Os invisíveis

O Bolsa Família definitivamente está na moda.

Depois de anos sendo criticado como “esmola” e “inibidor do trabalho”, o programa de renda complementar do governo é unanimidade em todo o espectro político. Desde a direita até a esquerda, praticamente todos os candidatos a prefeito estão prometendo alguma versão de “Renda Básica”. Sem contar o governo federal, que está desesperado em busca de um espaço no orçamento para a extensão do Auxílio Emergencial.

Conta a narrativa que a pandemia nos fez descobrir um “exército invisível” de milhões de pessoas necessitadas do auxílio, e que estavam fora do Bolsa Família. Seriam os trabalhadores informais, com renda insuficiente para uma “vida digna”.

Bem, tudo isso não passa de uma falácia.

Que existem milhões de brasileiros que não ganham o suficiente para uma “vida digna” não é novidade para ninguém. Esses “invisíveis” eram invisíveis somente para quem não queria enxergar. A falácia, no entanto, é achar que o governo consegue resolver o problema da pobreza com um programa de renda básica.

Vamos aos números. Um excelente relatório da gestora Verde traz algumas informações preciosas a respeito do Auxílio Emergencial (AE) patrocinado pelo governo. Destaco dois gráficos abaixo.

O gráfico 2 mostra a relação entre dívida pública e tamanho do auxílio emergencial (ambos em proporção ao PIB) de países emergentes selecionados. Observe como o Brasil foi um dos países que mais gastaram (10% do PIB), sendo um dos mais endividados. Peru e Chile gastaram mais ou menos o mesmo, mas ambos têm uma dívida pública muito, mas muito menor. Comparando com outros países, vemos o tamanho da irresponsabilidade que foi esse AE.

O gráfico 8 mostra a generosidade do AE por outro ângulo: em maio, a renda média da população que recebeu o AE era de 71% da sua renda normal. Portanto, houve uma queda de 29% na renda desta população. No entanto, o AE repôs 53% da renda, elevando a renda a 124% do que essa população ganhava antes. Este número, em agosto, estava em 138%! Ou seja, as pessoas que recebem o AE, na média, estão ganhando 38% a mais do que ganhavam antes da pandemia! E o relatório afirma que este número provavelmente está subestimado: como o valor de pagamentos reportado pelo Tesouro é maior do que o número captado pelo IBGE (que é a fonte desses dados), o relatório estima que, na verdade, a renda dos beneficiários deve ser, na média, 74% superior ao que era antes da pandemia!

Será que encontramos a fórmula mágica da riqueza? Bastaria o governo se endividar e distribuir dinheiro? Muitos dizem que R$ 600 é muito pouco, que não dá para viver com essa miséria. É verdade, para quem está acostumado com o padrão de vida da classe média. O fato, no entanto, é que o Brasil é um país pobre. Essa bobagem de dizer que o Brasil é um país rico com a população pobre é só uma falácia. As “riquezas” do Brasil não servem de nada se não houver educação e tecnologia que as retirem da terra e façam alguma coisa de útil com elas. Produtividade, esse é o nome do jogo.

E, nesse jogo, Bolsa Família, Auxílio Emergencial, Renda Isso, Renda Aquilo, significa só pegar dinheiro de um bolso em silêncio e colocar no outro bolso com banda e fanfarra. Sem não antes cobrar um pedágio para manter a máquina do Estado funcionando.

Não há um centavo gasto hoje pelo Estado que não seja absolutamente justificável, que não seja bom, belo e justo. Desde a “aposentadoria dos velhinhos que merecem um fim de vida digno”, passando pelos “professores que cuidam do futuro do Brasil”, até a “ajuda a setores que geram emprego”, todos os gastos do governo são meritórios. O problema é que há muitos outros gastos meritórios que não estão no orçamento do governo, e que estão forçando a sua entrada. O Fundeb conseguiu entrar. Agora é a vez do AE. Afinal, descobrimos um “exército de miseráveis invisíveis” que precisam de ajuda.

Qualquer brasileiro é capaz de apontar o dedo para gastos “absurdos” do governo. Note, no entanto, que nunca se trata de gastos consigo mesmo. Nunca ouvi ninguém dizer que acha um absurdo as isenções de que usufrui no imposto de renda, ou os subsídios que lhe permitem pagar menos imposto na sua empresa, ou um funcionário público dizer que está ganhando acima do que a sua produtividade lhe permitiria. O problema sempre são “os outros”.

