A agenda por trás do argumento de autoridade

Se há uma categoria de pessoa que tem passe livre para dar palpite e ser escutado com respeito, essa categoria é a de “cientista”. Se ganhou Prêmio Nobel, então, nem se fala. Todos as suas opiniões, mesmo em áreas que não têm nada a ver com seu campo de estudo, recebem atenção. Afinal, trata-se de um “cientista”.

No Brasil, essa reverência é elevada à enésima potência se o cientista bate cartão em uma universidade nos EUA ou na Europa. Aí, trata-se de uma sumidade. Se o cientista, além disso, é brasileiro, ganha ainda mais respeito, por levar as cores verde e amarela para a terra dos gringos.

Nada contra opiniões. Eu mesmo não paro de dar palpites em vários assuntos. Particularmente, procuro evitar críticas “ad hominem” e sempre verificar a pertinência dos argumentos em si. O que não dá é o inverso: só porque é um “cientista” que diz algo, não se torna automaticamente “a verdade”.

Isso é tanto mais importante quanto sabermos que cientistas podem ter opiniões diferentes sobre os mesmos assuntos. E essas opiniões podem ser (e muitas vezes são) influenciadas pelo posicionamento político do cientista. Então, o truque mais manjado é procurar cientistas que confirmem as nossas próprias ideias. E, no caso de reportagens, que confirmem a agenda do veículo de imprensa.

Só isso justifica a recente exposição de ideias do cientista Miguel Nicolelis a respeito da pandemia, como por exemplo, em entrevista de hoje (26/05/2021) no jornal Valor Econômico.

Quando vi o nome de Nicolelis pela primeira vez em uma reportagem, faz uns meses, aquele nome não me soou estranho. Googlei e… voi lá! Nicolelis foi o idealizador do projeto do exoesqueleto que deu o pontapé inicial na abertura da Copa do Mundo de 2014, no Itaquerão.

Pensei: “puxa, será que desistiu dessa linha de pesquisa e passou a estudar epidemiologia?” Não. Nicolelis continua trabalhando com interação entre cérebro e máquina. É tão epidemiologista quanto eu ou você. Mas, o fato de ser um cientista brasileiro que trabalha em uma universidade americana lhe dá passe livre para palpitar e ser ouvido.

Nicolelis foi designado coordenador do Comitê Científico do Consórcio Nordeste para o combate à pandemia. Mesmo não sendo epidemiologista. O convite foi feito pelo governador Rui Costa, do PT. E isso diz alguma coisa.

O projeto de Nicolelis foi mais um dos “campeões nacionais” eleitos pelo governo Dilma para receber verbas discricionárias. Recebeu R$ 33 milhões do Finep para o desenvolvimento do exoesqueleto a ser exibido na abertura da Copa. Isso foi em 2013/14. A ligação com governos do PT, portanto, vem de longe.

Nada mais útil, portanto, do que ter a opinião de um cientista reconhecido e que tenha, digamos, uma visão de mundo de acordo com a ideia que se quer transmitir. Mesmo que sua formação não permita dar palpites mais embasados do que, sei lá, as de um ortopedista. Mas isso pouco importa: o que conta é a opinião “certa”, aquela de acordo com a agenda. E isso está garantido pelas, digamos, credenciais políticas de Nicolelis.

PS.: É bom deixar claro que concordo com grande parte do que ele diz a respeito da pandemia, em particular sobre a velocidade da vacinação. Mas não é este o ponto. O ponto é porque ouvir Nicolelis a respeito desse assunto.

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