O pedágio do capitalismo de compadrio

“Crony capitalism” ou “capitalismo de laços” ou “capitalismo de compadrio” como é normalmente traduzida essa expressão no Brasil, refere-se à prática de empresários e políticos arranjarem acordos mutuamente benéficos, às custas de quem está fora desses acordos, normalmente os contribuintes ou a concorrência (geralmente ambos).

Em abril último, escrevi sobre esse acordo entre a Shein e a Coteminas, empresa controlada por Josué Gomes, empresário próximo do PT. Depois desse acordo, as alíquotas de importação das brusinhas chinesas voltaram ao normal. Agora, mais detalhes “picantes” desse acordo vieram à tona, inclusive um empréstimo (conversível em ações) de R$ 100 milhões para a empresa brasileira. Isso, e o fato de a empresa chinesa precisar passar pela Coteminas para fazer parcerias com fábricas locais, são, no dizer da reportagem, práticas incomuns.

A China é a própria definição de crony capitalism, pois tudo lá passa por conexões com o governo. Por isso, deve ter parecido natural, para a Shein, o pedágio que teve que pagar para fazer negócios no Brasil.

O Brasil definitivamente voltou

A Coteminas está em dificuldade. Nem sequer o balanço do 4o trimestre de 2022 foi publicado. Nos três primeiros trimestres do ano passado, a empresa gerou prejuízo de R$ 400 milhões, contra R$ 100 milhões em 2021, e teve vendas 22% menores. Há protestos de trabalhadores em algumas fábricas por atraso de salários.

Mas, ainda há esperança! A Shein prometeu nacionalizar quase toda a sua produção vendida no Brasil, e escolheu como parceira, dentre as várias empresas têxteis do país, justamente a empresa de Josué Gomes, filho do ex-vice-presidente José Alencar, e muito próximo a Lula. O fato do anúncio ter-se dado algumas horas após o governo ter voltado atrás na taxação de importações de pequenos volumes deve ter sido mera coincidência.

O Brasil definitivamente voltou.

Escolhas

O problema de fundo nessa história da taxação dos sites chineses é a enorme, brutal, diferença de carga tributária entre as empresas chinesas e brasileiras.

Brasil e China têm renda per capita semelhante. Ambos são considerados países de renda média. A carga tributária chinesa, no entanto, é muito menor que a brasileira. Segundo a OCDE, a carga tributária do Brasil é de quase 32% do PIB, enquanto a da China é de apenas 20% do PIB. Como se nivela essa diferença? Claro, com imposto sobre importação.

Em um lance de relações públicas, a Shein anunciou a “criação” de até 100 mil empregos, por meio de parcerias no setor têxtil. Ou seja, a Shein abriria mão de sua vantagem competitiva para produzir, no Brasil, as mesmas mercadorias que produz na China e vende aqui dentro sem imposto de importação. Acredite quem quiser.

Uma das poucas vantagens de ser mais velho é ter memória. Em 2011, início do governo Dilma, esse número mágico de “100 mil empregos” foi anunciado pela Foxconn, fabricante taiwanesa de iPhones e iPads.

Na época, o ministro da Ciência e Tecnologia, Aloísio Mercadante, estava radiante com a promessa, assim como Haddad hoje. Adivinha quantos empregos foram criados? Pois é. Eu conto essa história neste post.

Somos um país que fez uma escolha: alta carga tributária para bancar uma generosa previdência social (a previdência representa quase metade de todos os gastos do governo). Para um país jovem e de renda média, essa é a fórmula da baixa competitividade global. O resultado é que os brasileiros vivem reféns de um sistema que precisa taxar o consumo de maneira desproporcional, tornando nossos produtos os mais caros do mundo. Quando surge um site chinês que vende e entrega sem o imposto, o brasileiro avança como se fosse um oásis no deserto. Não deixa de ser injusto: afinal, esse mesmo brasileiro usufruirá da previdência generosa, sem pagar por ela.

A Shein vai criar 100 mil empregos assim como a Foxconn criou: só na promessa. Não tem lógica econômica em produzir no Brasil, enquanto o chinês puder exportar sem imposto.

O Múcio do Planalto

Jô Soares era um humorista genial, criador de inúmeros personagens que ficaram na memória. Um deles era o Múcio, um sujeito com ideias muito firmes, até ser confrontado com uma opinião contrária. Nesse momento, Múcio metamorfoseava sua própria opinião, de forma a concordar com a opinião contrária.

Lula deu uma de Múcio nessa questão da Ucrânia. Após afirmar que ambos, Ucrânia e Rússia, eram responsáveis pela guerra, agora, diante do presidente da Romênia e depois das duras críticas de EUA e UE às suas falas, Lula condenou a violação à integridade do território da Ucrânia. Faltou um “pela Rússia”, mas ok, está implícito.

Não poderia ser diferente, dado o discurso lido, que não deixou margem à improvisação, e à presença do presidente da Romênia, país vizinho ao conflito. Aliás, vale ler o trecho do discurso do romeno. A Romênia, assim como a Ucrânia e os outros países do leste europeu, livrou-se de décadas de jugo russo, e não pretende repetir a experiência. Eles sabem que a luta na Ucrânia é de vida e morte não somente para os ucranianos, mas para todos os países da antiga órbita soviética. Diante dessa perspectiva, esse papinho de “clube da paz” soa como um ultraje.

Aliás, ontem foi o dia do Múcio. Lula também mudou de opinião sobre os “contrabandistas” da Shein. Agora, tá liberado. Aprendemos: basta apertar um pouco, que Lula muda de opinião rapidamente. Afinal, Múcio é um homem de ideias firmes, até ser confrontado.

