A economia brasileira na era PT. Episódio 3: Faz de conta que acredito em suas boas intenções

Política monetária é aquela que se refere à administração da moeda no mercado doméstico, enquanto a política cambial trata da administração da moeda no mercado externo. A primeira procura manter a inflação controlada, enquanto a segunda procura manter o equilíbrio no balanço de pagamentos. Há vasos comunicantes entre as duas políticas, porque, afinal, trata-se sempre da mesma moeda.

O governo Lula herdou do governo FHC o tripé macroeconômico: metas de inflação, câmbio flutuante e superávits primários. As duas primeiras pernas desse tripé referem-se às políticas monetária e cambial, enquanto a terceira refere-se à política fiscal, abordada no episódio anterior.

As políticas monetária e cambial, por tratar-se do controle da moeda, são atribuição do Banco Central, enquanto a política fiscal é atribuição direta do governo. Nem sempre foi assim, mas essa independência operacional do BC ganhou força durante o governo FHC e, como veremos, foi respeitada durante a fase da Grande Ilusão, que coincidiu, em grande parte, com a liderança de Henrique Meirelles à frente do BC. A coisa começa a degringolar nos Anos da Húbris, com alguns sinais já no final do governo Lula, mas atingindo o apogeu da deterioração durante o governo Dilma e seu fiel escudeiro no BC, Alexandre Tombini.

A Política Monetária

Antes de começarmos, precisamos explicar brevemente como funciona o sistema de metas de inflação. Nesse sistema, a meta serve como uma âncora de longo prazo para os agentes econômicos. Na falta de qualquer outra informação, os agentes econômicos olham para o futuro e preveem que a inflação estará em torno da meta, se o Banco Central tiver credibilidade. Este “se” é de extrema importância. Se o Banco Central cria uma fama de “leniente” com a inflação, os agentes econômicos começam a duvidar que a meta será cumprida e, consequentemente, começam a prever uma inflação no futuro acima da meta. Isso tem importância no momento de precificar taxas de juros, por exemplo: os bancos procuram “prever” a inflação futura para estabelecer as taxas de juros do crédito. Além disso, outros agentes econômicos, como empresas e até pessoas físicas, começam a querer se proteger antecipadamente de uma inflação mais alta no futuro, o que leva a uma elevação da inflação já no presente. Por isso, nesse sistema, é de grande importância que o Banco Central tenha credibilidade, ou seja, que os agentes econômicos acreditem que a autoridade monetária irá perseguir a meta de inflação ao longo do tempo.

Para que o Banco Central cumpra a sua missão, é fundamental que reaja de maneira coerente às ameaças inflacionárias, aumentando ou diminuindo os juros quando necessário, e que se comunique de maneira coerente com o mercado de taxas de juros, de modo a coordenar as expectativas dos agentes econômicos. No sistema de metas de inflação, esse conjunto de atividades do Banco Central (determinação da taxa básica de juros e comunicação com o mercado) determina o seu sucesso ou fracasso em sua missão de controlar a inflação ao longo do tempo.

Nesse sentido, o governo Lula começou com o pé direito, indicando para o Banco Central um executivo com grande credibilidade junto ao mercado financeiro, o ex-presidente do Bank Boston, Henrique Meirelles. E Meirelles, consciente do seu desafio de construir credibilidade em um mar de desconfianças, começou seguindo a receita do governo FHC: juros altos para manter a inflação sob controle. Em várias ocasiões, o BC de Henrique Meirelles mostrou ser conservador, surpreendendo o mercado e enfurecendo o setor produtivo. Por exemplo, no COPOM de 18/junho/2003, depois de ter elevado a taxa Selic de 25% até 26,50% desde o início do ano, o BC decidiu cortar a taxa Selic em apenas 0,50%. A reação foi a seguinte:

No Copom seguinte, em 23/julho/2003, a Selic foi reduzida novamente, desta vez em 1,50%, mas a reação foi a mesma:

No Copom de 21/janeiro/2004, o BC surpreende novamente o mercado, que esperava novo corte de juros, decidindo pela sua manutenção:

Esta será uma constante em praticamente todo o mandato de Henrique Meirelles à frente do BC. Em 18/setembro/2005, o próprio Armínio Fraga, presidente do BC no 2º mandato de FHC e introdutor do sistema de metas de inflação no Brasil, reconheceu a austeridade do BC de Henrique Meirelles:

O resultado foi a redução da inflação para níveis compatíveis com a meta, conforme podemos observar no gráfico abaixo, que mostra a inflação (medida pelo IPCA, em azul), e a meta (em laranja). Observe como a inflação, depois de uma grande volatilidade no início do governo Lula (muito em função da desvalorização cambial causada pelo próprio receio do mercado com relação à sua eleição), convergiu para a meta, principalmente a partir de 2006.

No entanto, estávamos no fim da fase da Grande Ilusão também na política monetária. No final de seu mandato, até Meirelles se rendeu à lógica eleitoral, e interrompeu um ciclo de alta de juros que havia sido iniciado em abril de 2010. Após apenas 3 altas, o BC deu por encerrado o ciclo, mesmo com as expectativas de inflação ainda subindo, em meio a uma forte recuperação da atividade econômica naquele ano.

Os analistas estavam corretos. No primeiro Copom do governo Dilma, o novo presidente do BC, Alexandre Tombini, precisou retomar a alta dos juros. Foi a primeira vez, desde o início do sistema de metas de inflação, que um ciclo de alta precisou ser retomado após uma breve pausa. A segunda vez seria em 2014, quando o ciclo de alta foi interrompido em abril para ser retomado na semana seguinte do 2º turno das eleições. O fato de ser também um ano eleitoral não é mera coincidência.

O BC, então, recomeça o processo de elevação dos juros. No entanto, na reunião de agosto de 2011, Tombini começa a virada que marcará, daí em diante, a sua atuação frente ao Banco Central. Surpreendendo o mercado, e sem respaldo nas expectativas de inflação, que continuavam a subir, o BC decide dar um cavalo-de-pau e reduzir as taxas de juros:

Esta foi a primeira (e, até o momento, única) vez em que o BC iniciava um ciclo de queda de juros sem que o ciclo de alta anterior tivesse tempo para fazer o seu efeito. A justificativa foi uma virada no cenário externo (na época, a situação na Europa estava realmente se deteriorando), que provocaria uma recessão global e afetaria negativamente o crescimento brasileiro e, por tabela, reduziria a inflação. Além disso, apostava-se na “austeridade” do governo Dilma. Sem dúvida, uma aposta e tanto!

