O comentarista esportivo Robson Morelli pergunta se “é justo” o Palmeiras ter sido eliminado da Copa do Brasil por um erro de arbitragem. No caso, por um erro dos árbitros do VAR.
Quem me lê há algum tempo sabe que sempre fui contra o uso do VAR. Eventualmente, um sensor na bola para indicar se ultrapassou a linha do gol poderia se justificar, e olhe lá. Meu racional é o seguinte: o VAR, além de tornar os bandeirinhas mais inúteis que cobradores de ônibus, traz uma falsa sensação de “justiça” que, de resto, nunca vai existir em um jogo jogado por seres humanos. O VAR veio para acabar com as polêmicas do futebol, e o que temos são polêmicas de outra ordem.
Alguns defendem que o VAR, pelo menos, elimina os erros mais “grosseiros”, aquelas injustiças graves e que passaram despercebidos pelo árbitro de campo. Ok, pode ser. Mas não é isso o que vemos. A unha mal feita do dedão do pé, captado pelas linhas de “paralaxe”, já é o suficiente para anular um gol que, aos olhos falhos de qualquer ser humano, seria perfeitamente legítimo. E, além disso, descobrimos, horrorizados, que o juiz do VAR também é um ser humano e, portanto, erra na sua interpretação.
Robson Morelli sugere “desligar os aparelhos”, no que concordo em gênero, número e grau. São inúteis. Só não concordo com sua conclusão. Sim, foi justa a eliminação do Palmeiras, em uma justiça que somente os boleiros entendem. O verdão teve 90 minutos para fazer o placar necessário, e depois teve os pênaltis para tentar consertar o que não fez no tempo regulamentar. Reduzir tudo a um só lance e afirmar que a eliminação foi toda “culpa do VAR”, é reduzir todo um jogo a um único lance. Isso sim, não é justo.
A esquerda está em uma enorme enrascada do ponto de vista de simbolismos. O vermelho, que desde sempre representou o PT e outras siglas de esquerda, tornou-se um fardo difícil de carregar.
Em reportagem de ontem, o novo marqueteiro do PT sugere “desarvermelhar a sigla”.
Já tentaram isso na eleição passada. É tão crível quanto a Manuela D’Ávila comungando. Ainda mais depois de Alckmin ser flagrado cantarolando a Internacional Socialista. O vermelho está na alma.
Mas o buraco encontra-se mais embaixo, como diz o outro. O PT conviveu com o vermelho sem problemas até poucos anos atrás. As grandes manifestações pelo impeachment mudaram a equação. Mas, antes de continuarmos, voltemos um pouco no tempo.
As manifestações pelo impeachment de Collor também envolveram cores. No seu pior momento, o então presidente conclamou seus apoiadores a vestirem verde e amarelo nas ruas. Os caras-pintadas, por outro lado, se vestiram de preto para marcar o seu protesto. O preto prevaleceu, mostrando que o presidente não contava com o apoio das ruas. Collor tentou se apropriar das cores nacionais e não conseguiu. Mas foi o preto que venceu, não o vermelho.
Voltemos para 2015. As ruas foram tomadas por manifestantes vestindo amarelo. Essa era a cor predominante, ainda que não tivesse havido uma coordenação central, nem o pedido explícito de algum político, como havia sido o caso de Collor. O amarelo pegou como a cor das manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff.
Essa escolha incomodou e incomoda até hoje. Em 2018, a Paraíso da Tuiuti desfilou na Sapucaí um enredo sobre o “golpe”, vestindo uma ala com as “indefectíveis” camisas amarelas da seleção, os passistas sendo “manipulados” como se fossem marionetes.
A palavra “indefectíveis”, aqui, não está à toa. Essa exata palavra foi usada pela repórter na matéria que comentei mais cedo, para se referir às cores usadas pelos manifestantes na Paulista.
“Indefectível”, no caso, serve como termo pejorativo, indicando algo que se espera que aconteça, vindo de quem vem. Quase que uma vergonha alheia.
O incômodo cresceu quando as manifestações de apoio a Bolsonaro também passaram a ter a cor amarela como predominante. Parece uma continuidade das manifestações pró-impeachment, mas é apenas um subconjunto daquelas manifestações, que usa o amarelo como símbolo patriótico. No impeachment, o amarelo era usado como um contraste ao vermelho do PT. No apoio a Bolsonaro, como uma reafirmação patriótica. As duas coisas têm regiões de intersecção, mas não são exatamente a mesma coisa. Tanto é assim, que uma parcela relevante dos que apoiaram o impeachment vestidos de amarelo se recusam, hoje, a vestir as mesmas cores para apoiar Bolsonaro.
De qualquer forma, esse, digamos, novo uso das cores nacionais, exacerbou a reação da esquerda. Tivemos, por exemplo, a defesa da tese de que a seleção deveria mudar a cor da sua camisa para branco. Foi em um texto no blog do Juca Kfouri, em maio de 2020.
Caiu no vazio, obviamente. Mais recentemente, no entanto, temos visto manifestações no sentido contrário: não podemos deixar as cores nacionais serem sequestradas por um político. E que político!
A ideia desse texto nasceu de uma coluna de hoje de Robson Morelli, comentarista esportivo, que defende que o “verde-amarelo é de todos os brasileiros”.
Vai na mesma linha da manifestação de Anitta, que outro dia afirmou que ”as cores da bandeira pertencem a todos os brasileiros”, ela mesma vestindo verde e amarelo.
A quem escrevem Robson Morelli e Anitta? Óbvio: para a esquerda, que se sente constrangida em vestir as cores usadas por “golpistas” e “fascistas”. Mas essa não é a primeira vez que cores universais são, de certa forma, capturadas por certos grupos. O arco-íris, por exemplo, foi capturado pela militância LGBT. Hoje, ninguém pode usar roupas com arco-íris sem ser identificado como apoiador da causa. As manifestações de Morelli e Anitta são sinal de que o mesmo começa a acontecer com as cores da bandeira.
Existe algo que pode ser feito pela esquerda? Acho que não. Dizer que posso usar a camisa da seleção ou roupas verde-amarelo sem que isso signifique apoio a Bolsonaro é uma confissão de que a batalha já está perdida. A carga simbólica já está lá e, vamos ser sinceros, com a ajuda prestimosa da própria esquerda, que não se cansou de tratar com desdém os “patriotas com camisa da seleção”. O feitiço virou contra o feiticeiro, e agora tentam correr atrás do prejuízo.