As falácias sobre o distanciamento social

Anteontem, em entrevista ao Datena, Bolsonaro afirmou que “não se pode parar a indústria automobilística porque tem 60 mil mortes no trânsito todos os anos”.

Hoje, o jornalista J.R. Guzzo segue na mesma linha. O país nunca parou porque milhares morrem de doenças coronarianas, ou respiratórias, ou de tuberculose. Então, por que parar o país por causa do corona?

Já escrevi sobre isso aqui, mas quando um jornalista da experiência do Guzzo repete uma falácia desse tipo, acho que vale a pena repetir.

Na verdade, são três as falácias envolvidas: 1) a falácia da natureza do problema; 2) a falácia estatística e 3) a falácia filosófica. Vamos ver.

A falácia da natureza do problema refere-se à forma como se trata de cada problema, de acordo com sua própria natureza. Não se trata doenças coronarianas com isolamento social porque simplesmente não tem nada a ver uma coisa com a outra. Doença coronariana se trata com remédio, alimentação e cirurgia, quando for o caso. A mesma coisa se dá com doenças infectocontagiosas, como tuberculose e sarampo, que contam com vacinas. Não é necessário distanciamento social, é preciso uma campanha de vacinação. Bem, espero ter sido claro.

A segunda falácia, a estatística, é o que tem sido falado à exaustão: estamos trabalhando para achatar a curva de contaminação, para torná-la mais lenta e não sobrecarregar o sistema de saúde. Por que não se faz isso com os acidentes de automóvel, por exemplo? Simplesmente porque não é estatisticamente necessário. Os acidentes ocorrem de maneira mais ou menos constante ao longo do ano, de modo que o sistema de saúde consegue, bem ou mal, dar conta do recado. O mesmo ocorre com doenças coronarianas e todas as outras. Não existe um pico inadministrável de curto prazo. O número total de mortes pelo corona pode até ser menor do que de outras doenças ou acidentes, mas a sua concentração em pouquíssimo tempo, além de chocar, pode ser evitada com o achatamento da curva de transmissão.

Sobre esta segunda falácia, Guzzo ainda afirma que o problema é a baixa capacidade do SUS de atender os doentes, e não é distanciamento social que vai resolver um problema que já se arrasta há mais de 30 anos. Ora, ninguém está querendo resolver o problema do SUS. Pelo contrário. Ao reconhecer que há um problema no SUS, fica ainda mais urgente tomar providências para que a situação não saia do controle. Difícil entender alguém defender que, por termos um problema, vamos agravá-lo ainda mais. Já que estou com um pé na merda, vou colocar o outro também. Faz sentido?

Por fim, a terceira falácia, a filosófica. Sim, as pessoas morrem de muitas coisas além do corona. Ainda não somos imortais, portanto vamos morrer de alguma coisa. Ao enumerar todas as outras causas mortis para diminuir a importância do corona, Guzzo lança mão de um sofisma: aproveita-se do fato de que as pessoas morrem de alguma coisa, qualquer coisa, para dizer que morrer de corona não é assim tão grave. Ora, morrer vamos sempre morrer, mas isso não significa que não devamos lutar para viver. No limite, o argumento vale para tudo: por que, por exemplo, se preocupar em tentar salvar a vida de acidentados de trânsito se muito mais pessoas morrem de doenças coronarianas? Se esse raciocínio parece maluco, por que o do corona parece razoável?

O grande debate, na verdade, é só de custo-benefício. Parar o país vale a vida daqueles que serão salvos do corona? Este debate ocorreu em todos os países onde alguma quarentena teve que ser imposta, e desapareceu quando corpos começaram a ser empilhados. Aqui vai acontecer a mesma coisa.

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