No final, como todo gasto é bom, e é sempre um pepino político cortá-los, aumentamos a dívida e a carga tributária. Até que, em determinado momento, o país para e não sabemos porque. Distribuímos o que não produzimos. Vamos fabricando dinheiro para iludir a população e, em certo momento, descobrimos que não passa de papel pintado sem valor algum. Hipotecamos o futuro em nome da justiça social.

Precisamos nos convencer de que somente a atividade econômica é capaz de enriquecer as pessoas. Não há mágica: programas de renda básica são bons, assim como são bons todos os outros gastos do governo. Só que, claramente, chegamos a um ponto em que os gastos do governo não cabem mais no país. A coisa vai explodir. E, como sempre, serão os mais pobres os que perderão mais.

O DNA Latino-Americano

Este domingo marca o início do processo constituinte do Chile. Depois dos protestos que varreram o país no ano passado, decidiu-se que o Chile precisava de uma Nova Constituição. A antiga, ainda do tempo daquele que não se pode nominar, não serve mais.

O Chile precisa de uma Constituição que, no dizer de uma cientista política, defina “garantias que levem a uma sociedade mais igualitária”, e que responda à questão de “até que ponto o Estado é responsável pelo mínimo social, para garantir uma vida digna e impedir que se morra de fome”.

Podemos ajudar nossos irmãos chilenos. Vivemos essa experiência pós um período ditatorial, em que o Brasil, prenhe de esperanças em um novo tempo, pariu a chamada “Constituição Cidadã”. Esta Nova Constituição estabeleceu uma sociedade mais igualitária, onde o Estado garante uma vida digna, de modo que ninguém mais morre de fome no país.

Só que não.

Abaixo, mostro o gráfico do crescimento do PIB/capita (conceito de Purchasing Power Parity) do Brasil e do Chile desde 1988, ano de nossa Constituinte. Em 1988, o PIB/capita do Brasil era 37% maior que o PIB/capita do Chile. Em 2019, a relação se inverteu: o PIB/capita do Chile é 63% maior que o PIB/capita brasileiro. De outra maneira: enquanto a renda brasileira cresceu 2,7% ao ano nos últimos 30 anos, a renda chilena cresceu o dobro: 5,4% ao ano.

Mas hão de dizer que crescimento econômico e de renda não quer dizer nada. O que importa é uma “sociedade igualitária”. Bem, ainda continuo achando que, em casa onde falta pão, todo mundo grita e ninguém tem razão. Mas, vamos assumir que é assim mesmo, que não importa que todos sejam pobres, desde que todos sejam pobres igualmente.

Pois bem. Coloquei um segundo gráfico, com a evolução do índice de Gini dos dois países. O índice de Gini, como sabemos, mede a distribuição de renda de um país. Quanto menor, melhor a distribuição. Em 1988, a diferença do índice de Gini brasileiro para o chileno era de 4 pontos. Em 2019, essa diferença aumentou para nada menos do que 9 pontos. Ou seja, nesses 30 anos, a sociedade chilena distribuiu mais a renda do que a brasileira.

Mas não acaba por aí. Um consultor prevê, para os próximos anos, “um cenário de mais gastos e mais impostos no Chile”.

Não precisa ser um consultor para isso. Basta olhar o que aconteceu com a carga tributária brasileira desde a Constituição Cidadã: em 1988, o Estado precisava de 22% do PIB para ser financiado; hoje, precisa de 38% do PIB sendo que 35% de carga tributária e 3% de déficit primário.

O Chile era o país que parecia ter escapado da sina latino-americana de adoração da pobreza. Mas não. A carga do DNA falou mais forte. Não sei se estarei vivo daqui a 30 anos para escrever um post sobre a estagnação econômica e o aumento da desigualdade causados pela Constituição Cidadã chilena. Por isso, já deixo registrado aqui o que vai acontecer. E, claro, o culpado será o “modelo capitalista concentrador de renda”.

O retrato do judiciário brasileiro

Nunca a citação “uma imagem vale mais do que mil palavras” fez tanto sentido.

