Temos espaço para enganar, mas não por muito tempo

Lara Rezende volta a atacar.

Estamos rodando déficit primário de quase 2% do PIB há 5 anos e André Lara vê “austeridade fiscal”.

Interessante que, neste artigo, Lara Rezende faz a ligação entre austeridade fiscal e ascensão de regimes populistas. O curioso é que os países citados (Polônia, Turquia, Venezuela (!), EUA (!!)) não passaram por nada parecido com o que a Grécia fez, seja porque suas contas já estavam relativamente em ordem, seja porque, como no caso da Venezuela, o receituário adotado foi exatamente o prescrito por Lara Rezende. A Grécia, curiosamente, não é citada no grupo, pelo contrário: seu governo, de esquerda, é citado elogiosamente.

Mas o que mais me chamou a atenção foram os trechos abaixo. Foi realizado um referendo que deu como resultado (surpresa!) a rejeição da austeridade fiscal. Mas os maldosos tecnocratas não deixaram a Grécia realizar a “vontade do povo”, e o país não teve outra saída a não ser jogar a vontade do povo no lixo e obedecer os tecnocratas.

Que poder é esse que têm os tecnocratas, que conseguem passar por cima da “vontade do povo”? No caso da Grécia chama-se Euro. A conta a ser paga pelos gregos para adotar menos austeridade fiscal era sair da zona do Euro e voltar a adotar a velha moeda do país, o dracma. O resultado disso seria uma moeda desvalorizada e dívidas denominadas em Euro, que seriam, obviamente, objeto de calote. Como consequência do óbvio fechamento do mercado de capitais para o país, as únicas alternativas viáveis seriam um brutal ajuste fiscal de curto prazo para equilibrar as contas (uma vez que fazer novas dívidas não estaria entre as opções viáveis) ou rodar a maquininha de dracmas loucamente, com os efeitos inflacionários conhecidos.

Os membros do Syriza sabiam de tudo disso e ESCOLHERAM por permanecer no Euro. A permanência no Euro não foi uma imposição dos tecnocratas, mas da realidade. Obviamente, os tecnocratas fizeram o máximo para que a Grécia permanecesse na moeda única, injetando recursos e renegociando a dívida, pois a saída do Euro teria um impacto negativo também para a moeda única. Mas a porta sempre esteve aberta.

Vamos agora ao caso do Brasil. O País não está atrelado a nenhuma moeda única, não existem tecnocratas estrangeiros ditando o que temos que fazer. Então, pergunta-se Lara Rezende, o que nos impede de descartar essa “austeridade suicida”?

Eu respondo: o mesmo que fez a Grécia ficar na zona do Euro. Estar atrelado a uma moeda estável é apenas o modo de explicitar o compromisso de que todas as suas dívidas serão pagas algum dia, e de que o país não vai rodar a maquininha de papel colorido que alguns insistem em chamar de moeda.

O Brasil não está atrelado a uma moeda forte, mas os efeitos de não se adotar austeridade fiscal seriam os mesmos que a saída de uma moeda única. Com um déficit crescente, o calote da dívida entraria no radar dos investidores, que encurtariam os prazos e, no limite, deixariam de financia-la. Assim, seria necessário um ajuste fiscal ainda mais brutal para zerar o déficit primário (pois tomar novas dívidas já não seria uma opção), ou rodar a maquininha, com os efeitos inflacionários conhecidos. Exatamente os mesmo efeitos de sair de um padrão monetário estável.

Mas, digamos que Lara Rezende esteja correto em seu modelo de MMT: os agentes sabem que o governo não dá calote em sua dívida denominada em moeda local, e continuam financiando sem problemas o governo. Qual seria o efeito de déficits e dívida crescentes? Mais dinheiro vai da iniciativa privada para o governo, com sua notória incapacidade de investir bem os recursos. Repito: déficits crescentes significam transferência de recursos da iniciativa privada para o governo. Isso é bom?

Não, nós não estamos vivendo um regime de “austeridade fiscal”. Ou melhor, estamos apenas da boca para fora. Temos um déficit de quase 2% do PIB e que não está diminuindo. Estamos adotando o mesmo receituário de Macri, na Argentina: um ajuste bem, mas bem, gradual. Funciona no início, pois os agentes acreditam nas promessas. Depois de algum tempo, no entanto, percebem o engodo, e voltam a precificar um calote e/ou a inflação sobe. A Grécia não teve essa alternativa, porque os tecnocratas (leia-se Alemanha) não deixaram. Aqui, temos espaço para enganar. Mas não por muito tempo.

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