Duas ironias e uma tragédia

Essa história contém duas ironias e uma tragédia.

Ironia 1: o cara virou uber porque o partido que defende o direito dos ubers deu calote.

Ironia 2: o presidente do diretório de SC, que foi o que deu calote, é também presidente do SEBRAE, aquela entidade governamental de apoio às pequenas empresas, como a produtora que fechou por causa do calote do seu diretório.

A tragédia: 13 anos depois do evento, a Justiça ainda não encerrou o caso. Há um ano tenta “encontrar” o presidente do SEBRAE para intimá-lo, sem sucesso. Este é o ambiente de negócios no Brasil. Não tem risco de dar certo.

O fim da precarização

A solução para a precarização das condições de trabalho dos motoristas de Uber está à vista: os carros autônomos livrarão esses trabalhadores de suas longas jornadas de trabalho e ausência de direitos sociais. Em seguida, serão os entregadores a serem libertados de seu jugo, com a adoção de drones de entrega.

Motoristas e entregadores poderão, assim, buscar empregos dignos, com jornadas de trabalho humanas e muitos direitos sociais assegurados.

Os trade-offs das escolhas econômicas

Nada como uma pesquisa bem feita.

Imagine que alguma entidade interessada em emplacar a obrigatoriedade da CLT encomendasse uma pesquisa junto aos motoristas e entregadores de aplicativos. A pergunta poderia ser, por exemplo: “você gostaria de ter mais direitos sociais, como férias, 13o e aposentadoria”? A resposta, a não ser que a pessoa fosse masoquista, deveria ser um sonoro SIM. O problema, como sabemos, é que, em qualquer decisão econômica, temos trade offs. Se o trade off não é explicitado na pergunta, fica parecendo um almoço de graça. E quem não quer um almoço de graça, não é mesmo?

Isso me faz lembrar as enquetes sobre privatização. A pergunta pode ser “você é a favor de entregar o patrimônio nacional para grupos que exploram o lucro?” ou “você gostaria que estatais fossem vendidas e o dinheiro utilizado para saúde e educação?”. A mesma pergunta, formulada de maneira diferente, resultará em respostas completamente diferentes.

Neste caso, Uber e IFood foram expertos, e encomendaram uma pesquisa com as perguntas “certas”. No caso, a pergunta sobre CLT provavelmente foi algo na linha “você gostaria de migrar para a CLT mesmo que isso diminuísse sua autonomia de horários e flexibilidade para trabalhar para vários aplicativos?”. 75% responderam que não. A pergunta foi correta, porque apresentou o trade-off da escolha. Da mesma forma, 90% aprovam “novos direitos” (claro!), desde que “não interfiram na flexibilidade”.

Lula, Luiz Marinho e os sindicalistas do PT, já há muitas décadas livres de terem que ganhar a vida sob a CLT, afirmam que o trabalho dos motoristas e entregadores de aplicativo se assemelha “à escravidão”, pois não tem os direitos previstos na norma. O que essa pesquisa mostra é que os motoristas e entregadores, quando postos diante da escolha “direitos x autonomia”, preferem a autonomia. Para desgosto dos sindicalistas e intelectuais do PT, que certamente sabem o que é melhor para o trabalhador.

Desincentivos econômicos

Tenho um colega de trabalho (vou chamá-lo de Arturo, nome fictício) que é early adopter de novas tecnologias. Ainda mais quando prometem ser mais baratas do que as velhas tecnologias. Por isso, não resistiu à tentação de instalar o novo app de compartilhamento de transporte da Prefeitura de São Paulo, o MobizapSP (vou chamar de Mobi daqui em diante, só para facilitar). Tive oportunidade de escrever a respeito em um longo post alguns dias atrás.

Antes de contar a experiência do Arturo, devo dizer que também instalei o app. Foi uma experiência. Só não tive que informar o tamanho do meu calçado, mas foi quase. O número de perguntas quase me fez desistir. Mas fui paciente (e confiante na Política de Proteção de Dados da empresa), e cheguei ao fim. Pude, finalmente, verificar a usabilidade do app. Não tenho palavras. Por isso, só vou reproduzir uma avaliação que está na loja da Apple: “Parece um trabalho de faculdade feito por meia dúzia de amadores”.