A imagem abaixo descreve o sistema judicial brasileiro melhor do que mil palavras.

Por cima, visível ao grande público, uma justiça vetusta, respeitável, vestida com a capa da virtude e da imparcialidade.

Por baixo, invisível ao grande público, uma justiça nua, despudorada, pronta a atender aos interesses mais inconfessáveis.

Que fique claro que esta não é uma crítica ao magistrado em particular (que tem direito à intimidade como qualquer cidadão) ou aos magistrados em geral. Estamos falando do sistema de leis e interpretações que mantém a formalidade visível, enquanto se oferece nua, longe dos olhos dos cidadãos, a quem pode pagar mais.

A verdadeira idade de Pelé

Édson Arantes do Nascimento faz 80 anos amanhã. Parabéns.

Mas Pelé, não.

Pelé tem a idade que cada um lhe dá, de acordo com o seu exclusivo critério. Para mim, Pelé nasceu às 16:15 hs do dia 29/06/1958, horário de Estocolmo. Neste dia, neste exato momento, Pelé dá um chapéu no zagueiro dentro da área e, sem deixar a bola cair no chão, arremata para o que seria o 3o gol da seleção brasileira na final da Copa do Mundo contra a Suécia. Este gol fez nascer Pelé para o mundo, na minha humilde opinião.

É ocioso ficar discutindo quem foi o maior jogador de todos os tempos. Há gosto para tudo. Pelé não tinha a plasticidade de um Maradona, ou a visão de jogo de um Beckenbauer, ou o calcanhar mágico de um Sócrates. Mas Pelé é imbatível em um quesito: resultados.

Pelé tinha um jogo absolutamente objetivo. Nenhum toque de bola, nenhum movimento é supérfluo. Tudo é feito para o gol. Pelé era um predador do gol. Não importa se o gol era feio ou bonito, pensado ou sem querer. O que importava era que acontecesse. O gol citado acima foi uma pintura. Mas, observando o lance, fica claro que não tinha maneira melhor de concluir o lance. Era a forma mais econômica, clean. Foi um gol de Pelé.

Dizem que Pelé só tem 1.258 gols porque jogou no futebol brasileiro. Fosse na Europa, a história teria sido outra. Há duas falhas nesse raciocínio. A primeira é que, naquela época, os melhores jogadores ficavam no Brasil, não iam para a Europa. Então, o campeonato brasileiro era do nível do europeu. Tanto é assim que ganhamos 3 Copas do Mundo com seleções formadas localmente. A segunda falha é numérica: apesar das controvérsias diante desse número, é óbvio que se trata de uma cifra gigantesca. Mesmo que tivesse 30% menos, ainda assim seria uma enormidade. Não vale a pena perder tempo discutindo.

Meu falecido pai era carioca. No início da década de 60, o Santos fazia muitas partidas no Maracanã. Os jogos da Libertadores, por exemplo, eram muitas vezes mandados no estádio carioca. Ele foi testemunha do jogo Flamengo 1 x 7 Santos, com três gols de Pelé, em 1961. A torcida aplaudiu de pé o espetáculo. Quando se mudou para São Paulo, começou a torcer pelo Santos, paixão que passou para os seus filhos. Nesse sentido, sou viúva do Pelé, apesar de nunca tê-lo visto jogar pessoalmente. Sem dúvida, Pelé é o responsável, até hoje, pela torcida que o Santos tem.

Cada um vai ter uma opinião sobre quem foi o maior jogador de todos os tempos. Sempre que me provocam, dou minha opinião: Pelé. E dou meu motivo: quando um moleque de 17 anos fizer um gol em uma final de Copa do Mundo chapelando um zagueiro dentro da área, podemos voltar a conversar sobre esse assunto.

Mais um pouco do Professor Ioannidis

Fui dar uma olhada no paper do professor John Ioannidis, que concluiu que o índice de fatalidade da COVID-19 é de 0,24% (não 0,23%, conforme tuíte que colei aqui antes – por isso que eu recomendo ir sempre à fonte).

Bem, ainda não foi revisado por pares (peer reviewing), é apenas um pre-print. Trata-se de um meta-estudo, em que o pesquisador faz um levantamento de estudos já publicados, muitos deles sem peer-reviewing também.

