O manifesto dos profissionais que trabalham com economia

“Profissionais que trabalham com economia” publicaram um manifesto pelo fim do teto de gastos. Ainda bem que não são “economistas”! Aliás, já disse aqui que economia é a ciência que procura descrever sistemas em que os recursos são escassos. Em um mundo onde os recursos são infinitos, pois criados sem limites pelo Estado, os economistas são profissionais dispensáveis. Restam os “profissionais que trabalham com economia”, que são basicamente aqueles que contam histórias para justificar o fracasso de suas teorias.

Tive a paciência de ler o manifesto, apesar de já saber o que iria encontrar. Além da desonestidade intelectual de sempre, há um desconhecimento brutal de como funciona a realidade do mundo real.

A desonestidade vem de narrativas como a de que a retomada pífia do crescimento econômico a partir de 2017 se deveu à aprovação do teto de gastos no ano anterior. Ora, o teto de gastos não será um limitador de gastos até 2021 ou 2022! Ou seja, o governo continuou gastando normalmente (entre gastos discricionários e não discricionários) como se o teto não existisse, com exceção desse ano de 2020, quando foram aprovados gastos discricionários para combater os efeitos da pandemia. Ou seja, não houve limitador algum! O crescimento foi pífio por outros motivos, não pelo teto. Há outras desonestidades no “manifesto”, mas vamos ao cerne da questão.

Os “profissionais que trabalham com economia” apontam corretamente o problema básico que o teto de gastos veio endereçar: a trajetória explosiva da dívida pública. Achei isso digno de nota, porque normalmente nesses “manifestos” esse problema não é abordado. Gasta-se muita tinta falando-se de “direitos” e “incentivos ao crescimento”, como se essas necessidades, por si só, tivessem o condão de criar dinheiro do nada.

Mas, ao citar o problema, os “profissionais que trabalham com economia” tiveram que propor uma solução. E a solução foi… negar a existência do problema!

Segundo os manifestantes, os países desenvolvidos estão agora mesmo empilhando incentivos fiscais sem se preocuparem com a dívida. Cita Espanha e Itália, que sequer podem imprimir a própria moeda, fazendo a mesma coisa. E nós, que imprimimos o poderoso Real, porque não podemos fazer o mesmo???

Sinto-me até constrangido em explicar coisa tão básica. Sou engenheiro e, portanto, não sou sequer um “profissional que trabalha com economia”, quanto mais um economista. Mas não precisa ser um especialista da área para distinguir países desenvolvidos de países subdesenvolvidos.

Uma pequena digressão. Para financiar a guerra da independência, a União norte-americana emitiu títulos de dívida, comprados pela elite econômica das colônias. Obviamente, depois da guerra, a União não tinha como pagar aquela dívida, e então os seus detentores venderam seus títulos a preço de banana para especuladores, que tinham alguma esperança de receber algum dinheiro por aquilo. Deu-se então um embate dentro do governo: de um lado, Jefferson defendia o calote, pois esses especuladores não tinham o direito de receber 100% da dívida, na medida em que aufeririam um lucro injusto. Do outro lado estava Hamilton, o pai do sistema financeiro norte-americano, que defendia que dívida é dívida, e precisa ser paga para, assim, se manter a credibilidade do devedor. Hamilton venceu a batalha, e os títulos foram pagos a valor de face.

Conto essa história para mostrar que os EUA têm mais de 200 anos de credibilidade acumulada. É considerado um país sério, que cumpre seus compromissos. Todos confiam no papel pintado que o governo afirma ter valor, o dólar. Mesmo com tudo isso, há uma crescente desconfiança no mercado sobre a sustentabilidade da dívida americana.

Vamos ao caso de Espanha e Itália. Ambas emitem dívida em euros. O país que está verdadeiramente por trás do euro é a Alemanha, outro país absolutamente confiável. Há não muito tempo, a Grécia (que também emite dívida em euros) preferiu fazer um ajuste fiscal draconiano a abandonar o euro. Por que fizeram isso? Porque sabem que com o dracma sua população iria empobrecer ainda mais, pois a moeda seria rapidamente comida pela inflação. Espanha e Itália também sabem disso e, portanto, mantém suas contas fiscais mais ou menos em ordem. A grande dívida que têm só é possível PORQUE emitem em euro, não APESAR DE emitirem em euro, como afirmado no manifesto.

E o Brasil? Bem, nosotros somos um pobre rapaz latino-americano sem dinheiro no banco. Temos histórico de calote de dívida em várias dimensões: calote mesmo (em 1987 decretamos moratória da dívida externa), confisco (Collor em 1990) e hiperinflação da década de 80, que é a forma mais perversa de dar calote na dívida. Estamos vivendo um período inédito, em que nossa moeda não perde muito valor com o tempo, mas trata-se de uma exceção em nossa história, não uma regra. Essa conquista só foi possível porque mantivemos algum grau de disciplina fiscal nos últimos 25 anos. A mesma disciplina vilanizada pelos “profissionais que trabalham com economia”.

Este “profissionais” sugerem que, pelo fato de os financiadores da dívida serem , em sua grande maioria, brasileiros, não haveria problema de financiamento, pois não haveria para onde fugirem. Chegam ao extremo de sugerir que, se houvesse uma “fuga de capitais” para o exterior, o Banco Central teria instrumentos para lidar com o problema. Claro, fechando as fronteiras para o livre fluxo de capitais, o que nos tornaria no momento imediatamente posterior, um pária internacional sem acesso à poupança externa. Como geramos déficit em conta corrente, não teríamos com quem nos financiar, gerando uma desvalorização brutal da moeda e inflação. Já vimos esse filme muitas vezes.

O que esses “profissionais que trabalham com economia” estão sugerindo é uma volta a um passado de irresponsabilidade. Queremos caminhar para frente, não para trás. Corremos sério risco de jogar 25 anos de estabilidade monetária pela janela. Espero sinceramente que os verdadeiros economistas, aqueles que trabalham com escassez de recursos, façam ouvir a sua voz.

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