A República da Meia-Entrada

Doadores de sangue teriam direito a meia-entrada em shows e cinemas. É válido?

A palavra “doação” significa dar gratuitamente, sem contrapartida alguma. No momento em que há uma contrapartida (no caso, a meia-entrada), deixa de ser doação e passa a ser comércio.

Sendo comércio, cabe a questão: quem deveria pagar pelo sangue “doado”? Certamente, não os promotores de shows e os donos de cinemas. E muito menos aqueles que frequentam shows e cinemas, os quais, como sabemos, acabam arcando com ingressos a preços maiores para subsidiar a meia-entrada.

Se o sangue será vendido, o pagador deveria ser o paciente que recebe o sangue, via a conta do hospital. Se tem convênio médico, seria o convênio a pagar pelo sangue, despesa esta que certamente estaria embutida nas mensalidades.

Enfim, se é para pagar pelo sangue, que se cobre quem de direito, e se deixe em paz quem não tem nada a ver com isso.

9 de julho

Há alguns anos, às vésperas de um 9 de julho, meu ex-chefe, carioca, perguntou-me que feriado era aquele. Expliquei da melhor maneira que pude: defesa de uma nova constituição, luta contra a ditadura de Vargas, defesa dos ideais democráticos. No que ele me responde: “ah, agora começo a entender São Paulo”.

Alguém já disse que São Paulo é o mais norte-americano dos estados brasileiros. Trabalho com pessoas vindas do Rio, Bahia, Rio Grande do Sul. Todos são unânimes em dizer que em São Paulo “as coisas funcionam”, que é “a terra onde a competência é valorizada”. Certa vez, almoçando com um carioca em um restaurante por quilo, ele ficou impressionado com a destreza da moça do caixa, que atendia 3 clientes ao mesmo tempo. “Por isso que São Paulo é diferente, isso no Rio não existe”.

Obviamente, toda generalização é burra. Certamente há pessoas competentes e trabalhadores no Brasil inteiro, assim como há gente preguiçosa e desleixada em São Paulo. Mas estou falando aqui da percepção de oriundos de outros estados. Assim como quem migra para os EUA tem a sensação de que lá “as coisas funcionam”, quem migra para São Paulo tem a mesma sensação.

Lembro, quando era criança em idade escolar, de minha mãe ouvindo de manhã bem cedinho, enquanto preparava nosso café da manhã, o noticiário da Jovem Pan. Até hoje, mais de 40 anos depois, lembro da música de abertura: 🎶São Paulo que amanhece trabalhando. Paulista que não sabe adormecer. Porque durante a noite, paulista vai pensando nas coisas que de dia vai fazer.🎶 E terminava com o refrão “vambora, vambora, tá na hora, vambora, vambora.” Aquilo energizava. E representa a essência de São Paulo.

Hoje temos muito pouca consciência cívica, aquilo que nos constitui como uma Nação. Se as pessoas não sabem o que foi o 7 de setembro ou o 15 de novembro, é exigir demais que saibam o que é o 9 de julho. Os cínicos dirão que tudo não passa de luta pelo poder. É verdade. Todas essas datas representam lutas pelo poder. Mas, se fosse somente isso, ficariam circunscritas aos palácios e o povo ficaria em casa. As pessoas se movem por um ideal.

Em 9 de julho, os paulistas pegaram em armas para defender um ideal, aquilo que faz de São Paulo ser o que é. É sempre bom recordar.

Esquerda radical

Esquerda radical.

A palavra “radical” nos remete a algo que “não se mistura”, que “não cede a compromissos” com outras forças políticas, algo que se mantém “puro”. A palavra “radical” vem do latim “radix”, raiz. Ser radical significa, portanto, ter raizes, respeitar e ser fiel às próprias origens e convicções.

Diferente da palavra “extrema”.

“Extrema esquerda” soa a alguém que usa quaisquer métodos para impor suas ideias. É também radical, mas vai além: chega a ser criminoso. No mínimo, sugere a ideia de intolerância. O termo “extrema esquerda” normalmente é associado a grupos terroristas, à margem da lei.