O professor Ioannidis procurou estudos que especificamente medem a população infectada através de levantamentos sorológicos. Divide então o número de mortes até um determinado período para chegar no índice de fatalidade. Foram considerados 42 estudos específicos e mais 10 estudos nacionais não publicados.

O autor é muito cuidadoso em dizer que há uma imensa variedade de distorções nos estudos, de modo que é muito difícil chegar a um número que valha para todos. Ele próprio diz que a heterogeneidade é muito grande, o que dificulta tirar conclusões. A mediana é apenas uma grandeza de referência, não serve como guia para políticas públicas específicas de cada região. O índice de mortalidade varia de zero em algumas regiões da China até 1,54% em Connecticut. No Brasil, temos 0,23% em um estudo com 133 cidades, 0,39% no Espírito Santo, 0,11% no Rio de Janeiro e 0,39% no Rio Grande do Sul.

Bom, este é o estudo. As incertezas envolvidas são imensas para cravar um número, mesmo porque deve variar bastante de região para região. Com certeza a mortalidade não é maior que 1%, mas também não parece ser muito menor do que 0,2%. Parece tratar-se de uma doença por volta de 10 vezes mais mortal do que a H1N1, cujo índice de mortalidade é de 0,02%.

O trecho que achei mais curioso (destaque abaixo) foi um que o autor procura justificar altas taxas de mortalidade em certos hotspots a alguns fatores, entre os quais hospitais lotados e o uso desnecessário de respiradores e hidroxicloroquina.

Ou seja, o autor reconhece que evitar a lotação de hospitais diminui a taxa de mortalidade. O que nos leva à conclusão de que o índice de fatalidades só está neste relativamente baixo nível porque se procurou evitar a disseminação rápida da doença através do distanciamento social. Caso contrário, seria maior, pois os hospitais não dariam conta. Acho que esta é a maior falácia das conclusões tiradas de maneira açodada deste número: considera-se a taxa de mortalidade como uma variável exógena, uma característica da doença, sem considerar fatores ambientais. O autor deixa bem claro na parte da discussão do trabalho: “o índice de fatalidade não é uma grandeza física constante”. Portanto, varia de acordo com características locais, inclusive a capacidade de tratar a doença.

Quanto à menção da hidroxicloroquina como fator de piora do índice de fatalidades, sem comentários.

A verdadeira letalidade da Covid-19

Está causando grande furor o estudo do epidemiologista de Stanford, John Ioannidis. Segundo o pesquisador, a letalidade da COVID-19 seria de apenas 0,23%. E, para pessoas abaixo de 70 anos de idade, seria de irrisórios 0,05%.

Quatro observações a respeito.

Primeiro: esta letalidade é muito alta se comparada com a gripe comum ou mesmo com a H1N1, a última grande epidemia que enfrentamos. No caso da H1N1, estudos posteriores encontraram letalidade da ordem de 0,02%. A letalidade da COVID-19 seria, portanto, aproximadamente 10 vezes maior. Isso está em linha com a comparação que fiz alguns dias atrás entre a letalidade da SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave) em 2009 – ano da H1N1 – e agora em 2020: 20 vezes mais óbitos para 1,5 vezes mais casos, o que dá uma letalidade aproximadamente 13 vezes maior.

Segundo: o número da letalidade parece em si baixo, mas é porque normalmente temos dificuldade em avaliar probabilidades muito pequenas. Mas 0,23% não é um número baixo. Entendo que este percentual se refira a todas as pessoas que morreram ao ficarem doentes. Como, em princípio, toda a população está suscetível de ficar doente (com sintomas ou não), 0,23% sobre 211 milhões de brasileiros resultaria em quase 500 mil óbitos. Já tivemos 150 mil. Se os 0,23% estiverem corretos, ainda teríamos mais 350 mil óbitos, se não houver uma vacina antes.

Uma outra forma de ver o tamanho dos 0,23% é fazer-se a seguinte pergunta: se alguém lhe dissesse que a cada 400 voos um vai cair, você entraria em uma avião? Antes da epidemia havia cerca de 200 mil voos ao redor do mundo. Imagine 500 aviões caindo por dia. Isso é 0,23%.