De fato, a inflação saiu de 7,23% no mês de agosto de 2011, até atingir 4,92% em junho de 2012, respondendo ao aperto monetário feito até junho de 2011. Em outubro de 2012, quando a taxa Selic atingiu a mínima histórica de 7,25%, a inflação já havia subido para 5,45%, e estava em processo firme de alta. Lembrando sempre que a meta era de 4,50%. Foi então que começou a se cristalizar no mercado a convicção de que o Banco Central estava, na realidade, trabalhando com uma espécie de “meta paralela” de inflação. A meta oficial era de 4,50%, mas o mercado começou a desconfiar que o BC estava perseguindo algo entre 5,50% e 6,50%, que era o topo da meta. A exemplo de outras áreas do governo Dilma, o BC estaria “jogando com as regras debaixo do braço”, trabalhando no limite de seu mandato e não para atingir a meta oficial.

Essa desconfiança tinha a sua razão de ser. Vejamos o gráfico a seguir:

Observe como, durante os 4 anos do primeiro mandato de Dilma Rousseff (quadro pontilhado vermelho), a inflação nunca ficou abaixo da meta de 4,5%, mas ficou sempre orbitando em torno de 5,5%, o que, com o tempo, foi minando a confiança do mercado.

Mas essa falta de credibilidade do BC foi um trabalho a quatro mãos. Não somente a postura ambígua do BC começou a chamar a atenção do mercado, mas o próprio discurso intervencionista do governo contribuiu para aumentar a desconfiança. A esse respeito, é precisa a descrição da jornalista Claudia Safatle, do Valor Econômico, ao comentar a decisão do Copom de 06/03/2013, em que a diretoria do BC sinaliza que deverá iniciar um ciclo de alta dos juros na reunião seguinte, apenas 6 meses após ter encerrado o ciclo de baixa anterior:

O resultado, como vimos, foi uma inflação constantemente mais alta do que a meta ao longo do tempo, com um estouro da boiada em 2015, pós-eleição, quando os preços administrados foram liberados. Aliás, controle de preços de combustíveis e energia elétrica faziam parte da “maquiagem” da inflação. Era como usar a Petrobras e a Eletrobras para fazer política monetária. Com o fim dessa política, a inflação rapidamente chegou a 10% no final de 2015.

Alguns poderão dizer que estamos novamente com uma inflação de dois dígitos, então este BC é tão leniente quanto o da época do PT. No entanto, é preciso contextualizar e, para isso, ser-nos-á útil comparar a inflação brasileira com a inflação global. É o que fazemos no próximo gráfico:

Note como, a partir de 2011, primeiro de maneira lenta, e depois mais rapidamente, a inflação brasileira vai se descolando da inflação global, até atingir uma diferença de quase 8 pontos percentuais em 2015 (barras verdes). Agora em 2021, com o mesmo nível de inflação de 2015, a diferença para a inflação global é menor que 4 pontos percentuais. Ou seja, hoje, a inflação brasileira tem um componente global muito maior do que em 2015, quando a inflação foi essencialmente fruto da barbeiragem local.

Para finalizar, uma palavra sobre a postura intervencionista do governo Dilma nas taxas de juros, que, de resto, foi a sua marca registrada em praticamente todas as áreas da economia. O ponto alto, sem dúvida, foi o discurso da presidente por ocasião do Dia do Trabalho de 2012:

O governo Dilma já vinha usando o Banco do Brasil e a Caixa Econômica para “reduzir” as taxas de juros, mais ou menos a mesma coisa que vinha fazendo com a Petrobras para “reduzir” os preços dos combustíveis e como faria, no final deste mesmo ano, com a Eletrobras para “reduzir” os preços da energia elétrica. Ficou até famosa a campanha publicitária do Banco do Brasil, “Bom Pra Todos”, em que anunciava os juros mais baixos:

O problema, como sempre, foi a realidade. O gráfico a seguir mostra os spreads de crédito do sistema financeiro, já contando com Banco do Brasil e Caixa, para pessoas físicas e jurídicas:

Em maio de 2012, quando Dilma fez o seu incendiário discurso demonizando os bancos, o spread de crédito (quanto os bancos cobram acima da taxa básica de juros) para as pessoas físicas e jurídicas era de 26,0% e 9,6% respectivamente. A partir de então, os spreads até recuaram um pouco, mas em abril de 2016, quatro anos depois e no mês de seu impeachment, esses mesmos spreads estavam em 36,2% e 9,6% respectivamente. Ou seja, os spreads para a pessoa física haviam aumentado em 10 pontos percentuais, enquanto para a pessoa jurídica estavam no mesmo lugar, não haviam recuado.

Em maio de 2012, quando Dilma fez o seu incendiário discurso demonizando os bancos, o spread de crédito (quanto os bancos cobram acima da taxa básica de juros) para as pessoas físicas e jurídicas era de 26,0% e 9,6% respectivamente. A partir de então, os spreads até recuaram um pouco, mas em abril de 2016, quatro anos depois e no mês de seu impeachment, esses mesmos spreads estavam em 36,2% e 9,6% respectivamente. Ou seja, os spreads para a pessoa física haviam aumentado em 10 pontos percentuais, enquanto para a pessoa jurídica estavam no mesmo lugar, não haviam recuado.

Aprendemos (aprendemos?) que não são discursos contundentes ou o uso de bancos estatais que resolvem o problema dos juros altos. Aliás, este tipo de intervencionismo normalmente tem o efeito justo inverso: aumenta o risco percebido pelo sistema, que coloca prêmios de risco maiores nas taxas de juros para se protegerem de eventuais intervenções ou mudanças de regras de jogo no futuro.

A Política Cambial

Lula iniciou seu governo em uma situação realmente delicada, em parte criada pela própria expectativa de sua eleição, o que piorou algo que já não era bom. No gráfico abaixo, podemos observar o valor do dólar, ajustado pelo diferencial de inflação entre Brasil e EUA. Ou seja, o nível real do dólar, já descontado o efeito da inflação, o que nos dá o real poder de compra da moeda brasileira em relação ao dólar ao longo do tempo.

Observemos que Lula iniciou seu governo com o dólar próximo de R$ 7,00 a valores de hoje. Logo nos primeiros meses de seu governo, a moeda voltou para o nível de R$ 5,50, mesmo nível da segunda metade do governo FHC e, a partir de meados de 2004, engatou um processo de valorização que iria se reverter apenas brevemente durante a crise financeira de 2008 e encerrar-se em meados de 2011, com o dólar batendo R$ 2,50 em dinheiro de hoje.

Mas este foi um período de grande desvalorização do dólar globalmente. No gráfico a seguir, podemos verificar que o Real não se valorizou sozinho. Escolhemos o período que se inicia em 30/04/2003 para expurgar o overshooting pré-eleição, até o ponto de mínimo, em 31/07/2011.

Observemos que o Real foi a moeda que mais se valorizou, mas não foi a única. De modo que uma parte desta valorização foi, de fato, mérito do governo Lula, mas outra parte foi devido a um movimento global que favoreceu as moedas de países exportadores de commodities e até moedas de países mais desenvolvidos, como Franco Suíço e Iene.