Piscou

Como assim, “Lula pressiona Fazenda”? Lula é o chefe da porra toda S/A! Imagine que chefe pressiona subordinado. Chefe manda, subordinado obedece ou pede o boné. Essa de “pressionar” é só pra se desvincular do fiasco, com a ajuda dos coleguinhas da imprensa, ávidos por “notas de bastidor”. Típico.

O legal é ver até a Janja engajada em isentar a Shein, mesmo depois da aulinha que recebeu do Haddad no avião. Pelo visto, aquele tuíte em que a primeira-dama defendia a medida era fake, ou ela “desentedeu” aquilo que havia “entendido”. E o Felipe Neto, então? Já deve estar bolando outra thread para defender a não taxação.

O fato é que nem a Shein o governo consegue taxar, imagine outros setores, com seus lobbies encastelados no Congresso. O novo “arcabouço fiscal” só para em pé com aumento de carga tributária, o que passaria por fechar os “buracos” por onde vaza a arrecadação. O “buraco” da Shein já se mostrou mais embaixo. Vamos ver quando Haddad for enfrentar os lobbies de verdade.

Tchutchuca com os grandes sonegadores, tigrão com os pequenos

Influencers governamentais saíram em socorro do tiro no pé que foi fechar a brecha de sonegação do imposto de importação para pequenos valores entre pessoas físicas.

Haddad já tinha sido claro: sonegadores não passarão! Tem os grandes sonegadores (aquelas 500 empresas “super-lucrativas” que o ministro citou, além dos bilionários que não pagam imposto no Brasil) e tem os pequenos sonegadores, aqueles que importam da China em quantias abaixo de 50 dólares. O governo começou pelos pequenos. Mais fácil.

A mensagem governamental que os influencers estão tentando passar é que Shein e Shoppee são os grandes sonegadores que serão taxados. No entanto, trata-se de imposto de importação. E quem está importando é a pessoa física remediada que se aproveita de uma brecha da legislação. Repito: o importador é a pessoa física, não o site chinês.

De qualquer forma, trata-se de uma questão quase semântica. O fato, com o qual até Felipe Neto concorda, é que “você pode ficar puto porque os produtos que eram baratos vão ficar mais caros”. Tanto faz quem está pagando o imposto ou onde o imposto está sendo pago. O fato é que os produtos vão ficar mais caros, ponto. Quem é beneficiado? O governo e o comércio local. Quem é prejudicado? Os sites chineses e o consumidor de baixa renda. Pode contar a história que quiser, o resultado final é esse aí. Não tem combate a feiqueniús que dê jeito nisso.

O consumidor quer só consumir

Reportagem sobre a cada vez mais onipresente Shein, que já ultrapassou a Amazon em número de downloads nos EUA. A matéria começa com a descrição de um verdadeiro “assalto” a uma loja da Shein no Texas, que me lembrou a liquidação anual da Magazine Luiza (ainda existe isso?)

Mas, claro, grande parte da matéria se dedica às “polêmicas” que cercam a loja chinesa: “remuneração justa”, “preservação do meio-ambiente”, “incentivo ao consumismo que degrada o planeta”.

No entanto, apesar de tudo isso, a Shein é um fenômeno. E é um fenômeno justamente junto àquela geração que, nos convenceram, está mais preocupada com o meio-ambiente, a geração Greta, aquela que vai mudar o mundo.

Esta aparente contradição, no entanto, pode ser facilmente explicada. O ponto é que a clivagem a respeito da pauta ambiental não é de idade, mas de renda. Somente as classes A e B, que já têm as suas necessidades de consumo mais ou menos resolvidas e podem gastar um pouco mais em “consumo consciente”, podem se dar ao luxo de se preocuparem com o meio-ambiente. Da classe C para baixo, que se preocupa em sobreviver, consumo consciente significa gastar o mínimo possível para morar, comer e se vestir. Qualquer que seja a idade. Para esse público, empresas como a Shein são uma benção.

Claro que os executivos da Shein são espertos. Ao longo da reportagem, são citados comunicados da empresa que fazem chegar ao grande público a preocupação da Shein com eventuais “desvios de conduta”. Como se fosse possível vender os produtos que vende pelo preço que vende sem atuar na fronteira do aceitável, ambiental e socialmente falando. Mas colocar-se como uma empresa “preocupada” não custa nada, a não ser alguns comunicados, que servem para deixar seus clientes com a consciência tranquila.

O incrível sucesso da Shein é prova cabal de que a preocupação com a sustentabilidade passa longe da maioria das pessoas, que simplesmente buscam os melhores produtos pelos menores preços. Achar que as empresas ou os governos podem liderar uma cruzada pela sustentabilidade sem considerar o consumidor na equação é auto-iludir-se.

O mundo vai precisar esperar mais um pouco para ser mudado

Reportagem no Valor de hoje traz a história da Shein. Nunca ouviu falar? Pois é, eu também não, até hoje. A Shein tornou-se a maior varejista de moda rápida dos EUA, ultrapassando a Zara e a H&M, com mais de 25% de market share do mercado americano.

A Shein é uma empresa chinesa que gabarita em todos os quesitos do anti-ESG: é acusada de roubar propriedade intelectual, de atuar na zona cinzenta da legislação tributária, de usar mão de obra semi-escrava e de, pecado dos pecados, contribuir para a poluição do meio-ambiente.

Uma empresa dessas, que tem no público jovem seu maior cliente, estaria fadada ao fracasso dada a festejada “consciência social” da geração Greta. Surpreendentemente, os jovens parecem não se importar com essa fila de transgressões. Motivo? As roupas são muuuuuito baratas.

Aparentemente, a tal consciência social só conseguiu comover, por enquanto, os jovens que podem comprar roupas mais caras. Os jovens pobres ainda não desenvolveram a consciência de classe que vai mudar o mundo.