Terceiro: Se 0,23% parece baixo, o que dizer de 0,05%? Quase nada, não é mesmo? O problema é o que esse número esconde. Se a letalidade é de apenas 0,05% para pessoas abaixo de 70 anos, qual a letalidade para pessoas acima desta idade? Se a letalidade total é de 0,23% e os maiores de 70 anos representam aproximadamente 6% da população brasileira (estimativa do IBGE para 2020), a letalidade para os mais idosos seria de cerca de 3%. Bem, 3% já não é uma letalidade desprezível. Há quem defenda a “quarentena vertical” para este problema, apesar da operacionalização bem complexa. Mas, no final, se não houver vacina, todos serão contaminados, e perderemos 3 de cada 100 idosos para a COVID-19.

Quarto: por fim, a menção à estimativa inicial de 4% tem como objetivo sugerir que as medidas tomadas inicialmente, inspiradas que foram nessa estimativa inicial, foram exageradas. Em primeiro lugar, era a informação do momento. “With the benefit of hindsight”, como dizem os americanos, é fácil dizer que estava errado. Mas era o que tínhamos naquele momento. E aquela estimativa inicial foi rapidamente revisada para um range de 0,5%-1,0%, que é mais ou menos o que temos até o momento. O índice de 0,23% também ainda precisa ser provado, trata-se também de uma estimativa. Pode ser maior ou menor.

Resumindo: cada um vai escolher os números que melhor corroborem a suas crenças. Afinal, é para isso que a ciência estatística foi inventada.

Biden vai precisar de uma equipe heterodoxa? Podemos ajudar.

Este artigo foi publicado no Financial Times, e reproduzido no Valor Econômico. Faz parte do acervo cada vez mais abundante de artigos que apontam os males do capitalismo, oferecendo soluções que requerem um ser humano, digamos, especial, para darem certo.

A editora especial do FT em Nova York começa o artigo apontando o grande mal a ser combatido: “a distância histórica entre a sorte das companhias e a dos trabalhadores americanos”. Segue-se então uma peroração bastante típica sobre o contraste entre o valor das companhias em Wall Street e o salário dos trabalhadores (e o desemprego) em Main Street.

A autora até resvala no motivo principal do aumento deste distanciamento, ao reconhecer que grande parte da valorização recente da bolsa se deve à valorização das empresas de tecnologia, que empregam pouco e, em grande parte, apenas mão-de-obra muito especializada. Mas escorrega ao dizer que a valorização dessas companhias “nada tem a ver com a atual contribuição dessas companhias para a economia”. Uau, isso é que é entender o papel da inovação para a atividade econômica. Mas, seguimos.

Como, segundo a autora, 84% das ações são detidas por apenas 10% das famílias americanas, a valorização das ações somente interessaria a esses 10%. O fato de as empresas melhor capitalizadas serem capazes de investir mais e criarem mais riqueza para a sociedade como um todo é apenas um detalhe secundário. O que importa tão somente é a valorização das ações para os seus acionistas. Mr. Magoo consegue enxergar mais longe.

Em seguida, a autora desfila toda a sua ignorância sobre o papel das expectativas dos agentes econômicos, ao “acusar” a bolsa de reagir mal a “boas” notícias na economia, quando, na verdade, a bolsa já subiu ANTES da economia reagir, antecipando essa reação. Quando a economia já está se acelerando, a bolsa antecipa o fim da festa, momento em que o Fed vai começar a aumentar a taxa de juros. Isso é tão básico que dá vergonha ter que explicar para uma editora do Financial Times.

Mas o melhor do artigo não é o diagnóstico. Bem ou mal, trata-se da mesma ladainha a que já estamos acostumados. O slogan de Biden, “precisamos começar a recompensar o trabalho, não a riqueza”, é dessas platitudes que fazem o Conselheiro Acácio parecer um intelectual de primeira linha. O melhor, como eu ia dizendo, é a receita para mudar “tudo isso que está aí”, como diria Brizola.

A receita envolve “um grande estímulo fiscal”, pois a política monetária está esgotada. Mas a autora reconhece que há “uma crescente preocupação com o endividamento”. Como resolver a quadratura do círculo? Simples: o setor público deve assumir “dívidas produtivas”.