Esta grande valorização do real foi firmemente combatida pelo ministro Guido Mantega, que até cunhou uma expressão para se referir a este movimento: “guerra cambial”. O jornal britânico Financial Times, nesta reportagem, foi o primeiro a chamar a atenção para este termo:

Segundo o ministro brasileiro, após a crise financeira de 2008, os países desenvolvidos, liderados pelos EUA, estariam depreciando propositalmente as suas moedas, através de estímulos monetários gigantescos. Estes estímulos monetários (que significam taxas de juros menores), acabaram, segundo Mantega, por afastar investidores destes países, que passaram a procurar rendimentos maiores em países como o Brasil, que precisam praticar taxas de juros maiores para controlar a inflação. Mantega, no melhor estilo desenvolvimentista, passou a demonizar o real apreciado, colocando nele a culpa da nossa “falta de competitividade”.

Veremos que Mantega tinha razão no diagnóstico, ainda que sua narrativa de um complô dos países desenvolvidos careça de racionalidade. De fato, como veremos mais adiante quando abordarmos a formação das reservas internacionais, uma boa parte do fluxo de dólares foi de investimentos financeiros. O problema é que os países desenvolvidos estavam procurando combater uma grande recessão, e o único instrumento monetário disponível era trazer a taxa de juros para zero. A depreciação de suas moedas é apenas um efeito colateral, não o seu objetivo maior. Mas, a narrativa desenvolvimentista sempre envolve manipulação do câmbio, e com Mantega não é diferente.

É irônico que a expressão “Guerra Cambial” tenha ganhado destaque apenas dois dias antes da megacapitalização da Petrobrás, que atraiu nada menos que R$ 21 bilhões de investidores estrangeiros.

Ou seja, ao mesmo tempo que o governo, com uma mão, amaldiçoa o fluxo de recursos do exterior, com a outra procura avidamente estes mesmos recursos para financiar as suas atividades. É um pouco como, por um lado, demonizar os credores da dívida pública, e por outro, fazer déficits que aumentam essa mesma dívida. Mas, sigamos.

Será que Mantega tinha razão? Será que fomos vítimas de uma armação dos EUA para minar a competitividade da nossa indústria via câmbio?

Bem, se você perguntar para qualquer desenvolvimentista, o câmbio sempre estará pelo menos 20% mais apreciado do que deveria estar para “impulsionar” a indústria, qualquer que seja o nível da moeda. E se, por obra e graça da providência, o câmbio estiver no “lugar certo”, faltará a garantia de que ficará ali para sempre, o que, em um regime de câmbio flutuante, é obviamente impossível de se garantir. O câmbio é o preço de nossa moeda, e qualquer tentativa de se controlar preços é inócua, e pode até ser perigosa. Em nossa história econômica já vivemos muitas crises de balanço de pagamentos, justamente porque o câmbio foi “tabelado”, o que sempre acaba por redundar em escassez de moeda forte. O câmbio flutuante é uma benção, e desde a sua adoção, em 1999, não sabemos mais o que é crise de balanço de pagamentos. Ao contrário, por exemplo, de nossos vizinhos ao sul.

A reação do governo Lula foi a de tentar conter o fluxo de capital estrangeiro através de taxação e outras medidas que puniam o ingresso de recursos. A estreia dessa estratégia ocorreu em 20/10/2009, quando o governo estabeleceu uma alíquota de IOF de 2% sobre o investimento estrangeiro em renda fixa e bolsa.

Essa foi apenas a primeira de uma série de medidas que se sucederiam alucinadamente nos 4 anos seguintes, como podemos observar no gráfico a seguir (em vermelho temos as intervenções para fazer o dólar subir, enquanto em verde são as intervenções para fazer o dólar cair):

Estas intervenções são tão deletérias para o bom funcionamento do mercado cambial, que uma das principais exigências para a adesão à OCDE é justamente a eliminação de cobrança do IOF em operações neste mercado. O governo do PT, em linha com sua visão de mundo, usou e abusou desses instrumentos, com resultados pífios do ponto de vista da cotação da moeda que, como vimos, segue leis macroeconômicas próprias. É um pouco como a criança que pretende segurar as ondas do mar com suas mãozinhas.

Para terminar este episódio, vamos entender de onde vieram as reservas internacionais acumuladas durante o governo do PT, uma das grandes conquistas alardeadas pelo partido.

A construção das reservas internacionais

O acúmulo de reservas internacionais é um dos grandes legados do governo Lula. Este fato é cantado em verso e prosa toda vez que se acusa o governo do PT de ter sido um mal para a economia brasileira. De fato, trata-se de um seguro que nos dá o conforto de afastarmos a ameaça de uma crise de balanço de pagamentos, tão comum ao longo da história econômica brasileira. A falta de dólares sempre foi um fator de desestabilização. A manutenção de um sistema de câmbio quase fixo durante o primeiro mandato de FHC quase nos quebrou, exaurindo as poucas reservas que tínhamos. Tivemos que fazer um acordo com o FMI, acordo este que foi encerrado durante o primeiro governo Lula, fato que o ex-metalúrgico faz questão de lembrar com justificável orgulho.

No gráfico a seguir, podemos observar a evolução de nossas reservas (a parte hachurada cobre todo o período dos governos do PT):

Observe como as reservas começam a decolar em 2006 e principalmente em 2007, fazem uma pausa em 2008 e atingem o nível atual em 2012, já no governo Dilma. Portanto, o grosso das reservas atuais são construídas em 5 anos, entre 2007 e 2011, em grande parte na fase que chamo de Anos da Húbris.

Vamos entrar no detalhe de como essas reservas foram construídas. Para tanto, precisamos entender como os dólares são obtidos pelo governo brasileiro.

Como imprimimos reais e não dólares, é preciso que estrangeiros estejam dispostos a comprar os nossos reais com os seus dólares. Isso acontece, basicamente, através de dois canais: receitas correntes e investimentos financeiros.

As receitas correntes de um país (chamada de “conta corrente”) são formadas por três componentes: 1) a balança comercial (o comércio de mercadorias com outros países), 2) a balança de serviços (os serviços que consumimos e fornecemos para outros países) e 3) o pagamento de juros e dividendos.

Já o investimento financeiro é constituído de dois componentes: 1) o Investimento Estrangeiro Direto (chamaremos de IED daqui em diante) e 2) os investimentos em títulos (ações e renda fixa). Em primeiro lugar, vamos ver de onde vieram as reservas observando o comportamento da conta corrente e dos investimentos financeiros no gráfico a seguir:

Observe como os anos de 2007 a 2014 são caracterizados por um grande fluxo de investimentos financeiros (barras laranjas). O fluxo foi tão grande que mais que compensou o déficit em conta corrente até 2012 (barras azuis), fazendo com que sobrasse recursos. Esses recursos (bolinhas brancas) são as reservas. Portanto, o que permitiu construir as reservas foi o fluxo financeiro para o país, principalmente a partir de 2009.