Mas meu colega não se intimidou com essas dificuldades menores. Na quinta-feira passada, dia de greve no metrô, tentou chamar um Mobi. Um motorista aceitou mas, em seguida, cancelou. Não tendo mais tempo para continuar tentando, desistiu. Detalhe: quando o motorista aceita, o app já cobra o cartão de crédito. Quando o motorista desiste, o app estorna o lançamento. O Uber e a 99, como sabemos, só cobra quando se chega ao destino.

Ontem, segunda-feira, meu colega resolveu tentar novamente. Sorte! O motorista aceitou e não cancelou! O problema é que o app não permite saber onde está o motorista, e também não dá uma previsão de quando ele chega. Arturo, que não se dá por vencido facilmente, esperou pacientemente. E não é que o motorista chegou mesmo! Foram “apenas” 24 minutos de espera, no escuro, sem informação alguma.

Antes de continuar, vale mencionar que a corrida solicitada teria o preço de R$ 18,14. A mesma corrida, pelo Uber X, estava em R$ 39,93. Tarifa dinâmica, beibe! No Mobi não tem nada disso, aqui é a mesma tarifa sempre, faça sol, faça temporal, com greve ou sem greve de metrô. Inegavelmente, Arturo estava bem satisfeito de poder economizar essa grana.

Entrando no veículo, Arturo logo perguntou ao motorista se era a primeira vez que usava o app. Sim, era. O motorista, assim como meu colega, estava testando o serviço. Tinha deixado ligado o dia inteiro, e aquela tinha sido a primeira chamada do dia. O motorista, seu Evaristo (nome fictício), disse que o app não fornece o endereço de quem pediu o carro, só mostra um bonequinho. “Se passar sem querer, já era!”, foi a conclusão do seu Evaristo. Meu colega perguntou se ele tinha visto a mensagem do chat (Arturo tinha mandado uma mensagem perguntando se o motorista estava a caminho). “Não, não vi”. Ao contrário do Uber, o Mobi não mostra para o motorista as mensagens quando chegam, é preciso que o motorista abra o chat… Além disso, o app não mostra quanto tempo falta para chegar ao destino.

O percurso todo levou 23 minutos. Considerando o tempo entre atender ao chamado e o final da corrida, foram 47 minutos. O motorista levou, em 47 minutos, R$ 18,14 para casa (sim, esse foi o valor que apareceu para o meu colega, mas ele descobriu, no final, que esse é o valor do motorista. A cobrança foi de R$ 20,37. Ou seja, para saber o valor de sua corrida, precisa dividir o valor que aparece por 0,89. Bizarro).

Voltemos. Foram R$ 18,14 por 47 minutos. Considerando que, no anda e para do trânsito, foram uns 2 litros de gasolina, líquido sobraram uns R$ 8. Obviamente, por mais que a comissão do Uber seja maior, em horários de pico não tem comparação, a remuneração do motorista é maior. Portanto, o Mobi não tem tarifa dinâmica, mas também não vai ter motorista aceitando corrida em horário de pico. Já é difícil com Uber, imagine com um app que paga quase zero.

Em períodos normais, as tarifas se igualam, e então os motoristas irão aceitar mais corridas pelo Mobi, por que a comissão do app é menor. Mas aí, entra a usabilidade. Entre duas tarifas semelhantes, os usuários vão preferir usar o Uber, que tem uma experiência de usuário muito melhor. Então, temos praticamente um conjunto vazio: em horários de pico, os motoristas preferem o Uber; em períodos normais, os usuários preferem o Uber.

Fico cá imaginando a quantidade monstruosa de dinheiro que será necessário para desenvolver algo minimamente semelhante ao Uber ou 99, com anos de desenvolvimento acumulado. O consórcio que ganhou a licitação vai precisar fazer várias rodadas de capital para manter o negócio em pé. Haja investidor-anjo. A não ser, claro, que o consórcio tenha outros interesses na Prefeitura.

Meu colega, tendo gostado da experiência de ontem, resolveu repetir a dose hoje. Com o Uber X a R$ 44,92, chamou um Mobi, que estava cobrando os mesmos R$ 18,14 de ontem, mas o motorista aceitou e cancelou. Tentou mais uma vez, idem. Uma terceira, a mesma coisa. Foram, no total, 14 tentativas (sim, Arturo é uma pessoa perseverante). O seu Evaristo, pelo jeito, não topou levar o Arturo para casa de graça novamente. Assim como nenhum dos seus colegas. Ainda não inventaram um ser humano que não reaja aos incentivos econômicos.

