Gasta, mas fala diferente

“É proibido gastar.”

Tendo sido empossado como presidente em exercício, José Sarney leu o discurso preparado por Tancredo Neves para a primeira reunião ministerial do novo governo, em 19/03/1985. Ficou para a história a frase “é proibido gastar”, supostamente indicando um governo austero. No entanto, lendo o parágrafo anterior, podemos observar que a ordem valeria enquanto os ministros não fizessem um diagnóstico em suas pastas, de modo a identificar investimentos com o objetivo de promover o “desenvolvimento econômico com a geração de empregos”.

Lula segue a tradição. Mas, em tempos de redes sociais, aggiorna a mensagem. No melhor estilo “vendedor de curso on line”, pede para os ministros trocarem a palavra “gasto” por “investimento”. Assim, o “é proibido gastar” se torna “é proibido usar a palavra gastar”. O efeito final é o mesmo. Afinal, que ministro admitiria que seus gastos não são “investimento”? Isso vale tanto para 1985 quanto para 2023.

Tancredo, no entanto, encontrou um quadro bem diferente do que temos hoje, em termos de transparência das contas públicas. Tendo que lidar com uma inflação anual de 3 dígitos e verdadeiras máquinas paralelas de impressão de dinheiro, como o Banco do Brasil e os bancos estaduais, Tancredo não tinha como saber o buraco em que se metera. Lula não tem essa desculpa. Depois de décadas de reformas, sabemos, com razoável precisão, de onde vem e para onde vai o dinheiro público. Se o “investir” de Tancredo precisava ser antecedido por um diagnóstico financeiro de suas pastas por parte dos ministros, no caso de Lula, o diagnóstico já está feito. Em ambos os casos, no entanto, o “investimento para gerar o desenvolvimento” sempre se justifica.

O “é proibido usar a palavra gastar” de Lula nos dá a impressão de que andamos em círculos nesses últimos 40 anos, sempre em busca do “investimento que gerará o desenvolvimento”. A julgar pela perda de relevância do nosso PIB em relação ao PIB global nesse período, não se trata só de uma impressão.

Coincidências

No dia 20/03/85, o então presidente Tancredo Neves foi submetido a uma 2a cirurgia de emergência, para retirar “aderências” do intestino delgado.

Coincidentemente, no último dia 12, Bolsonaro também passou por uma 2a cirurgia de emergência, para retirar “aderências” do intestino delgado.

Espero, com toda sinceridade do mundo, que as coincidências parem por aí.

Tancredo e Bolsonaro

Fui assistir hoje “Tancredo: o paciente”. O filme retrata os últimos dias de Tancredo Neves no hospital, desde a sua internação até a sua morte, em 21/04/1985. O filme é muito bom, tem ótimo ritmo e excelentes interpretações. Vale muito a pena, principalmente para nós que vivemos aqueles tempos.

Grande parte da trama se dá em torno da tentativa de esconder do país o verdadeiro estado do presidente eleito. Não sei porque, lembrei-me de Bolsonaro.