Antes de continuarmos, vamos explorar esta distinção entre conta corrente e investimento financeiro. É importante entender essa diferença, porque nos diz sobre a permanência desses recursos no Brasil. No caso da conta corrente, o dinheiro que entra é nosso. Como foi fruto do comércio, vendemos mercadorias e o dinheiro passa a ser nosso, não precisamos devolvê-lo no futuro. Já o fluxo financeiro não é nosso. Trata-se de um dinheiro “emprestado”. No caso do IED, trata-se de um empréstimo de longo prazo, que será cobrado na forma de juros e dividendos ao longo dos anos, quando não pela venda do empreendimento e repatriação do dinheiro. Veremos adiante que a conta dos juros e dividendos não é pequena. Já o investimento em títulos (ações e renda fixa) pode ser resgatado a qualquer momento. Por isso, é preciso ter muito cuidado ao dizer que podemos usar as reservas para isso ou para aquilo. Na verdade, as reservas são nossas somente se a conta corrente é positiva. Como a nossa conta corrente é negativa, usamos uma parte do fluxo financeiro para pagar esses gastos. Portanto, estamos na verdade em débito. Se, de uma hora para outra, todos os investimentos estrangeiros resolvessem sair do país, não teríamos dólares para pagar a todos, pois usamos uma parte do dinheiro que entrou para pagar o nosso déficit em conta corrente. Por isso, é bom tratar bem os investidores estrangeiros. Vejamos, no gráfico abaixo, o detalhamento desse fluxo financeiro:

Podemos observar que grande parte desses recursos foram Investimentos Estrangeiros Diretos (barras laranjas), ou seja, recursos, em tese, de mais longo prazo para investimentos no país. Digo em tese, porque uma parcela desses recursos entrou como empréstimos intercompanhias, o que poderia ser interpretado como um simples fluxo financeiro. Também tivemos um grande fluxo para a compra de ações (barras amarelas), principalmente em 2007, 2009 e 2010, ano da megacapitalização da Petrobrás.

Por outro lado, a conta corrente brasileira foi negativa em grande parte desse período. Vejamos no gráfico a seguir:

Observe como a conta corrente torna-se positiva somente durante um breve período (de 2003 a 2006), passando a ficar novamente negativa a partir de 2008. O aumento do saldo da balança comercial (barra laranja) é o grande responsável pelo equilíbrio da conta corrente até 2007. A partir de 2010, a conta corrente torna-se bem mais negativa, principalmente porque a balança de serviços (“pobre viajando de avião”) e o pagamento de juros e dividendos começam a cobrar o seu preço. Em outras palavras, o crescimento da renda da população, que começa a demandar serviços do exterior, e o pagamento dos investimentos estrangeiros feitos no passado fazem com que a conta corrente torne-se bastante negativa. No entanto, ainda teríamos um bom fluxo de investimentos estrangeiros para cobrir essa conta, e as reservas permaneceram intactas.

Há, neste ponto, portanto, um grande equívoco, ao relacionar a ascensão da China como potência global, puxando o consumo de commodities, e a constituição das reservas. Sim, há um aumento do saldo positivo da balança comercial neste período. Mas vimos que o grande responsável pela constituição das reservas foi o fluxo financeiro (mais especificamente, o Investimento Estrangeiro Direto). Além disso, como podemos ver no gráfico abaixo, a China vai ganhar importância na balança comercial muitos anos depois da constituição das reservas.

Note que a participação das exportações para a China, de fato, sobe de praticamente zero até o ano 2000, para 5% em 2003, ficando neste patamar até 2007. Ou seja, neste período em que as exportações se elevam, a única região que ganha importância relativa é o Mercosul, que havia perdido muito nos anos anteriores. Na realidade, de maneira geral, as participações das diversas regiões se mantêm mais ou menos constantes durante todo esse período. A China vai ganhar relevância somente a partir do ano de 2009. Mas, como vimos, o saldo da balança comercial está longe de ser brilhante neste período.

Pode-se argumentar que, enquanto é verdade que a China cresce de maneira relevante como parceiro comercial somente após 2009, não é menos verdade que as nossas exportações alcançaram um novo patamar após a ascensão do PT ao poder. Este novo patamar pode ser visto no gráfico abaixo, que divide a balança comercial entre exportações e importações:

De fato, as exportações crescem de algo como US$ 50 bilhões até 2002 para quase US$ 200 bilhões em 2008, atingindo US$ 250 bilhões a partir de 2011. Esse salto permitiu aumentar igualmente as importações, o que significa uma maior abertura da economia brasileira ao mundo, o que costuma ser benéfico para o aumento da renda e da produtividade. É o que chamamos de corrente de comércio, a soma das exportações e importações.

Mas vamos analisar em detalhe a corrente de comércio brasileira no gráfico a seguir:

Quando medimos a corrente de comércio em percentual do PIB, como é a norma para a comparação da abertura comercial entre países, podemos observar que a nossa corrente de comércio cresce de 13% para 21% do PIB ainda no segundo mandato de FHC, e fica oscilando entre este patamar e 24% do PIB até a Grande Crise Financeira, quando cai para baixo de 20% do PIB, oscilando entre 17% e 20% do PIB até o fim do governo PT. Não há realmente nada de excepcional aqui. O aumento da corrente de comércio em dólar reflete o aumento do PIB em dólar, tanto pela valorização do real como pelo próprio crescimento do país neste período.

Portanto, não devemos buscar na soja ou no minério de ferro a explicação do grande montante de reservas internacionais acumulados nesse período. A reservas foram constituídas porque o governo Lula se mostrou confiável durante os anos da Grande Ilusão, a ponto de atrair investimentos estrangeiros, então abundantes no mundo. Tratava-se de um governo de esquerda com políticas macroeconômicas razoáveis, fazendo uma combinação irresistível para este investidor. Realmente uma pena que tenha sido somente uma Grande Ilusão.


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

Segredo de polichinelo

A única vantagem de ser velho é ter vivido o suficiente para não se deixar enganar por grandes novidades que deveriam estar em museus, como dizia Cazuza. A última é a união da FIESP com a Febraban para “descobrir” as causas dos juros altos no Brasil.

Faz-me lembrar a epopeia, na década de 80, para “descobrir” as causas da inflação. Não se tratava, na época como hoje, de algo realmente difícil de descobrir. O dinheiro é uma mercadoria como outra qualquer. Se perde valor com o tempo (inflação) ou se seu preço é alto (juros altos), é preciso buscar no fabricante os motivos pelos quais a mercadoria tem péssima qualidade ou tem custo alto. E quem fabrica o dinheiro de um país?

O Plano Real adotou um mecanismo genial (a URV) para quebrar a inércia inflacionária. Muitos acham que esse foi o principal truque do plano, acabando com a hiperinflação como em uma espécie de passe de mágica. Nada mais falso. O Plano Real funcionou porque trocou uma inflação alta por alguma disciplina fiscal e juros mais altos. O problema é que, quase 30 anos depois, ainda não acabamos de fazer a lição de casa para que a nossa moeda não perca valor no tempo sem que seja preciso colocar os juros nas alturas.