A estatal de compartilhamento de transporte

A notícia é: “Prefeitura lança app para concorrer com Uber e 99”. Eu ia começar este post lembrando do aplicativo de táxis lançado pela prefeitura de São Paulo em 2018, quando Doria era ainda prefeito da cidade. Alguém viu algum aplicativo de táxi por aí? Pois é…

Mas antes de começar a escrever, fui pesquisar quanto a prefeitura está desembolsando nessa estrovenga. Achei o edital e, surpresa! A prefeitura não está pagando nada! O app ganhador do certame foi aquele que ofereceu o menor desconto para os motoristas, ponto para o qual a reportagem chamou a atenção.

Mas aí, pensei: diacho, por que afinal uma empresa precisa ganhar alguma licitação da prefeitura para oferecer um app de transporte? O Uber ganhou alguma licitação? 99? IFood? Não, nenhum desses apps ganhou licitação alguma. Simplesmente chegaram e fizeram seus apps acontecerem. Então, qual o sentido de participar de uma licitação desse tipo? O que faria uma empresa perder tempo com licitações, se poderia lançar um app exatamente com as mesmas características de maneira independente?

Poderia ser porque a Prefeitura se comprometeria com todo o suporte de marketing, investindo para tornar o app popular na cidade. Mas não. O item 2.11 do edital específica que “A CONTRATANTE, com o objetivo de universalizar a utilização do sistema, deverá proporcionar a divulgação da ferramenta ao público, utilizando-se de seus espaços de mídias digitais, publicidade em canais de rádio, televisão e material impresso para veiculação de propaganda institucional da MUNICIPALIDADE”. Ou seja, faz parte dos encargos do vencedor do certame a publicidade do app.

Então, qual a vantagem? Desconfio que o pulo do gato esteja no item 2.7 do edital: “Adicionalmente ao disposto no subitem 2.5 deste instrumento, desde que não onere a MUNICIPALIDADE, a CONTRATADA poderá, pela presente contratação, diversificar as suas fontes de receita com a exploração de receitas alternativas à atividade principal do empreendimento (receitas não tarifárias diretas, ou acessórias) de modo a viabilizar o projeto de investimento”.

Ou seja, o vencedor da licitação pode explorar outras fontes de receita. Mas qualquer empreendedor no Brasil sempre pode explorar outras fontes de receita. Afinal, a livre empresa é um dos princípios basilares da nossa Constituição. Só faz sentido esse item se estiver conjugado com serviços que NECESSITEM do aval da prefeitura para serem realizados. O ganhador do app, portanto, teria facilitada a permissão da prefeitura para explorar outras atividades, algo tão aberto e impreciso quanto “receitas alternativas à atividade principal do empreendimento”.

Corta para o resultado da licitação.

Segundo a ata da licitação, somente um consórcio se habilitou para o certame. O consórcio 3C é formado pelas empresas CLD – Construtora, Laços Detetores e Eletrônica Ltda, Consilux Consultoria e Construções Elétricas Ltda e CSX Inovação S/A. Será que as duas primeiras têm outros interesses junto à prefeitura de São Paulo, que seriam de alguma forma facilitados pela cláusula 2.7 desse edital? Se não, por que essas empresas não se uniram antes para fazer um app de compartilhamento? O que as impediu?

Mas vamos nos concentrar na terceira empresa. Com um pouco de pesquisa, descobrimos que a CSX foi fundada em maio de 2021, em Curitiba. Sua especialidade? Equipamentos para rastreamento de veículos e monitoramento de trânsito. Parece não ter muita experiência com apps de compartilhamento de transporte. Mas aí entra o item 2.17 do edital: “Mediante a presente contratação propiciará a cidade de SÃO PAULO no âmbito da Política de Desenvolvimento Urbano, o monitoramento e a observação das condições locais de mobilidade urbana, possibilitando a identificação de lacunas e sobreposições e proposição de novos arranjos, os quais contribuirão com a MUNICIPALIDADE para que futuras atualizações no Plano Diretor Estratégico do MUNICÍPIO de SÃO PAULO”. Faz parte das entregas do consórcio um “Portal Gestão da Secretaria Municipal de Mobilidade e Trânsito – SMT”. Ou seja, a prefeitura contará com uma central de monitoramento do serviço. É basicamente isso o que distingue esse serviço do Uber/99: o serviço será gerenciado pelo Estado, e não por uma empresa particular. O app será desenvolvido por uma empresa privada, mas o gerenciamento será de responsabilidade da prefeitura.

