Os requisitos para o impeachment

Há uma percepção equivocada sobre o papel do presidente da Câmara dos Deputados a respeito de seu poder como guardião da chave do processo de impeachment. É o que afirma, por exemplo, Rosângela Bittar, uma experimentada jornalista, em sua coluna de hoje. Para a colunista, todos os elementos para um processo de impeachment estão dados, mas Arthur Lira não quer matar sua “galinha dos ovos de ouro”. Portanto, como ele não quer, não acontece, apesar de todos os outros requisitos estarem dados.

Bem, até os jornalistas mais experimentados erram em suas avaliações, e este é um caso.

Claro, regimentalmente, cabe a Arthur Lira, e somente a ele, dar prosseguimento a um dos inúmeros pedidos de impeachment que chegaram à Câmara dos Deputados. Mas o presidente da Câmara (não este especificamente, qualquer um) não é um ditador, que faz o que lhe der na telha. Como político, ele sente o pulso do organismo como um todo e certamente não ficará na frente de uma onda que não tem como segurar.

Ocorre que, ao contrário do que diz a colunista, não estão dados todos os requisitos para o sucesso de um processo de impeachment neste momento. Para ilustrar, gosto sempre de mostrar o gráfico abaixo, com a popularidade líquida (avaliação ótimo/bom menos avaliação ruim/péssimo) dos presidentes ao longo do tempo. Trata-se de uma média das pesquisas de vários institutos.

Podemos observar que Bolsonaro está em seu pior momento de popularidade. Mas isto não significa, nem de longe, que está frágil o suficiente para sofrer impeachment. Observem como Collor e Dilma tinham popularidade líquida muito mais baixa, cerca de 35 pontos mais baixa do que a atual de Bolsonaro. Ou seja, a premissa da jornalista, de que há apoio popular para o impeachment, é discutível.

Mas não é só isso. Não basta que a popularidade esteja no nível das Fossas Marianas. É preciso perder o apoio do Congresso. Claro que, com a popularidade no fundo do poço, a perda do apoio no Congresso é quase que automática. Quase. Temer enfrentou popularidade até mais baixa do que a de Dilma, mas se safou de um processo de afastamento na Câmara. Claro, Temer era Temer, e Bolsonaro é Bolsonaro, de modo que, se a sua popularidade cair, dificilmente escapará de um processo. Mas só para dizer que é possível manter-se, mesmo sem popularidade, como demonstrou Temer.

Mas não é só. A economia conta, e muito. Nos dois casos de impeachmente, o PIB afundou, 4% no caso de Collor, 8% no caso de Dilma. Tivemos uma recessão de 4% no ano passado, mas a recuperação tem sido muito rápida. Além disso, ao contrário de Collor e Dilma, a recessão no governo Bolsonaro não foi causada por decisões econômicas bizarras, como o confisco da poupança ou intervenções estapafúrdias na atividade econômica. A causa foi externa e, se houve alguma iniciativa do governo, esta foi positiva, com a aprovação do auxílio emergencial. Então, esta questão da economia está distante do quadro que tivemos com Collor e Dilma, o que acaba se refletindo em sua popularidade ainda longe do fundo do poço.

Um terceiro ponto é o apoio político. Como diz a colunista, Bolsonaro ainda é uma “galinha dos ovos de ouro” conveniente. Com o atual nível de popularidade, não fica clara a vantagem de se afastar de alguém que topa jogar o jogo da divisão de poder. Bolsonaro, apesar de sua retórica de campanha e no cercadinho, tem sido um jogador racional quando se trata de montar uma base parlamentar, distribuindo nacos de poder aos seus aliados. O que tem sido revelado no Ministério da Saúde nada mais é do que reflexo deste jogo.

Então, para resumir, Arthur Lira é, de fato, o guardião das chaves do impeachment. Mas ele não é representante de si mesmo. Assim como Eduardo Cunha só colocou em andamento o processo de Dilma quando viu que havia condições políticas para avançar, da mesma forma Lira somente avançará se e quando sentir que é o momento. Antes disso, é só torcida organizada.

Qual o centro da política?

Rosângela Bittar, nova colunista do Estadão, defende a tese de que não há polarização na política brasileira. Para provar a sua tese, Rosângela afirma que há pelo menos três “anti-Lulas” na praça, o que indicaria um quadro mais multifacetado. A tese é discutível, mas o que me chamou a atenção foi a classificação que a experiente colunista faz dos “anti-Lula”: Bolsonaro seria “extrema-direita”, Doria seria “direita” e Ciro Gomes seria “centro”!

Ok, classificar Bolsonaro como “extrema-direita” é uma necessidade atávica da imprensa brasileira, o que puxa todos os seus adversários para a órbita da direita. Mas classificar Ciro como “centro” é só a demonstração de como essa classificação é capenga. A classificação mais óbvia seria Bolsonaro à direita, Doria como “centro” e Ciro como “esquerda”. Mas aí teríamos que assumir que Lula é “extrema-esquerda”, o que obviamente não confere com a narrativa.

Imagine o inverso: o “anti-Bolsonaro” da extrema-esquerda seria Lula, da esquerda seria Ciro e do centro seria Doria. É absolutamente simétrico com a classificação anterior, mas seria um Deus-nos-acuda.

Essa classificação entre “direita” e “esquerda” é sempre sujeita a muita discussão. Mas tem coisas que são indiscutíveis. Uma delas é afirmar que Ciro Gomes é uma alternativa de centro. Simplesmente não dá.