O problema nem é tanto o tamanho da dívida. Países com moedas muito mais estáveis têm dívidas maiores do que a brasileira. O problema é de credibilidade, o que leva os financiadores a exigirem taxas de juros mais altas e prazos mais curtos para rolar a dívida pública. Construímos nosso déficit de credibilidade ao longo das décadas, e é muito difícil reverter no curto prazo. Foram confiscos explícitos e implícitos, calotes explícitos e implícitos, e um histórico de leniência com a inflação alta, mesmo depois do plano Real. A última picareta fincada no pilar da credibilidade foi a mudança casuística na regra do teto de gastos, no ano passado. Seria preciso um trabalho longo e perseverante na direção correta, sem jeitinhos malandros, para que, ao fim do processo, pagássemos taxas de juros mais civilizadas. É preciso reconhecer que nossa situação, hoje, é muito melhor que no início do Plano Real. Não há atalhos para continuarmos a progredir.

Isso quando falamos da taxa básica de juros. Quando se trata dos juros pagos em empréstimos para empresas e indivíduos, devemos acrescentar a este custo básico, já em si alto, os impostos cobrados pelo governo, que tornam caras todas as mercadorias que compramos. E não seria diferente com o dinheiro. Acrescente-se a isso a incerteza própria de um país instável como o Brasil e um sistema judiciário que tende a beneficiar o devedor, e temos um spread maior para compensar o risco de crédito.

Achar que os juros altos são o resultado da ganância dos bancos é o mesmo que atribuir os preços altos no supermercado à ganância dos empresários. Esse tipo de discurso é bom para distrair a atenção do povo da causa última dos preços e dos juros altos. Funcionou na década de 80, quando populares fecharam supermercados, para descobrirem, consternados, que a inflação, mesmo assim, não havia acabado. Hoje, essa história não cola mais, já sabemos quem é o culpado pelo fato de o dinheiro ser uma mercadoria cara. O relatório FIESP/Febraban deverá revelar esse segredo de polichinelo.

Não tem erro

LIQUIDAÇÃO NO TESOURO DIRETO!!!

Você que estava com saudade de ter rendimento de 1% ao mês, seus problemas acabaram! Qualquer título prefixado está pagando acima de 12,50% ao ano! Você agora pode comprar um título que vence em 2030 e garantir mais de 1% ao mês nos próximos 8 anos!

Claro, você precisa torcer para que a inflação fique bem comportada nesse período aí. Mas claro que vai, só temos governos responsáveis, que tratam o orçamento de maneira séria. Não tem erro.

Com um pé no acelerador e o outro no freio

“Não podemos tirar 10 no fiscal e zero no social”. Com essas palavras, o ministro da economia enterrou a disciplina fiscal.

Imagine por um momento que o comunicado do Copom de ontem trouxesse uma frase desse tipo: “Não podemos tirar 10 na inflação e zero no social”. Já imaginou?

Estamos em um carro em que o governo está com um pé no acelerador e o BC está com o outro pé no freio. Quanto mais o governo acelera de um lado, mais o BC precisa apertar o freio do outro, caso contrário, o carro vai entrar acelerado na curva da inflação e capotar. O resultado é um carro instável na pista.

Se o BC tivesse a “consciência social” do nosso ministro da economia, não estaria acelerando a alta dos juros agora. No entanto, Campos Neto e seus companheiros de Copom sabem que o principal programa social é evitar a inflação, que é o imposto mais perverso, pois acaba com a renda dos mais pobres.

Ao abrir mão de “tirar 10” no fiscal, o governo forçou o BC a aumentar mais as taxas de juros, para “tirar 10” na inflação. No final, alguns milhares de empregos deixarão de ser criados por causa da desaceleração adicional da atividade econômica, causada pela subida adicional dos juros. Mas, tudo bem, o auxílio eleit… quer dizer, o auxílio emergencial será pago, dando uma ajuda para os pobres que nem sabem o quanto foram prejudicados para obter essa mesma ajuda. E, de quebra, vai sobrar um dinheirinho para reforçar as emendas parlamentares e o fundo eleitoral, que ninguém é de ferro.

Para que serve a taxa Selic?

Em um país onde o pobre devedor paga taxas de juros de três dígitos no cheque especial e no cartão de crédito, e em que as taxas de empréstimos pessoais podem atingir facilmente 50% ao ano, parece até piada alguém se preocupar com uma taxa de 2%, 4% ou 6% ao ano. Ninguém consegue tomar empréstimo nessa taxa de juros. Então, por que se preocupar? Mais do que isso: pra que serve essa taxa, se os bancos acabam cobrando taxas de juros exorbitantes, independentemente do nível da taxa Selic?

O leme do navio

Já notou como a direção de um navio do tamanho de um transatlântico ou de um petroleiro é determinado por um leme muito menor do que o próprio navio?

Esta é a característica da taxa Selic: apesar de pequena, é ela que define a direção do grande navio da economia. A taxa Selic, que é usada pelo Banco Central para remunerar o caixa dos bancos, é o instrumento usado pelo BC para controlar a inflação. Vamos ver como isso funciona.

As correias de transmissão da economia

Apesar de termos usado a figura do leme inicialmente, a melhor ilustração de como a Selic trabalha é através das correias de transmissão.

A Selic é o motor, e transmite o seu movimento para as diversas partes da economia através de correias de transmissão. São cinco essas correias: taxa de juros, taxa de câmbio, crédito, preços dos ativos e expectativas de inflação. Vejamos como cada uma delas transmite a força da Selic, com o objetivo de diminuir a inflação.

Taxa de juros

Aqui, trata-se da remuneração do capital investido. Um empresário, ao tomar uma decisão de investimento, olha para o rendimento dos títulos públicos e pensa: “huuum, será que vale a pena investir nesse projeto ou pegar o dinheiro e comprar títulos públicos?” O mesmo raciocínio faz o investidor em ações ou em qualquer outra coisa que não sejam os títulos públicos.

A remuneração dos títulos públicos depende, em grande parte, do nível da taxa Selic. Mesmo os títulos prefixados têm como referência a taxa básica de juros. É o que chamamos de “curva de juros”. No gráfico abaixo, podemos ver a curva de juros em dois dias diferentes: em 17/03/2021, último dia em que a Selic estava em 2% (lembra?), e em 09/08/2021, momento em que começo a escrever este artigo.

Observe como a taxa Selic subiu de 2% para 5,25% entre essas duas datas, levando a remuneração dos títulos públicos toda para cima. A taxa Selic serve como uma referência para a remuneração de todos esses títulos, definindo o que chamamos, em investimentos, de “custo de oportunidade” para os investidores. Quanto maior a taxa Selic, melhor será a remuneração dos títulos públicos e menos atrativos serão os investimentos produtivos, diminuindo a atividade econômica e, consequentemente, a inflação.

Taxa de câmbio

A taxa de câmbio influencia a inflação através dos preços dos produtos importados. E temos uma parte relevante dos produtos que compramos com ao menos um componente importado, ou mesmo que depende de algum serviço importado. Então, se a nossa moeda, o real, se valoriza em relação ao dólar, fica mais barato comprar coisas do exterior, diminuindo a inflação. Se, pelo contrário, o real se desvaloriza em relação ao dólar, as coisas importadas ficam mais caras.