Note: na imprensa, partidos na ponta esquerda do espectro político são chamados de “radicais”, enquanto na ponta direita são chamados de “extrema”. Por que será?

Maracanã

Bolsonaro vai levar o ministro Moro amanhã ao Maracanã. Será como nas arenas romanas, onde os assistentes pedem pela vida ou pela morte do gladiador. Bolsonaro espera que os polegares virem para cima.

Trata-se de um risco político calculado. Parece óbvio que, em um estádio lotado com torcedores que vestem as mesmas camisas que foram usadas nas manifestações de apoio à Lava-Jato, o apoio a Moro seja majoritário.

Faz sentido esse gesto do presidente? De certa forma, sim. Indubitavelmente, a Lava-Jato assumiu uma dimensão política, além da estritamente jurídica, sendo, inclusive, responsável remota pela eleição de um presidente da República. Então, é natural que ela seja defendida também no campo político, além do jurídico. Os vazamentos do Intercept têm objetivo político, o objetivo jurídico é subsidiário. Bolsonaro pretende defender a Lava-Jato no campo político com esse gesto.

Também pode haver gente que torça o nariz para essa “ligação direta” com o povo. Primeiro, porque o Maracanã de amanhã está longe de representar a totalidade do povo. Mas, mais do que isso, o problema seria conceitual: o presidente precisaria respeitar as instâncias institucionais, e não fazer ligação direta com o povo, que é a marca de governos populistas e, no extremo, ditatoriais.

Mas a popularidade faz parte das democracias. Se não fizesse, não haveria pesquisa de popularidade de presidentes. Esse canal direto, essa identificação do povo com o mandatário, faz parte do quebra-cabeças institucional. Um presidente impopular não consegue liderar o país. Temer foi uma exceção, e mesmo assim porque seu mandato foi muito curto.

Os aplausos no estádio, apesar do Maracanã não representar o povo, serão um símbolo político. Bolsonaro sabe que precisa desse símbolo para seguir em frente.

Corporativismo

Especialistas. Fontes. Interlocutores.

São essas pessoas sem cara que ficam soltando notinhas na imprensa para inviabilizar o encolhimento do BNDES.

A nova agora é que o dinheiro da venda das ações da carteira do BNDES não pode ser devolvido ao Tesouro. Somente “dinheiro em Tesouraria”, originado de “empréstimos vencidos” é que poderiam ser devolvidos. Algum artigo da LRF impediria essa devolução. Não ocorreu ao jornalista que escreveu a matéria perguntar qual seria esse artigo.

Ora, as ações estão lá como fruto de investimentos feitos pelo banco, assim como os empréstimos. Por que cargas d’água, uma vez vendidas, os recursos arrecadados não poderiam ser devolvidos ao Tesouro? Se isso for verdade, teremos uma situação surreal: R$ 100 bilhões carimbados, que não podem ser usados para mais nada, a não ser comprar novas ações.

Enfim, o corpo técnico do BNDES estrebucha, diante da perspectiva de encolhimento do banco. O Brasil é mesmo refém das corporações.

Jornalismo de fancaria

“Para a plateia de investidores que pagaram a partir de 1.500 reais pelo ingresso, os aplausos a Moro se justificam pelo bom momento do mercado acionário. Investidores têm preferido ignorar a onda de denúncias contra o ministro da Justiça e o constrangimento político causado por elas e focar a reforma da Previdência.”

Esta é a essência da reportagem da Exame sobre a participação do ministro da Justiça no evento da XP.

Segundo a Exame, ninguém ali estaria aplaudindo porque acha que Moro fez um bom trabalho, colocando um bando de bandidos na cadeia. Não. O pessoal está mesmo interessado é nos lucros da bolsa e, por isso, “prefere ignorar” a “onda de denúncias”.

“Preferir ignorar” significa ter consciência de que há algo muito errado mas, mesmo assim, deixar para lá, pois os lucros da bolsa são mais importantes. Com essa frase, a Exame sugere que os investidores são coniventes com um crime, pois “preferem” ignorá-lo, mesmo supostamente sabendo que existe.