O que seriam essas tais “dívidas produtivas”? Ora, simples: dívidas que “criem empregos no curto prazo e direcione os investimentos de longo prazo para áreas estratégicas de alto crescimento, como a de tecnologia limpa”. O “limpa” tem que estar na frase, senão não seria uma solução, não é mesmo?

A autora conclui que o plano de Biden de “vários trilhões de dólares” endereça exatamente essa combinação. Seria, então, uma “dívida produtiva”. Mas, e tem sempre um mas, com o diabo metendo o rabo nos detalhes, a autora coloca uma condição: “se executado corretamente”. Quer dizer, o plano é bom, mas precisa ser bem executado. Para isso, será necessária “uma equipe de tecnocratas não apenas dispostos e competentes, mas verdadeiros líderes, com capital político suficiente para impulsionar a mudança”. Afinal, a ambição não é pequena: trata-se de, nada menos, “remodelar toda a economia americana”. Uau! Remodelar toda a economia americana desde os gabinetes da Casa Branca. Isso sim é sonhar alto.

Temos aqui no Brasil uma equipe heterodoxa pronta e acabada de “tecnocratas dispostos e competentes”, coordenados por uma “líder com capital político”, que foram injustamente dispensados em 2016, quando estavam justamente “remodelando toda a economia brasileira” através de “dívidas produtivas”. Poderíamos exportá-los para que ajudassem Biden nessa tarefa titânica.

O problema desses planos mirabolantes não é o fato de não serem bons ou de não partirem de bons diagnósticos. O problema desses planos é que exigem um novo ser humano, um que ainda vai nascer, virtuoso e bom. É o mesmo problema do socialismo: a ideia é boa, o problema é a implementação no mundo real dos seres humanos.

A criminalidade da imprensa

Manchete na Folha de São Paulo:

Manchete no Globo:

Manchete no Estado de São Paulo:

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020 veio com uma novidade: ao contrário de todos os outros anos, os responsáveis pela publicação acharam por bem divulgar os números do 1o semestre do ano. Normalmente, este Anuário é publicado em meados do ano, com os dados do ano anterior. Por algum motivo não explicado, neste ano foi publicado em outubro, com os dados de 2019 e também do 1o semestre de 2020. E, coincidência, os dados vieram piores do que 2019, o melhor ano da série histórica.

Fico me perguntando: por que esta mudança de metodologia, justamente no ano de maior queda de mortes violentas da série? Terá sido a dificuldade de se encontrar uma manchete condizente? A se pensar.

O prefácio do Anuário termina com o seguinte texto: “… infelizmente, é fato que o Brasil perdeu, entre 2019 e 2020, uma grande oportunidade de transformar a tendência de redução das mortes violentas intencionais observada entre 2018 e meados de 2019 em algo permanente e que servisse de estímulo para salvar ainda mais vidas. O Brasil perdeu-se em múltiplas narrativas políticas em disputa e a população, mais uma vez, está tendo que lidar com os efeitos deletérios e perversos de um modelo de segurança pública obsoleto e que até hoje não foi palco de grandes reformas, mesmo após a Constituição de 1988”. Bem, podemos ver os “efeitos deletérios e perversos de um modelo de segurança pública obsoleto” nos gráficos anexos, feitos a partir dos dados do próprio anuário (assumi que o número de mortes violentas do 1o semestre de 2020 se repetiria no 2o semestre).

No Brasil, depois de atingir o máximo de 30,9 mortes/100 mil habitantes em 2017, este número caiu para 22,7 em 2019 e aumentou para 24,3 em 2020, segundo menor nível da série nos últimos 10 anos.

No RJ, depois de atingir o máximo de 40,4 mortes/100 mil em 2017, este número caiu para 31,4 em 2020, terceiro ano consecutivo de queda.

Em SP, o número de mortes violentes vem caindo consistentemente desde 2014, ano em que ocorreram 13,2 mortes/100 mil, até atingir a mínima de 2019 de 8,9. Em 2020, houve um aumento para 9,5, mesmo número de 2018.