Nem vou aqui entrar no mérito da segurança dos dados, assumindo que estarão tão seguros na prefeitura quanto estão no Uber. O único ponto que faço é a eficiência do serviço. Imagine você tentando reclamar de algo. Se já é difícil no Uber, imagine em um serviço gerenciado pela prefeitura…

Então, ficamos assim:

– Um consórcio formado por empresas sem experiência com desenvolvimento de aplicativos vai desenvolver um para competir com Uber/99

– Esse consórcio receberá remuneração menor do que recebem Uber/99, e poderá compensar essa baixa remuneração com “outras fontes de receita” não especificadas.

– o gerenciamento do app ficará a cargo da prefeitura.

Qual o risco disso dar certo? A prefeitura, que não consegue sequer ter um sistema de bilhete eletrônico que funcione decentemente, quer concorrer com o Uber. O prazo para implantação do serviço é de 5 anos (!) após a assinatura do contrato. Nesse prazo, talvez esqueçamos o assunto.

PS.: o jornalismo profissional faria um serviço melhor se entrasse nesses meandros, ao invés de somente publicar press release da prefeitura.

Boa sorte para todos

Mais uma entrevista do personagem que promete ser o mais folclórico dos ministros que têm assento no governo Lula. E olha que a concorrência é pesada.

Luiz Marinho nos brinda com o seu conhecimento sobre o mercado de aplicativos. Segundo o ministro, se o Uber quiser ir embora, que vá, pois há aplicativos “aos montes” no mercado. E foi além: os Correios, com todo o seu know how em logística, poderia desenvolver um aplicativo semelhante ao Uber. Além disso, o cooperativismo poderia substituir com vantagem o Uber, basta que os motoristas descubram essa forma de trabalho.

Já tive a oportunidade de escrever sobre “aplicativos solidários” e “cooperativismo”. Basta dar uma busca no meu blog com o termo “Uber” para achar. A conclusão é sempre a mesma, e se resume à filosófica fala atribuída a Mark Zuckerberg no filme “Rede Social”. Durante o julgamento em que os irmãos Winklevoss processam o dono do Facebook por roubo de propriedade, em determinado momento Zucka se vira para os gêmeos e diz, irritado: “se vocês tivessem inventado o Facebook, vocês teriam inventado o Facebook”. Simples.

O Uber (assim como o Facebook) não é só uma ideia. Ideias existem “aos montes”, todo mundo têm ideias o tempo todo. O Uber é uma ideia executada, colocada em prática. Quem já tentou abrir uma empresa e administrá-la sabe do que estou falando. São centenas, milhares de decisões todos os dias. E toda e cada uma dessas decisões pode ser a desgraça da empresa, como normalmente o é. O índice de mortalidade de empresas é gigantesco. E você pode até estar certo, mas se não conseguiu convencer financiadores sobre a sua visão, ou mesmo não conseguiu liderar a sua equipe na direção da sua visão, nada feito, a empresa vai morrer.

Bem se vê que o ministro do Trabalho nunca administrou um carrinho de pipoca. Para ele, o Uber é dispensável, porque tem ”um monte” de substitutos: outros aplicativos, os Correios, cooperativismo. Por um estranho motivo, no entanto, o Uber continua aí, todas essas alternativas simplesmente não apareceram, pelo menos por enquanto. As que tentaram, com exceção da 99, falharam miseravelmente. Aliás, a 99 é o Uber brasileiro que deu certo, e “causa” os mesmos ”problemas” para os motoristas que a empresa americana. Se a legislação mudar e afugentar o Uber, a 99 vai junto.

No fim, o ministro afirma que as variadas necessidades dos motoristas (afinal, não são todos metalúrgicos da Volkswagen) exige uma regulação por parte do Estado! Ou seja, vai homogeneizar na marra. Nessa hora, só me ocorre dizer o que Henrique Meirelles disse em evento para participantes do mercado, e que já ganhou o seu lugar na história: “boa sorte para todos”.

