A articulista Renata Cafardo escreve uma coluna sobre educação no Estadão. Seu esporte preferido, como aliás o de todos os militantes da área, tem sido atacar o governo Bolsonaro.

A questão óbvia, e que fica mais óbvia quanto mais esse pessoal escreve sobre as mazelas da educação, é como chegamos a este ponto depois de décadas de políticas implementadas por governos que supostamente têm preocupação social. Bolsonaro está há menos de um ano no poder, e gostemos dele ou não, o fato é que a tragédia educacional brasileira não foi construída por este governo.

Vejamos o exemplo deste artigo. Renata desfila uma série de estatísticas horrorosas, mostrando a desigualdade social que a educação supostamente deveria diminuir. Mas, e essa é a conclusão universal, o governo Bolsonaro está trabalhando na direção oposta, de aumentar a desigualdade. Como se estas estatísticas horrorosas não tivessem sido produzidas pelos governos anteriores.

O exemplo mais recente: o governo agora inventou de unir os orçamentos de saúde e educação em um só, o que supostamente faria aumentar as verbas de saúde e diminuiria as verbas de educação. Sem entrar no mérito de que esta decisão entre saúde e educação deveria sim ser discricionária dos governos e não uma previsão constitucional, o exemplo usado por Renata carece de lógica.

Segundo a articulista, foi a destinação constitucional de verbas para a educação que permitiu o surgimento de certas ilhas de excelência educacional no Nordeste. Ela se refere a Sobral, no Ceará, exemplo nacional de como se pode fazer muito com pouco. Fica o mistério de porque o dinheiro carimbado para a educação conseguiu produzir somente uma ilha de excelência no país inteiro. Será que foram realmente os 25% constitucionais que fizeram a diferença? Se sim, por que não há outras ilhas de excelência? Aliás, por que a educação no Brasil não se transformou em uma grande Sobral e continua essa josta? Afinal, 25% do orçamento todo mundo tem.

Agora que o governo Bolsonaro propõe juntar os dois dinheiros carimbados em um só, passa a ser o grande vilão, aquele que vai acabar com a educação brasileira. Olha, vai ter que trabalhar muito para superar a obra de seus antecessores.

A bolha nossa de cada dia

A colunista do Estadão canta em prosa e verso as vantagens de uma escola da periferia. De Nova York e por apenas um ano, que fique claro.

Quando se tratou da coisa pra valer, o ensino de seu filho aqui no Brasil durante vários anos, às favas a “diversidade” e a “experiência fora da bolha”. O filho da jornalista foi matriculado em uma boa escola classe média alta.

Não consigo pensar em exemplo mais acabado de esquerda caviar, aquela que canta as vantagens de um “outro mundo possível” enquanto não abre mão de todas as vantagens que o capitalismo mais selvagem lhe oferece.

A jornalista chega a criticar os pais nova-iorquinos que se mudam para tentar matricular seus filhos em escolas mais “brancas”, abrindo mão das supostas vantagens da diversidade sociocultural. Diversidade esta que certamente não existe na escola particular de seu filho no Brasil.

Não consigo deixar de comparar essa situação com as excursões organizadas por agências de turismo nas favelas do Rio. Os turistas visitam as favelas como se estivessem visitando um zoológico, para ver de perto aqueles bichos, como vivem, do que se alimentam. Os turistas têm, assim, uma experiência do que seja a “pobreza”.

A experiência do filho da jornalista foi como uma visita ao zoológico. Depois de ter a experiência de conviver com os bichos durante um ano, a vida real é uma boa escola particular branca. Dá asco.