Será mesmo que esses números merecem o lamento das manchetes e da análise do Anuário? Não será que deveríamos investigar o que vem DANDO CERTO no combate à criminalidade e, especialmente, às mortes violentas? Os dados de 2020 mostram um repique no número de assassinatos em alguns estados e no número agregado brasileiro, mas estão longe de demonstrar uma volta a uma tendência negativa. Esta volta pode até acontecer, mas apenas um ponto (na verdade, meio ponto, porque só temos os dados do 1o semestre deste ano) parece pouco para chegar a qualquer conclusão.

A não ser que o objetivo seja criar manchetes negativas. Aí, bora procurar dados que corroborem a tese. Nem que, para isso, se tenha que mudar a metodologia de divulgação. Vale tudo por uma boa manchete.

O clique é soberano

Há alguns dias, ficamos sabendo que o Departamento de Justiça dos EUA estaria preparando uma ação antitruste contra o Google, que seria forçado a vender o seu navegador Chrome. Lembrei-me de outra aplicação famosa da lei antitruste.

Em 1984, a então gigante e quase monopolista AT&T foi obrigada a se desmembrar em 7 companhias regionais, as chamadas “Baby Bells”, em homenagem ao fundador da AT&T, Alexander Graham Bell, o inventor do telefone.

Esta lembrança só reforça a minha percepção de que esta lei foi feita para uma economia que está, aos poucos, perdendo relevância. Dividir a AT&T fazia todo sentido: afinal, oferecer infraestrutura telefônica envolvia investimentos massivos em capital e localização geográfica, fazendo com que a barreira de entrada fosse não só gigantesca, mas, em alguns casos, impossível de ultrapassar. Basta lembrar que a AT&T também controlava a Western Electric, a maior fabricante de equipamentos de telefonia do país. Então, não havia por onde entrar, dado que a companhia era, ao mesmo tempo, a maior vendedora e a maior compradora de infraestrutura de telecomunicações. Vale lembrar que as 7 companhias são hoje 3. A lógica econômica acaba falando mais alto.

O que temos no caso do Google? Um software. Não há barreiras físicas. O mercado está aberto para qualquer empresa que queira encarar os investimentos necessários para fazer um bom motor de buscas ou um bom navegador. Quem manda é o clique do usuário.

O interessante é que o Google desenvolveu o Chrome do zero e conquistou o mercado do então dominante Explorer, da Microsoft. Quando o Chrome foi criado, em 2008, a Microsoft estava sob supervisão antitruste desde 1998 por parte do governo norte-americano, pois o Windows trazia como navegador-padrão o Explorer. Esta ação antitruste acusava a gigante do software de monopolizar a indústria de navegadores, prejudicando concorrentes menores, notadamente o Netscape. Como se o usuário não pudesse trocar o seu navegador com um clique, como atualmente o faz para mudar do Edge (o novo navegador da Microsoft) para o Chrome. Aliás, até hoje o Windows traz o navegador da Microsoft como default, mas é o Google que está sendo acusado de monopolista. A ação antitruste contra a Microsoft terminou em 2013, pois perdeu o sentido.

Essa discussão toda chama-me a atenção para outro ponto que tem causado o furor dos defensores da concorrência com base nos parâmetros do século XX: a compra, pelo Facebook, do Instagram e do WhatsApp. Seria uma forma nada sutil de acabar com a concorrência em nichos nascentes. Interessante que o Google construiu o Chrome do zero, mas é acusado da mesma forma, o que me leva a concluir que dá na mesma comprar concorrentes ou desenvolver soluções do zero.

Alguns dirão que comprar concorrentes elimina uma concorrência futura indesejável. Quem disse? Quem pode afirmar que aquelas empresas nascentes seriam concorrentes de peso se o Facebook resolvesse desenvolver suas próprias soluções internas? Quem disse que as decisões empresariais de Instagram e WhatsApp lhes garantiriam o sucesso que têm hoje, e não a lata do lixo da história reservada a milhares de empresas que tentaram ser o “próximo Facebook”? Sinceramente, acho mais provável que Instagram e WhatsApp sejam o que são hoje justamente porque foram comprados pelo Facebook.

Enfim, tudo isso me parece uma discussão paleozoica, em um mundo onde o usuário tem total domínio e liberdade sobre o serviço que quer usar ou deixar de usar. Ações antitruste são inócuas em um mundo onde o clique é soberano.