E como a taxa Selic influencia a taxa de câmbio? Simples: quanto maior a taxa de juros, maior a atração por capitais externos. Estes dólares, para entrarem no país, precisam ser trocados por reais. Então, temos uma busca por reais, que se valorizam em relação ao dólar. E, como vimos, se o real se valoriza, as coisas importadas ficam mais baratas, diminuindo a inflação.

Por outro lado, se a taxa Selic fica mais baixa, os investimentos locais perdem a atratividade. Os dólares, então, saem do país. Para isso, é preciso vender reais para comprar dólares. A venda de reais faz com que a nossa moeda se desvalorize. E, como vimos, quando o real se desvaloriza, os produtos importados ficam mais caros, pressionando a inflação para cima. É assim que a taxa Selic influencia a inflação via a taxa de câmbio.

O esquema abaixo resume o que falamos:

Crédito

O canal do crédito é o mais conhecido: afinal, quanto maior a taxa de juros, menor a chance de alguém querer tomar um empréstimo, o que diminui o consumo e, por consequência, a inflação.

No entanto, como dissemos no início desse artigo, as taxas de juros cobradas são tão altas, mas tão altas, que não parece que um aumento de alguns pontos percentuais na taxa Selic possa fazer grande diferença.

Isso é tão mais verdade quanto maior for o custo do empréstimo e tão menos verdade quanto menor for o custo do empréstimo. Por exemplo, as grandes empresas podem contar com taxas de juros muito menores do que nós, pobres mortais. Para elas, uma taxa Selic maior faz sim diferença no momento de tomar um empréstimo. O financiamento imobiliário é outro tipo de crédito que tem uma grande influência da taxa Selic: por ser uma taxa de juros relativamente baixa, costuma acompanhar a Selic de perto. E, quando as taxas do financiamento imobiliário sobem, fica mais difícil vender imóveis, desacelerando este setor da economia.

Então, a taxa Selic vai tanto mais influenciar o crédito quanto mais existirem modalidades de empréstimo que são sensíveis à taxa básica de juros. Como vimos, taxas do cheque especial ou do cartão de crédito são pouco sensíveis. Portanto, as pessoas não vão deixar de tomar esses empréstimos porque a taxa Selic subiu. O mesmo ocorre com certas linhas de crédito subsidiadas do BNDES, em que a taxa não acompanha a Selic. Neste caso, o canal do crédito está entupido, a mudança da taxa Selic não tem o efeito pretendido. O resultado é que mudanças na taxa básica de juros vão influenciar uma porção menor do mercado de crédito e, portanto, será necessário subir mais a taxa Selic do que seria preciso se todo o mercado de crédito dependesse da taxa básica de juros.

Preço dos ativos

Quando a taxa Selic sobe, os preços dos títulos de renda fixa prefixada caem, pelo efeito da marcação a mercado. Os preços das ações na bolsa tendem também a sofrer, porque o custo de capital das empresas fica mais caro. Enfim, de um modo ou de outro, os detentores desses ativos ficam mais pobres. Este é o chamado “efeito riqueza”, que seria mais bem denominado se recebesse o nome de “efeito pobreza”. Ficando mais pobres, esses detentores têm menos propensão ao consumo, desacelerando a atividade econômica e a inflação.

No polo oposto, se a taxa Selic cai, os ativos se valorizam, criando uma sensação de riqueza para os seus detentores, que se animam a gastar mais, impulsionando a atividade econômica e a inflação.

É assim que os “preços dos ativos” servem como canal de transmissão da política monetária para a atividade econômica.

Expectativas de inflação

Por fim, o quinto canal de transmissão da política monetária são as próprias expectativas para a inflação futura. Quando a taxa Selic sobe, os agentes econômicos já projetam uma desaceleração da atividade econômica através dos quatro canais vistos acima. Essa projeção atua sobre a própria inflação presente. Esta é a mágica do sistema de metas de inflação.

O Sistema de Metas de Inflação

No início, era o caos. A inflação no Brasil era um pesadelo sem fim, e as pessoas não sabiam realmente o que estava acontecendo. Ou melhor, sabiam, mas olhavam para o outro lado. Tentavam controlar os preços como quem quebra o termômetro para debelar uma febre. Os planos de congelamento de preços se sucediam, e a inflação sempre voltava com mais força depois que os preços eram liberados.

Até que, finalmente, chegou o Plano Real. Como que por mágica, a inflação desapareceu. A mágica, no entanto, era manjada: atrelar a moeda local ao dólar, uma moeda que sofre bem menos com a inflação. Não era esse o plano inicial, mas passou a ser depois da crise do México, no início de 1995. O Banco Central administrava o câmbio, permitindo desvalorizações controladas, de modo a não impactar a inflação. Funcionou até acabarem as reservas internacionais. No início de 1999, o real não suportou o ataque especulativo e o governo foi obrigado a deixar a moeda flutuar. E agora, o que fazer?

Foi então que se criou o arcabouço que vigora até hoje: o sistema de metas de inflação. Esse sistema, que já havia sido implementado com sucesso em países como Reino Unido, Suécia e Nova Zelândia, parte do pressuposto de que a inflação é um fenômeno a um só tempo monetário e psicológico. Monetário porque quanto mais moeda disponível na economia sem lastro em produção, maior será a inflação. E psicológico (ou de expectativas), porque os agentes econômicos tendem a perpetuar movimentos de aumentos de preços com base em suas expectativas de inflação futura.

A âncora da inflação no sistema de metas é a confiança no Banco Central. O instrumento é a taxa básica de juros, que afeta a inflação através dos cinco canais vistos acima. O Banco Central, através da determinação da taxa Selic, e da sua própria comunicação com o mercado, influencia as expectativas dos agentes econômicos em relação à inflação futura. Se o Banco Central é crível, ou seja, se constrói uma reputação de combate à inflação ao longo dos anos, não precisará subir tanto a Selic para mostrar a sua intenção e convencer os agentes econômicos. E, vice-versa, se o Banco Central constrói uma reputação de leniência em relação à inflação, fica muito mais caro combatê-la, pois, no final, será preciso subir a taxa básica de juros muito mais do que seria necessário se o BC fosse crível.

Claro que tudo isso funciona se o risco associado à dívida pública não explode na cara do BC. Neste caso, a taxa de juros exigida pelos credores da dívida sobe muito, o que não tem nada a ver com a inflação. Ou melhor, acaba tendo, pois excesso de dívida pública provoca inflação, no fim do dia. O BC controla aquela inflação cíclica, causada pelos ciclos próprios da atividade econômica. Uma inflação estrutural, causada pelo excesso de gastos do governo, não tem Banco Central que dê jeito.

O sistema de metas de inflação, em conjunto com uma série de reformas que nos permitiram tornar crível o controle da dívida pública, nos brindou com o mais longevo período de inflação baixa da história do Brasil contemporâneo.