“Onda de denúncias” é aquela frase que dá a sensação de que são muitas pessoas denunciando muitas coisas, como foi o caso, por exemplo, do Petrolão. Quando, na verdade, tem-se um jornalista comprometido com uma causa, que está usando material de origem duvidosa para denunciar uma coisa só: a suposta parcialidade de Moro. Não há onda nenhuma, há canalhice a conta-gotas.

Exame vai bem desse jeito. A julgar por essa reportagem e pelo uso de fontes duvidosas pela Veja, os novos donos da Abril vão ter trabalho para reconstruir o jornalismo por aquelas bandas.

Como você enfrentaria Bonnie & Clyde?

Atenção, contém spoilers!

No fim de semana passado, assisti Estrada Sem Lei, novo filme na Netflix. Conta a história de dois policiais aposentados (Kevin Costner e Woody Harrelson) que finalmente conseguem pegar o casal de assaltantes e assassinos Bonnie & Clyde.

Os dois policiais usam métodos, digamos, pouco ortodoxos: entram em jurisdições para as quais não têm mandato, invadem propriedades sem ordem judicial e por aí vai.

Em determinado momento, o personagem de Harrelson descreve como o personagem de Costner mata a sangue frio, em uma emboscada, um bando de assassinos ainda dormindo, pois estes se recusavam a se render. Aquilo claramente não fazia parte do código de ética da polícia, mas parecia ser a única forma de livrar os povoados daqueles bandidos.

A morte de Bonnie & Clyde se dá mais ou menos da mesma forma: uma emboscada, e tiros suficientes para matar um batalhão. O casal de bandidos já havia matado vários policiais a sangue frio, e o personagem de Costner sabia que era ele ou eles. De fato, o carro do casal estava cheio de armas, prontas a serem usadas.

Esta situação me remeteu à Lava-Jato. Um juiz e procuradores à caça de bandidos que não hesitam em usar todas as armas para fugir do longo braço da lei. Usaram métodos pouco ortodoxos? Talvez, há uma discussão a respeito. Mas a escolha está entre usar métodos pouco ortodoxos ou deixar os bandidos à solta, livres para continuar cometendo seus crimes.

Alguns dizem apoiar a Lava-Jato, elogiam os seus resultados, mas reprovam alguns de seus métodos. Não lhes ocorre que a Lava-Jato é uma coisa só, não dá pra separar os seus resultados de seus métodos. Para alguns tipos de bandidos, primeiro se “passa a bala”, depois se diz “mãos ao alto”. É isso, ou é se conformar em permitir esses bandidos soltos. Não há meio termo.

Não estou aqui dizendo que a Lava-Jato tenha usado ou não métodos pouco ortodoxos. Eu, sinceramente, não tenho condições técnicas para avaliar isso. A única coisa sobre a qual tenho certeza é que os bandidos que estavam sendo perseguidos eram dos mais ardilosos do país, e não seria com salamaleques que seriam presos.

Obviamente não se trata de uma discussão fácil, com uma solução preto no branco. São muitas nuances, mas colocar o juiz e os procuradores como bandidos e os bandidos no lugar de vítimas certamente não é uma delas. O que se discute é se se pode infringir as regras com o objetivo de fazer justiça em determinados casos, uma vez que o sistema judiciário brasileiro é feito de modo a não se conseguir condenar quem pode pagar bons advogados.

O filme mostra que Bonnie & Clyde eram adorados pela população, que os consideravam justiceiros contra os exploradores. Houve verdadeira comoção quando foram mortos, milhares de pessoas compareceram aos seus enterros. Sim, a vida imita a arte.

O que importa é soltar Lula

Não se enganem: esses grampos nos telefones de procuradores e todo esse estardalhaço em torno dos diálogos revelados só está acontecendo porque Lula, o Messias Brasileiro, o Guia dos Povos, a Salvação dos Pobres, está preso. Lula estivesse solto, nada disso estaria acontecendo, mesmo com dezenas de empresários e políticos presos.

O que importa, de verdade, é soltar Lula, o resto é detalhe irrelevante.