Autoritarismo do bem

Um abaixo-assinado publicado hoje no Estadão (na verdade é um artigo, mas tem tantos autores que virou abaixo-assinado) dá um conselho à Petrobras: ao invés de investir em uma fonte de energia que será abandonada em breve, a empresa deveria investir em “alternativas neutras em carbono”.

O abaixo-assinado é uma reação a um artigo do presidente da Petrobras, Joaquim Silva e Luna, em que se defende a aceleração da exploração do pré-sal enquanto o petróleo ainda tem algum valor. O interessante é que tanto o abaixo-assinado quanto o artigo de Silva e Luna concordam no essencial: um dia, o petróleo deixará de ser uma fonte importante de energia. A divergência está no timing: para os abaixo-assinados, “em menos de 100 meses” as emissões de gases de efeito estufa terão de ser cortadas pela metade para que tenhamos alguma chance de limitar o aquecimento global em 1,5o, ao passo que, para o presidente da Petrobras, ainda teremos um bom tempo antes que isso aconteça, tempo suficiente para ganhar algum dinheiro com o petróleo do pré-sal.

Não vou entrar no mérito de quem está certo, mas esse artigo é, no mínimo, estranho. Será que os abaixo-assinados estão realmente preocupados com o futuro da Petrobras enquanto empresa e estariam dando um conselho de amigo? Pouco provável. Parece mais uma tentativa de empurrar uma profecia auto-realizável: sem produtores de petróleo daqui a alguns anos, o consumo cairá por falta de oferta, não de demanda. Ou seja, por trás desse “aviso amigo” de que a demanda despencará no futuro, está a tentativa de reduzir a oferta. Nice try, abaixo-assinados.

Além disso, soa patético o pedido de que a Petrobras se dedique à produção de “energias limpas”. É um pouco como pedir para um ortopedista realizar uma cirurgia cardíaca. “Mas não é tudo médico?”, perguntará o leigo. Com essa “proposta”, os abaixo-assinados demonstram a sua completa ignorância de como funciona o mercado de energia. Em determinado trecho, é mencionado que a empresa chegou a investir em etanol e biodiesel anos atrás, mas “deixou as renováveis de lado para focar no petróleo”. Fica difícil de saber de onde tiraram isso. A Petrobras tem papel marginal na produção de etanol e biodiesel, indústrias dominadas pelos grandes conglomerados do agronegócio, como Cargill e Raízen. O máximo que a petrolífera faz é comprar o etanol e o biodiesel e misturar na gasolina e no diesel. E só faz isso por determinação legal, não por estratégia de negócio.

O que se tem aqui é uma tentativa de introduzir um elemento estranho ao balanço da demanda/oferta de petróleo: o “custo ambiental”. Diminuindo a oferta artificialmente, teríamos um novo equilíbrio, com o preço do petróleo nas alturas (porque a demanda continuará lá) viabilizando fontes alternativas de energia. O resultado será menos gases de efeito estufa e energia bem mais cara do que a que temos hoje. Claro, as energias alternativas ficarão mais baratas com o tempo. Mas o caminho para o céu é a morte, e por mais que gostemos da ideia do paraíso, ninguém está a fim de morrer para chegar lá. Se energias alternativas mais baratas estivessem no horizonte, não estaríamos tendo essa conversa.

Esse abaixo-assinado seria cômico se não fosse trágico. Se a Petrobras seguisse o seu conselho, passaríamos a depender cada vez mais de petróleo importado. E, na heróica hipótese de que as metas para o clima fossem cumpridas, teríamos um petróleo cada vez mais caro no mercado internacional. Apostar que ”daqui a menos de 100 meses” teremos energia limpa a preços competitivos é jogar com a sorte dos mais pobres, que dependem de energia barata para sobreviver. Os abaixo-assinados dirão que o meteoro do aquecimento global está se aproximando, e não adiantará nada ter energia barata se todos estivermos mortos sob os escombros do seu impacto. É uma forma de ver a coisa. Fariam melhor, neste caso, se voltassem suas baterias para promover a diminuição da demanda. Atacar a oferta é uma forma autoritária de atingir o seu objetivo, na medida em que se colocam como aqueles que sabem o que é melhor para a humanidade, sem se dar ao trabalho de convencer a humanidade sobre a sua verdade.

O paradoxo que assombra o governo Bolsonaro

Roberto Castelo Branco foi escolhido como presidente da Petrobras por Paulo Guedes. Um dos chamado “Chicago Oldies” – assim como Guedes, egresso da Universidade de Chicago – a escolha de Castelo Branco servia para demonstrar que o Brasil estava entrando em uma nova era de racionalidade na economia e no trato da coisa pública. O novo presidente era a garantia de que a Petrobras não seria mais utilizada como instrumento desenvolvimentista, nem tampouco para a implementação de políticas demagógicas às expensas de seus acionistas minoritários.

Pois bem. Castelo Branco não sobreviveu ao primeiro choque de preços do petróleo, e foi defenestrado por Bolsonaro em abril de 2021. A acusação era de que o Chicago Oldie não tinha “sensibilidade social” e, além disso, fazia o que bem entendia antes de conversar com o presidente da República. Como se a Petrobras não fosse uma empresa de economia mista regida por estatutos internos bastante rígidos. Aliás, a não interferência da presidência da República era exatamente o que diferenciava o novo governo do governo do PT. Mas, segue o jogo.

