Estive em Buenos Aires pela última vez em janeiro de 2014. Lembro que, na época, estava em discussão recolocar as catracas nas estações de trem metropolitano. Quer dizer, as catracas existiam, mas estavam deterioradas por falta de uso. Afinal, há muitos anos os trens em Buenos Aires eram de graça. Obviamente, a discussão sobre a volta da cobrança estava caliente.
Para ir a Tigres, precisávamos tomar um trem até uma determinada estação, de onde tomaríamos outro trem, turístico, até a cidade. O primeiro trem era “gratuito”, enquanto o segundo era pago.
Sem exagero: a viagem no primeiro trem foi aterrorizante. Totalmente deteriorado, não sei como aquilo tinha autorização para rodar. Fora que demorou uma eternidade para chegar.
Já tive oportunidade de escrever sobre a experiência do teleférico do Alemão, também “gratuito” e totalmente sucateado, a ponto de interromper o serviço.
A “gratuidade” dos serviços públicos parece algo simples: o governo arrecada impostos e financia os investimentos necessários e a manutenção do serviço. Por que, então, invariavelmente, a coisa não funciona?
Vamos separar o problema em duas partes: a primeira é o financiamento, a segunda é a gestão.
O financiamento do serviço público é um problema de funding sustentável ao longo do tempo. O exemplo do teleférico do Alemão é clássico: o financiamento inicial foi suficiente para construir e manter o serviço durante um certo tempo. Mas outras prioridades foram comendo as verbas, ao mesmo tempo em que as receitas minguaram. Resultado: faltou dinheiro para manter o serviço. Aposto que este foi também o problema com os trens “gratuitos” de Buenos Aires.
O segundo problema tem mais a ver com serviços assumidos integralmente pelo Estado. É o caso da saúde (SUS) e educação públicas. À falta crônica de verbas, junta-se a incompetência administrativa e/ou os interesses corporativos dos funcionários públicos. Não seria, em princípio, o caso do transporte público, que continuaria sendo administrado pelas empresas privadas, a não ser que se crie uma grande estatal de transportes públicos. Não quero nem pensar nessa possibilidade.
Enfim, se a tarifa zero vingar, será uma medida recebida com banda e fanfarra. As consequências, como diria o conselheiro Acácio, virão depois.
Vimos, ao longo dos episódios anteriores, que o governo do PT provocou uma verdadeira destruição de riqueza com suas políticas sempre bem-intencionadas, mas erradas conceitualmente ou simplesmente terrivelmente mal executadas. É difícil resumir tudo, são muitas facetas diferentes. Mas, para escolher um episódio final, um que represente o conjunto da obra, lembrei-me de um post antigo, em que comento a saga do Teleférico do Alemão. O post teve como base reportagem do Estadão de abril de 2021. Este é, em minha opinião, o extrato concentrado do que significou o governo do PT para a economia brasileira. O post vai reproduzido abaixo.
Existem símbolos que retratam uma era. Também existem símbolos que retratam as consequências de um certo tipo de mentalidade. Quando um símbolo representa as duas coisas, estamos diante de algo poderoso.
O teleférico do Alemão vai completar 11 anos em julho. Está fechado, no entanto, desde o fim das Olimpíadas do Rio. Há 6 anos, portanto.
A obra era a face social do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, um conjunto de investimentos públicos empacotado em uma campanha de marketing. O Brasil estava na crista da onda, o dinheiro abundava e gastávamos como se não houvesse amanhã. Dilma foi eleita em 2010 como a mãe do PAC.
Em seu discurso de inauguração, Dilma lembrou de seu padrinho e se emocionou. Disse que Lula pensou em tudo aquilo com muito amor e carinho. Era a época do Estado-Mãe, que não fica preso a planilhas de despesas, e investe o que for preciso para tornarem todos felizes.
Todos felizes. Inclusive os que usaram a obra para cobrar faturas de serviços prestados, como a Odebrecht, que foi, coincidentemente, a empreiteira contratada. Dos que aparecem na foto de dezembro de 2010, quando Lula visita a obra, somente o atual prefeito do Rio, Eduardo Paes, não foi preso.
Mas esse é o detalhe menos importante dessa história. O ponto relevante aqui é o gasto de recursos públicos em obras inviáveis economicamente. No caso, R$ 210 milhões em dinheiro de 2011. Inviável porque qualquer obra de infraestrutura necessita de manutenção. Não adianta só construir e inaugurar. É preciso prever a manutenção. Caso contrário, a deterioração vai levar inexoravelmente ao sucateamento. Essa é a realidade, por mais amor e carinho que se possa colocar em uma obra.
O financiamento da manutenção pode ocorrer basicamente de três formas: governo, usuários e patrocínio. O transporte público nas grandes cidades por exemplo, é financiado por um mix de governo (subsídios) e usuários. No caso do teleférico, o governo pagava tudo. Só que o dinheiro acabou.
Quer dizer, o dinheiro não acabou. Na verdade, o dinheiro nunca existiu. Sacamos adiantado o dinheiro do pré-sal e de um crescimento econômico que achávamos eterno. Contratamos gastos que se tornaram direitos perpétuos, como o aumento da folha do funcionalismo e suas respectivas aposentadorias. Quando o dinheiro que era para estar ali não estava, acabou sobrando para o teleférico. Este é o símbolo de uma era.
Mas o teleférico do Alemão é também o símbolo de uma mentalidade. A viagem era “de graça” para os moradores.
Papai Lula e Mamãe Dilma deram de presente o Teleférico para os seus filhos necessitados. No entanto, sabemos que não existe nada de graça. O projeto do teleférico deveria ter sido precedido de um estudo de viabilidade econômica: qual deveria ser o preço da passagem para viabilizar a sua manutenção? Pergunta básica, mas que certamente não foi feita na festa do PAC. Isso é coisa de quem não tem amor e carinho e se prende a planilhas.
Nada contra a que o Estado financie 100% da obra e da sua posterior manutenção. Desde que haja uma previsão orçamentária que impeça a descontinuidade do serviço. Imagine, por exemplo, parar o sistema de ônibus de uma cidade porque “acabou o dinheiro”. Quando isso acontece, se aumenta o preço da passagem de ônibus e ponto final.
A reportagem diz que a lotação que faz o mesmo percurso cobra R$3.
Será que, com esse preço, o teleférico é viável economicamente? Se não for, o governo poderia subsidiar o restante? Essas perguntas são básicas, mas faz 6 anos que o teleférico “de graça” está parado. Está tudo certo: os moradores não pagam e também não recebem o serviço.
Aqui terminava o post. Em março deste ano, reportagem do Globo informava que o teleférico será revitalizado. Serão dois anos de obras e R$ 170 milhões investidos. Lembrando que foram R$ 210 milhões investidos em 2011, o que significa mais ou menos R$ 420 milhões em dinheiro de hoje. Ou seja, serão investidos o equivalente a 40% do que foi gasto lá atrás para reconstruir o sistema. Depois perguntam em qual ralo se esvai o dinheiro público…
Termino esta série com um trecho da entrevista do ex-banqueiro central dos EUA, Paul Volcker, publicada alguns dias depois de termos recebido o grau de investimento por parte da S&P, em maio de 2008.
Sua fé nos brasileiros é comovente e exemplar. Uma pena que os anos seguintes tenham contrariado de maneira tão espetacular a sua expectativa. Catorze anos depois da entrevista de Paul Volcker, ainda estamos à procura de “pessoas inteligentes que sabem que precisam ser responsáveis”.
Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT: