Todas as vidas importam

A maior parte dos que morrem por Covid-19 já era de idade avançada.

A maior parte dos que morrem por Covid-19 já tinha alguma comorbidade.

Essas duas sentenças (verdadeiras, diga-se de passagem) sempre me causaram um incômodo que eu não sabia de onde vinha. Mas acho que consegui elaborar.

Dizem que há somente duas certezas na vida de um homem (e de uma mulher): a morte e os impostos.

Todos vamos morrer um dia. É da vida, como disse, em sua sapiência presidencial, o nosso comandante-em-chefe.

No entanto, a morte como destino não justifica, de maneira nenhuma, a antecipação desse destino. Não faz sentido, por exemplo, dizer a um filho que teve a sua mãe idosa assassinada, que “é da vida”, “um dia todos vamos morrer”.

Sim, é verdade que um dia todos vamos morrer. Procurar postergar esse dia é a função da medicina (no caso das doenças), das forças de segurança (no caso das mortes violentas) e das várias normas que regem atividades arriscadas (no caso dos acidentes).

O fato de uma pessoa ser idosa, ou sofrer de uma doença crônica, não justifica a sua morte. A medicina está aí justamente para procurar postergar esse dia.

Sim, o coronavírus é mais letal em pessoas idosas e com comorbidades. Assim como a grande maioria das doenças. Parece incrível, mas dentre as pessoas que morrem, a maioria é idosa. Com corona ou sem coronavírus.

Assim, dizer que o Covid-19 mata mais idosos não passa de uma obviedade. Isso não é exclusividade do Covid-19. Grande parte das doenças será mais fatal para os idosos e para quem tem outras doenças.

Duas coisas estão por trás dessa afirmação (só mata idosos e pessoas já doentes): 1) a tentativa de diminuir a importância do problema. Afinal, se mata somente idosos e pessoas com comorbidades, então não é tão perigoso assim e 2) um certo desprezo pela vida de pessoas idosas e com comorbidades, como se a vida dessas pessoas fosse menos importante do que a dos jovens e saudáveis.

A diminuição da importância do Covid-19, na verdade, significa dizer que nenhuma doença é realmente importante. Pois grande parte das doenças mata preferencialmente idosos e pessoas com outras doenças. Nem por isso se deixa de colocar os meios para mitigá-las. Ocorre que, como já escrevi aqui algumas vezes, o único meio para mitigar uma doença que não tem vacina nem remédio, e que se espalha como fogo em mato seco, é o distanciamento social. Não há outro meio conhecido. E não é dizendo que a doença “só mata velho” que se vai mudar a natureza do problema.

Com relação à vida dos idosos e pessoas com comorbidades, quem vai dizer quantos anos de vida ainda teriam aqueles que morreram por causa do Covid-19? Poderia ser um minuto, poderiam ser 10 ou 20 anos. Quem sabe? O fato de ser idoso ou de ter comorbidades não torna menos importante a vida dessas pessoas. No limite, toda a medicina seria um desperdício, pois a morte não passa de um “fato da vida”.

Afirmar que “um dia todos vamos morrer” pode ser uma obviedade. Mas está longe de consolar quem perdeu seus entes queridos.

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