Castelo Branco caiu e, em seu lugar, Bolsonaro nomeou um militar de sua confiança (era, pelo menos, o que ele pensava), o ex-presidente da Itaipu Binacional, general Joaquim Silva e Luna. O mercado reagiu mal, pois precificou a volta da intervenção do Planalto na empresa. Estavam, o mercado e Bolsonaro, redondamente enganados. Silva e Luna tem se mostrado um liberal tão ou mais ortodoxo do que seu antecessor. As reclamações de Bolsonaro e sua entourage são um deja vu (estou abusando do francês hoje), parece que estamos vivendo abril de 2021 com outro personagem, até os termos usados são os mesmos.

A questão, agora, é saber o que Bolsonaro pretende fazer. Vai substituir Silva e Luna por alguém que, finalmente, ”converse com o presidente”? Ou continuará com Silva e Luna, apenas marcando sua posição em entrevistas como se fosse mais um brasileiro que não tem nada a ver com isso? Substituir Silva e Luna por outro liberal que vai “respeitar a lógica econômica da empresa” não resolveria nada.

O grande paradoxo que assombra o governo Bolsonaro (e não é só na questão da Petrobras) é ter um governo liberal liderado por um demagogo populista. Claro que os preços dos combustíveis são um problema político sensível, e o presidente da República não pode deixar de se posicionar a respeito. Isso é uma coisa. Outra coisa é demonizar a Petrobras ou o seu presidente por decisões que qualquer empresa privada tomaria no mesmo contexto. A não ser que se considere a Petrobras como um puxadinho do governo. Mas, nesse caso, já não se trataria de um governo liberal. Então, temos uma empresa que age de acordo com o perfil liberal e é criticada pelo presidente que lidera um governo auto-intitulado liberal. Esta é a esquizofrenia.

De qualquer modo, há que se reconhecer que estamos a anos-luz do que os governos do PT fizeram com a empresa, e prometem fazer novamente se forem eleitos. É melhor um governo esquizofrênico que reclama das suas próprias virtudes do que outro com discurso coerente mas terrivelmente equivocado.

Bodes expiatórios convenientes

O presidente da Petrobras, general Silva e Luna, publica hoje artigo explicando o preço da gasolina. Dos R$ 6,10 na bomba, apenas R$ 2,00 seriam “culpa” da empresa. Para os restantes R$ 4,10, os “culpados” são os intermediários (R$0,60), a mistura do etanol (R$ 1,00) e os impostos (R$ 2,50). Desses R$ 2,50, R$ 1,65 correspondem ao ICMS. E é aí que o presidente da maior empresa brasileira abandona a análise técnica e começa a fazer política. Como um analista distante, pontifica que os impostos são “excessivos”. Os impostos dos outros, claro.

Bolsonaro, que Silva e Luna emula nesse artigo, vem usando os governos estaduais como bode expiatório para o preço dos combustíveis. Faz sentido? Vejamos.

Em números redondos, a arrecadação do ICMS nos primeiros 4 meses desse ano foi de R$ 200 bilhões. Usando uma regra de três simples, podemos estimar em R$ 600 bilhões a arrecadação anual com esse imposto estadual. Os combustíveis representam mais ou menos 15% desse total, ou R$ 75 bilhões. Se os governos estaduais abrissem mão do ICMS sobre combustíveis, esta seria a arrecadação perdida. É isso que o governo federal está sugerindo.

Vamos voltar um pouco para os fundamentos do sistema arrecadatório brasileiro. A Constituição de 88 estabeleceu que os estados financiariam as suas atividades com impostos incidentes sobre o comércio, e os municípios com os impostos incidentes sobre os serviços. São justamente os impostos que tornam as mercadorias mais caras. Não somente os combustíveis ficam mais caros, mas eletricidade, comida e uma longa lista de etceteras.

Já a União tributa com impostos que ficam mais “escondidos” nos balanços das empresas: basicamente o IPI, PIS/Cofins, os impostos sobre a folha de pagamento e o IR sobre o lucro. A LDO de 2022 prevê cerca de R$1,3 trilhões de arrecadação desses impostos mais o IR sobre a pessoa física. Portanto, o dobro da arrecadação do ICMS. Esses impostos também pesam sobre os combustíveis, pois oneram a atividade da Petrobras, mas não “aparecem” na nota fiscal.

E mais: os estados usam essa arrecadação para pagar professores, polícia e uma longa lista de serviços mantidos pela esfera estadual. E não têm o poder que a União possui de se endividar. A LDO de 2022 prevê um déficit de R$ 170 bilhões na esfera federal, que será coberto com emissão de dívida. Os estados não podem fazer isso. O que Bolsonaro sugere para cobrir o rombo de R$ 70 bilhões com a suposta não cobrança de ICMS sobre combustíveis? O governo federal arcaria com as despesas correspondentes? Qual a sugestão?

O Brasil tem, de longe, a maior carga tributária entre as economias emergentes, para não dizer pobres. Se o nome do tributo é ICMS, IPI ou IR, pouco importa. O fato é que o governo, em suas três esferas, é o grande sócio oculto do brasileiro. Bolsonaro e seus bate-paus querem nos fazer crer que os únicos culpados são os governadores. Não são. Ou, pelo menos, não são só eles. A única conversa séria possível sobre o tema é racionalizar os gastos do Estado brasileiro. Mas isso dá muito trabalho. Bolsonaro e Silva e Luna, que viveram à custa de nossos impostos a vida inteira, preferem usar truques de ilusionismo, jogando a culpa em bodes expiatórios convenientes. Acredita quem quiser.