Breve histórico da inflação no Brasil

Para medir a inflação brasileira, vamos usar o índice de inflação da cidade de São Paulo calculada pela FIPE, que possui histórico desde 1940. Antes disso, não há medidas confiáveis de inflação.

Na tabela abaixo, vamos listar todas as moedas desde o cruzeiro, criado por Getúlio Vargas em novembro de 1942. Consideraremos uma nova moeda somente quando tenha havido uma reforma monetária que cortou zeros. Nesta tabela, listamos as moedas, seu tempo de vida, a inflação anual média durante esse período e a inflação acumulada, também no período de vida da moeda.

MoedaInícioFimDuraçãoInflação anual médiaInflação acumulada
CruzeiroNov/42Jan/6724 anos e 3 meses28,4%40.275%
Cruzeiro NovoFev/67Fev/8619 anos e 1 mês55,5%599.006%
CruzadoMar/86Jan/892 anos e 11 meses351%7.974%
Cruzado NovoFev/89Mar/901 ano e 2 meses3.735%6.942%
CruzeiroAbr/90Jul/933 anos e 4 meses754%127.144%
Cruzeiro RealAgo/93Jun/9411 meses5.531%3.924%
RealJul/94Jul/2127 anos e 1 mês (and counting…)6,7%481%

Salta aos olhos a imensa diferença entre o Real e as outras moedas. O sistema de metas de inflação e a disciplina fiscal foram os responsáveis por esse pequeno milagre. Espero, sinceramente, que saibamos, como sociedade, preservar essa grande conquista.

Identificar a natureza dos precatórios é o de menos

No dia 31/12/2018, último dia do governo Temer, o título prefixado com vencimento em 2027 estava pagando 9,18% ao ano. Ontem, o mesmo título fechou em 9,48% ao ano.

Este título prefixado é suficientemente longo para podermos analisá-lo como uma proxy do humor geral dos credores da dívida pública. Essa taxa de juros mistura a expectativa de inflação no longo prazo e a probabilidade de algum tipo de calote (lembrando que a inflação é um tipo de calote). Quanto maior essa taxa, maior é a incerteza dos investidores em relação a essas questões.

Antes de analisar o impacto dessas discussões a respeito dos precatórios e teto de gastos (destaco a fala do deputado Fernando Bezerra abaixo), vamos a um breve histórico das taxas de juros desse título prefixado com vencimento em 2027.

No dia 15/01/2016, primeiro dia de negociação desse título, a taxa era de 16,36% ao ano. Estávamos em meio ao caos do fim do governo Dilma, sem nenhuma garantia de que a dívida pública estava sob controle, dado que o governo estava produzindo déficits fiscais crescentes. Essa taxa de juros veio caindo ao longo de 2016, primeiro com a perspectiva do impeachment e, depois, com a aprovação da lei do teto de gastos. No dia do impeachment na Câmara, a taxa do prefixado 2027 já tinha caído para 12,90% ao ano e, no dia da aprovação da lei do teto de gastos em segundo turno no Senado, a taxa do mesmo título chegou a 11,96%.

A aplicação disciplinada da lei do teto de gastos, outras reformas ao longo do governo Temer e um banco central dedicado a combater a inflação permitiram que a taxa desse título recuasse, nos dois anos seguintes, para os 9,18% ao ano mencionados no início desse post.

O governo Bolsonaro, com suas promessas de políticas pró disciplina fiscal e a aprovação da reforma da Previdência, viu a taxa do janeiro 2027 recuar até a mínima de 5,87% ao ano no dia 03/08 do ano passado, ou seja, há um ano. A partir de então, vimos a escalada até atingir 9,48% ao ano ontem. Esse movimento comeu todos os ganhos da primeira metade do governo Bolsonaro e voltamos ao ponto pré-reforma da Previdência. O que aconteceu?

Aqui entra essa questão dos precatórios e do teto de gastos. Na verdade, aqui entra a resistência a fazer a reforma do Estado necessária para fazer cabê-lo dentro do orçamento.

Há um ano, estávamos discutindo a reforma administrativa, o passo seguinte após a aprovação da reforma da previdência. Nada avançou. Desde então, sempre que surge alguma necessidade adicional de gastos (e os precatórios são apenas o mais recente, mas não o último), começa-se a discutir formas, digamos, criativas para acomodar os gastos adicionais. Foi o que aconteceu no início do ano com as emendas parlamentares, é o que está acontecendo agora com o aumento do Bolsa Família e, para agregar à confusão, chegou o meteoro dos precatórios, para usar a linguagem do ministro da economia.

A criatividade não tem limites. Guedes propõe o parcelamento dos precatórios, usando a frase de todo caloteiro, “devo não nego, pago quando puder”. Agora, o deputado Bezerra propõe algo ainda mais criativo: simplesmente tirar o pagamento dos precatórios do limite do teto de gastos.

Aqui, trata-se de escolher entre morrer na frigideira ou no forno. Parcelar a dívida é somente empurrar o problema com a barriga. O governo está parcelando a dívida do cartão de crédito como se isso resolvesse o problema. Não, o problema só vai crescer no futuro. Além disso, dá até arrepios ao lembrar que o governo não deve somente para os detentores de precatórios, mas também para os detentores de dívida pública. Se está parcelando a dívida para uns, por que não para os outros…

As situações só não são idênticas porque, hoje, os precatórios estão sob o teto de gastos, enquanto os juros e a rolagem da dívida pública não estão. Então, para pagar a dívida, o governo simplesmente emite mais dívida, não tem limite para isso.

Aí é que entra a proposta de Fernando Bezerra, de tirar o pagamento dos precatórios do teto de gastos. Ele faz o paralelo com a dívida pública: afinal, se a dívida pública não está sob o teto, por que os precatórios deveriam estar? Não é tudo dívida? Então…

Não vou aqui nem entrar no mérito das diferenças entre uma e outra. O problema é começar a fazer interpretações “livres” do que seja dívida, e começar a ter ideia de tirar coisas de debaixo do teto. Por exemplo, o Bolsa Família serve para pagar uma “dívida social”, tão ou mais importante quanto a dívida com os investidores. Se não há limite para pagar a dívida com os credores, por que deveria haver para pagar a dívida com os pobres e desvalidos da sociedade? O governo tem uma dívida contratual com os aposentados e com os funcionários públicos. Por que o contrato com os credores da dívida pública é mais importante do que o contrato com os aposentados e com os funcionários públicos? E assim vamos. Não é à toa que muita gente é contra o teto de gastos: trata-se de uma grande “injustiça”.

