Enquete não é pesquisa

Reza a lenda que Rodrigo Constantino é economista. Como todo economista aprende na faculdade, existe um negócio chamado “amostragem”, em que se procura aferir as características de uma população a partir de uma amostra dessa mesma população, de modo a reproduzir as características da população como um todo.

Em pesquisas eleitorais, procura-se reproduzir na amostra as características de gênero, idade, região, renda, escolaridade, etc da população como um todo. Dessa forma, tenta-se aproximar o melhor possível as características da população como um todo. Óbvio que a amostragem sempre será imperfeita, por isso temos a chamada “margem de erro”.

Pode-se questionar o método de amostragem ou mesmo a boa fé desse ou daquele instituto de pesquisa. Mas Constantino inovou, ao declarar que enquete é muito melhor do que pesquisa por amostragem para aferir a preferência do eleitorado.

Vou procurar dar um exemplo do absurdo da ideia. Imagine que você tem dois sacos com 100 bolas cada uma. Um dos sacos só tem bolas vermelhas e o outro só tem bolas brancas, mas você não sabe disso de antemão. A única coisa que você sabe é que as bolas não foram distribuídas aleatoriamente entre os sacos. Ou seja, pode haver proporções diferentes de bolas vermelhas e brancas a depender do saco. A sua missão é tentar descobrir a proporção de bolas vermelhas e brancas que existem na soma dos dois sacos.

O método científico indica que você deveria tirar um número igual de bolas de cada um dos dois sacos, pois os dois sacos têm o mesmo número de bolas (100). A estatística mostra que, após um número relativamente reduzido de bolas retiradas de cada saco, é possível saber com razoável precisão qual a proporção de bolas vermelhas e brancas nos dois sacos.

Constantino teve uma ideia diferente. Ele propõe tirar todas as bolas de um saco só. A ideia é de que, como serão muitas bolas retiradas, o resultado será muito mais confiável. Ora, não precisa ser um gênio da estatística para sacar que, a depender do saco escolhido, a conclusão será de que existem 100% de bolas vermelhas ou 100% de bolas brancas, o que está muito longe da realidade.

Esta é a diferença entre enquete e pesquisa. Na pesquisa, toma-se o cuidado de escolher uma amostra que represente a população. Na enquete, por outro lado, qualquer um vota. Por maior que seja o número de votantes, parece óbvio que não há compromisso algum com uma amostra representativa da população. Corremos o risco de tirar todas as bolas de um mesmo saco.

No caso específico da enquete que dá ampla vantagem a Bolsonaro, quem tende a votar é quem frequenta as redes sociais. Sabemos que este é um terreno dominado por Bolsonaro, que tem mais seguidores do que todos os seus competidores somados. Ocorre que esta é uma amostra enviesada da população. Segundo todas as pesquisas com amostragem corretamente estratificada, Lula lidera com folga no estrato com renda até dois salários mínimos, que tende a ter menor presença na internet. Em resumo, a enquete tende a tirar bolas somente de um dos sacos. Portanto, por mais bolas que sejam retiradas, não representa a proporção correta de votos.

Constantino sabe disso, ele é um bom economista. Uma pena ter enterrado sua carreira de maneira tão melancólica.

PS.: no final, Bolsonaro até pode ganhar as eleições, há toda uma campanha pela frente, e pesquisa é um retrato do momento, não quer dizer nada sobre o que vai acontecer daqui a 5 meses. Isso não significa, porém, que enquete seja melhor que pesquisa por amostragem para aferir a proporção de intenção de voto da população. Não se trata de opinião, isso é matemática.

A relativização do estupro

Rodrigo Constantino foi demitido de quase todos os veículos de comunicação onde trabalhava.

Acho que todos viram a fala de Constantino que deu motivo para estas medidas drásticas. Ele basicamente diz que colocaria sua filha de castigo caso ela saísse para uma festa, ficasse bêbada e fosse abusada na festa. E não denunciaria o abusador.

A filha do comentarista fez um vídeo tocante defendendo o pai, afirmando que ele, como qualquer pessoa decente, não é, nem poderia ser, a favor do estupro.

Pois bem. Vamos começar por essa última parte. Parece óbvio que ninguém, em sã consciência, seja a favor do estupro. Nem bandido é a favor. Dizem que estuprador, na cadeia, precisa ficar separado dos demais presos. Caso contrário corre o risco de ser devidamente cancelado do mundo dos vivos. No mínimo, vai sentir na própria pele o que é ser abusado.

Estamos falando, neste caso, do estupro a seco, aquele que ocorre nos caminhos ermos das cidades e dos campos. A moça sozinha, voltando para casa, é surpreendida pelo tarado, que força uma relação sexual obviamente não consentida. Este parece ser o caso em que não há dúvida de que não houve consentimento.

Constantino, no entanto, está se referindo a uma outra circunstância: a menina se embebedou, “ficou” com meninos durante a festa e, portanto, teria como que “consentido implicitamente” na relação sexual. Ou até explicitamente, mas não se lembra, dado o teor alcoólico.

Seria o primeiro caso “preto no branco”, enquanto o segundo caso entraria em uma espécie de “zona cinzenta”, onde a culpabilidade seria, digamos assim, fluida? Creio que não.

Vamos combinar que abuso é abuso, independentemente da quantidade de álcool no sangue. Aliás, não sou jurista, mas parece-me que abusar de uma pessoa bêbada é até mais grave do que se estivesse sóbria, pelo simples fato de a pessoa abusada não ter o devido discernimento para dizer sim ou não.

É óbvio que, quando temos filhos, damos os conselhos de sempre: não ande sozinho por aquela rua, não leve celular no bloquinho de carnaval, não beba na festa, etc. Isso é uma coisa, são os cuidados básicos de segurança que toda pessoa deve observar. Outra coisa completamente diferente é dizer que a falta desses cuidados justifica o ato de quem se aproveita para roubar, matar ou estuprar, a ponto de, inclusive, poupar o bandido de ser denunciado! Se minha filha chegasse em casa dizendo que havia sido abusada, as circunstâncias pouco importam. A única coisa que importa é a palavra dela, que indica não consentimento. E se não houve consentimento, é estupro. Ponto, sem vírgula

.O que está implícito na fala do Constantino, e que justifica o repúdio e a sua demissão de vários veículos de comunicação, é justamente a ligação entre “ficar” e embebedar-se em uma festa com o consentimento de uma relação sexual. E, como bem notou uma amiga, esta ligação só existe para mulheres. Homem pode se embebedar à vontade que a ninguém ocorre que ele esteja a fim de ser estuprado.

Enfim, Rodrigo Constantino se notabilizou por ser uma voz do conservadorismo brasileiro. Voz meio estridente, mas ok. Neste caso, no entanto, o que poderia ser, com um pouco de boa vontade, um libelo pela disciplina dos filhos (um valor caro ao conservadorismo) se tornou uma relativização do estupro. Triste papel.