Sindicalismo da boquinha

Entrevista com o novo ministro do Trabalho, Luíz Marinho. Saiu no jornal de ontem, mas só tive tempo para comentar hoje. A entrevista contém várias pérolas. Tendo sido difícil escolher as melhores, decidi reproduzir tudo.

Em resumo, Marinho propõe aumentar o salário mínimo para aumentar a demanda e a arrecadação do governo, como se o moto perpétuo existisse. Além disso, pretende aumentar a formalização da mão de obra “visitando” a reforma trabalhista, uma reforma que justamente permitiu aumentar a formalização, ao reconhecer formas alternativas de trabalho. Por fim, Marinho até arrisca uma análise “supply side” da economia, ao reconhecer que os empresários precisam antes investir para criar a oferta. O aumento do salário mínimo, então, faria o papel de convencer os empresários de que a demanda estará lá quando estiverem produzindo. Brilhante.

Mas é para a parte final da entrevista que eu gostaria de chamar a vossa atenção: Marinho vai “negociar” com Uber e iFood melhores salários para os motoboys e motoristas, como se ainda fosse sindicalista da Volkswagen em São Bernardo do Campo.

Marinho vive na década de 70, época em que a indústria representava mais de 30% do PIB nacional e os sindicatos cuidavam dos interesses de trabalhadores bem estabelecidos em seus empregos formais nessas empresas. Passaram-se 50 anos, o muro de Berlim caiu, o PIB do setor de serviços explodiu, a tecnologia digital revolucionou as relações de trabalho, e Marinho ainda acha que vai resolver algum problema dos trabalhadores sentando-se à mesa com os “patrões exploradores”.

Aliás, note como a palavra “exploração” aparece repetidamente na entrevista, refletindo exatamente a ideia de seu chefe, que afirmou recentemente que “o empresário fica rico sem trabalhar”. Essa é a mentalidade que nos preside no momento, e Marinho apenas empresta a sua voz a essa mentalidade.

Claro que tudo isso é só espuma. A grande missão do ministro do Trabalho é encontrar um meio de voltar com o imposto sindical. Afinal, os sindicatos precisam ser fortes para negociarem com os patrões exploradores. E também, porque não dizer, para apoiar campanhas eleitorais de políticos comprometidos com a causa dos explorados, quer dizer, dos trabalhadores. Afinal, como certa vez Anthony Garotinho resumiu magistralmente, o PT é o “partido da boquinha”.

Não passarão!

E os canalhas atacam outra vez! Não basta explorar os motoristas, a transnacional do mal, o Uber, quer também explorar os motociclistas! Onde já se viu “visar somente o lucro”, depois de pagar todos os impostos e o combinado com os motociclistas? Eduardo Paes já avisou: não vem que não tem!

As prefeituras de São Paulo e do Rio estão muito certas. Afinal, onde já se viu permitir que os motociclistas tenham uma fonte de renda extra e os passageiros, uma alternativa adicional (e mais barata) de transporte? Isso não pode acontecer! O Estado está aí pra isso mesmo, para garantir que os cidadãos possam gozar da vida mais miserável possível, de modo a diminuir a probabilidade de não ficarem dependentes do mesmo Estado. O sucesso dessa estratégia é indiscutível, como mostra a história. O Estado, sempre vigilante, pegou no ar mais uma tentativa de os cidadãos se emanciparem. Parabéns!

Economia gig: um espantalho útil

Os problemas trabalhistas brasileiros se resumem à formalização dos profissionais de aplicativos. Pelo menos, é o que se deduz de várias reportagens nos últimos tempos. Hoje, por exemplo, se discute o que os candidatos propõem para a catchiguria. Os partidos mais à esquerda se destacam, encontrando um nicho para a sua peroração de luta de classes. Mas, de maneira geral, todos os candidatos prometem fazer “alguma coisa” em relação ao assunto.

A chamada “economia gig” não existia até alguns anos atrás. O que mais se aproximava eram as cooperativas de taxistas, organizadas em torno de alguma central telefônica que centralizava os chamados. Os taxistas, na época, também não contavam com “proteção social”, mas ninguém parecia ligar muito para isso. Havia também empresas que empregavam motoboys, e que tinham como clientes outras empresas, pois o seu serviço era muito caro para as pessoas físicas. E havia também alguns (poucos) restaurantes que podiam se dar ao luxo de ter entregadores. Não sei se esses entregadores e os motoboys tinham garantidos todos os “direitos sociais”, mas ninguém se importava muito com isso na época.