O problema é que o Brasil, hoje, produz déficit fiscal de mais ou menos R$ 140 bilhões. No momento em que o governo resolvesse não pagar os credores do dívida, este déficit precisaria ser resolvido no segundo seguinte, pois não haveria mais ninguém disposto a financiá-lo. Dinheiro para pagar auxílios? Pode buscar no orçamento, não teria mais ninguém disposto a bancar. Só sobrariam duas alternativas: aumentar os impostos ou cortar gastos. Não seria mais necessário um teto formal de gastos: o governo só poderia gastar o tanto que arrecadasse, por construção. O teto de gastos seria, assim, natural. A lei do teto de gastos só existe hoje porque o governo pode se endividar. Se não pudesse, o teto seria dispensável.

As taxas de juros subiram de um ano para cá porque os credores do governo perceberam que o governo brasileiro (as 3 esferas do governo) não está disposto a viver dentro do teto de gastos de maneira séria. O resultado é que fica cada vez mais caro rolar a dívida pública, piorando a situação. Um círculo vicioso.

A solução, por óbvio, não depende só do presidente, mas em um regime presidencialista, é ele que lidera (ou deveria liderar). Bolsonaro já demonstrou, em mais de uma ocasião, que não quer mexer nesse vespeiro. Quem sabe a partir de 2023 tenhamos um presidente que entenda o problema e lidere os esforços para vivermos dentro das possibilidades do orçamento, sem chicanas.

A solução já existe

Prevaleceu o bom senso, e Maia decidiu engavetar o projeto que tabela os juros do cheque especial e do cartão de crédito. Mas o presidente da Câmara exige dos bancos uma “solução” para o problema.

Ocorre que essa solução já existe: chama-se crédito pessoal. Qualquer um pode substituir o saldo do rotativo do cartão ou do cheque especial por uma linha de crédito pessoal, que normalmente conta com taxas muito mais baixas. Aliás, a regra do rotativo do cartão já conta com uma linha de crédito pessoal embutida: se depois de 30 dias o cliente não saiu do rotativo, o banco é obrigado a oferecer um parcelamento daquele saldo.

Mas (e tem sempre um mas), para grande parte das pessoas que rodam sua vida no cheque especial e no rotativo do cartão, o problema está no déficit de seu orçamento pessoal. Depois de renegociar a dívida, essas pessoas voltam a usar o cheque especial e o rotativo, simplesmente porque não conseguem controlar seus gastos.

A diferença fundamental entre o cheque especial/rotativo do cartão e o empréstimo pessoal está na exigência, por parte deste último, de pagamentos periódicos. O crédito pessoal tem dia para terminar, enquanto o cheque especial e o rotativo podem ser rolados ad eternum sem que o nome do devedor vá para o Serasa. Por isso, essas linhas são mais caras, é muito mais difícil o banco reaver o dinheiro.

No limite, o problema dos juros do cheque especial e do rotativo acabariam com o fim desses produtos. Seria um tombo na receita dos bancos, mas serviria como um poderoso elemento disciplinador para a população: as pessoas seriam obrigadas a rever suas despesas, não seria tão fácil fazer dívidas. Tabelar os juros seria uma forma de fazer isso, pois os bancos deixariam de oferecer esses produtos ao preço tabelado. Na verdade, é até uma pena que esse projeto não vá para frente.

A credibilidade do Banco Central

2,25%. A menor taxa de juros da história do Brasil.

Dilma Rousseff, na sua guerra declarada aos fundamentos econômicos, certa vez expressou seu desejo de ver uma taxa básica de juros de 2% ao ano. Taxa real, que se frise, acima da inflação. Pois bem, a taxa real de juros hoje é próxima de zero.- Ah, mas com essa brutal recessão é fácil, dirão os desenvolvimentistas.

Pois é.

Dilma foi apeada do governo em abril de 2016, depois de provocar uma recessão de mesma magnitude da que estamos vivendo hoje, cerca de 7,5% do PIB. Curiosamente, aquela recessão deixou um IPCA de 9,3% e uma Selic de 14,25% (números de abril de 2016). Pelo visto, somente a recessão do coronavírus tem o dom de gerar inflação e taxas de juros baixas. A recessão do dilmavírus gera inflação e taxas de juros na lua.

Em um sistema de metas de inflação, conta muito a credibilidade do BC e, em última instância, do governo. Credibilidade esta que foi destruída durante o governo Dilma. Então, não atribua somente à recessão as taxas de juros mais baixas da história. O colapso da atividade econômica é uma condição necessária, mas não suficiente, para este nível de taxas de juros. Sem credibilidade, as taxas de juros serão sempre mais altas ao longo do tempo. É o preço cobrado pelos credores de um devedor pouco confiável.

Talk is cheap

Ainda não vi nenhuma montadora reduzindo o preço dos seus veículos, vendendo com prejuízo, em “solidariedade” aos seus clientes. Talk is cheap, dizem os americanos.

Existe uma forma muito simples de solucionar esse problema: basta que o governo assuma o risco do calote. Os bancos, assim, serviriam apenas como meros conduítes dos empréstimos às empresas, podendo cobrar taxas sem o spread para compensar o risco do calote.

Mas daí, adivinha, os calotes seriam pagos por todos nós, em forma de mais dívida do governo e maior carga tributária. Nada contra, em momentos de emergência é preciso fazer isso mesmo. Mas exigir que os bancos assumam esse risco não parece ser o mais prudente.

A natureza da atividade bancária

Editorial do Estadão destaca a lentidão do governo e Congresso em responder às necessidades econômicas dos mais atingidos pela quarentena. E aproveita para dar uma estocada nos bancos, que não estariam fazendo nada para mitigar o problema. Provavelmente querem dizer que os bancos deveriam colocar a mão no bolso, engordado por anos de lucros bilionários, para agora ajudar os mais necessitados.

Bem, esse discurso é de quem não conhece a natureza da atividade bancária.

É preciso ter em mente duas características dos bancos: 1) são intermediários entre quem tem dinheiro e quem precisa de dinheiro e 2) trabalham alavancados, o que significa que têm uma parcela de capital próprio, mas o grosso de seus empréstimos é feito com dinheiro dos outros. Essa alavancagem é limitada pelo Banco Central, ou seja, os bancos não podem emprestar quanto dinheiro quiserem, mas apenas um certo número de vezes o seu capital próprio.

Pois bem. É líquido e certo que, no ambiente recessivo que estamos entrando, o calote vai aumentar. Se os bancos não se protegerem aumentando a taxa de juros dos empréstimos, esses calotes começarão a comer o seu capital próprio, limitando a sua capacidade de fazer novos empréstimos, pois o limite de alavancagem não permite. Isso só pioraria a situação.

Uma outra forma de baixar os juros seria os investidores (a outra ponta dos empréstimos) abrirem mão de seus rendimentos e até de parte do seu principal. Não vi nenhuma cobrança do editorialista a esse respeito, mesmo porque é sempre mais fácil pedir sacrifícios dos outros.

Alguns poderão insistir que os bancos geram lucros bilionários, e precisam dar a sua contribuição. Pode ser. Só é preciso calibrar bem essa contribuição. Se você acha que a desaceleração da economia está forte, experimente acrescentar uma crise bancária. O que estamos vivendo parecerá um passeio no parque.