Até que chegou o Uber, quebrando o monopólio dos taxistas em todas as cidades do mundo, ao permitir que qualquer motorista pudesse “dar carona” em seu próprio carro. Os aplicativos de entrega vieram em seguida, organizando e fazendo crescer exponencialmente o fragmentado mercado das empresas de motoboys. Nascia, assim, a “economia gig”, facilitando a vida de milhões de pessoas e criando empregos onde antes estes não existiam.

Segundo o IPEA, são 1,5 milhões de trabalhadores na “economia gig”, sendo cerca de 1 milhão de motoristas e 500 mil motociclistas e ciclistas. Trata-se de um número grande, mas vamos colocá-lo em contexto. Segundo o IBGE, hoje temos 35 milhões de trabalhadores com carteira assinada, 25 milhões de trabalhadores por conta própria, 38 milhões de trabalhadores informais e 10 milhões de desempregados. Portanto, da força de trabalho brasileira, 73 milhões, ou 2/3, não contam com nenhuma “proteção social”. Estão incluídos nessas 73 milhões de almas os 1,5 milhão da economia gig. Alguém, então, poderia muito justamente perguntar: por que tanto barulho em torno desses 1,5 milhão? E os restantes 71,5 milhões, que estão aí (sempre estiveram) sem nenhuma “proteção social”?

Vou arriscar uma explicação sociológica. Creio que são dois motivos inter-relacionados. O primeiro é que a classe média está em contato com esses trabalhadores cotidianamente. Temos uma espécie de “dor na consciência” ao ver como somos “privilegiados” em relação a eles. Os outros 71,5 milhões não sabemos quem são, mas esses nos atendem todo dia. E nos doemos por eles. Só isso explica, por exemplo, que José Pastore, em entrevista hoje, classifique de “desumana” a situação dos trabalhadores de aplicativos. Como se fosse “humana” a situação dos outros 71,5 milhões de trabalhadores informais no país.

O segundo motivo, que é o outro lado da moeda da “desumanidade”, são as empresas por trás da economia gig. No caso dos outros 71,5 milhões de informais não há start ups badaladas que valem bilhões na bolsa. O raciocínio implícito é que essas empresas teriam condições de prover “direitos sociais” a esses trabalhadores. Afinal, são bilionárias.

É uma tese a ser testada. Se uma legislação obrigar essas empresas a “formalizarem” os seus “empregados”, uma de duas coisas (ou uma combinação de ambas) precisará acontecer: 1) os aplicativos terão que reduzir a sua margem de lucro e/ou 2) os consumidores precisarão pagar mais caro pelo serviço. Se os aplicativos avaliarem que não vale a pena o risco do negócio com uma margem de lucro reduzida ou não conseguirem repassar o custo para o consumidor final, o negócio desaparecerá. Então, os trabalhadores de aplicativos, que hoje fazem parte dos 73 milhões que não têm “direitos sociais”, passarão a fazer parte dos 10 milhões de desempregados que, além de não terem ”direitos sociais”, também não têm renda.

Todos nós gostaríamos de viver em um mundo nobre, belo e justo, onde todos os trabalhadores recebessem uma renda suficiente para as suas necessidades básicas e contassem com toda a proteção do “estado de bem-estar social”. No Brasil, no entanto, por algum motivo, 73 milhões de trabalhadores não têm acesso aos chamados “direitos sociais”. Os 1,5 milhão de trabalhadores de aplicativo são uma gota d’água nesse oceano. Chamam a atenção porque fazem parte do nosso dia-a-dia e são dependentes de “multinacionais poderosas”.

Na verdade, esses trabalhadores são apenas o sintoma de uma doença muito mais profunda, uma doença que impede que um contingente gigantesco de trabalhadores não tenha acesso a um mínimo de “proteção social”. Brigar pelos “direitos dos trabalhadores de aplicativos” é um bom modo de anestesiar a consciência sem resolver o problema de fundo. Trata-se de um espantalho útil para manter as coisas do jeito que estão.