Terrivelmente evangélico

André Mendonça foi, finalmente, sabatinado e aprovado para o STF. Sua indicação foi cercada de polêmica, dado que se trata de um pastor da Igreja Presbiteriana. Sendo o Estado brasileiro laico, ou seja, não tendo uma religião oficial, fica a dúvida: o mais novo ministro do STF pautará suas decisões pela Bíblia, em claro confronto com a laicidade do Estado?

Essa parece-me uma falsa questão e explicarei porquê.

Em primeiro lugar, não é porque uma norma moral foi acolhida por uma religião que, automaticamente, torna-se uma norma religiosa. Na verdade, é justo o oposto: as religiões, de maneira geral, acolhem normas morais universais. Por exemplo: “não matarás” ou “não roubarás” estão entre os 10 mandamentos da lei de Moisés, acolhidos também pelo cristianismo. Seria, no entanto, uma sandice dizer que condenar o assassinato ou o roubo torna-se uma decisão de cunho religioso somente porque fazem parte dos mandamentos recebidos no Monte Sinai. Portanto, decidir de acordo com a Bíblia não necessariamente fere o Estado laico. Aliás, não custa lembrar que a Constituição brasileira, em seu preâmbulo, invoca a proteção de Deus, o que não implica em uma religião oficial, o quê, portanto, está de acordo com a laicidade do Estado. Laicidade não implica ateísmo, o que o preâmbulo da constituição nos lembra a todo momento.

Em segundo lugar, todos os ministros do STF têm suas convicções religiosas, no sentido de como nos relacionamos com o transcendental. Mesmo os ateus, se houver, têm uma convicção de que não existe o transcendental, o que não deixa de informar as suas decisões. Cada ministro tem a sua história pessoal e as suas convicções. Não são robôs dotados de inteligência artificial, com algoritmos completamente independentes de suas convicções mais profundas. O fato de André Mendonça ser pastor presbiteriano apenas explicita qual é a sua estrutura de valores morais. Os outros ministros, pode ter certeza, também contam com sua própria valoração moral. Neste sentido, Mendonça leva uma vantagem sobre os outros, pois os seus valores são conhecidos de antemão, gostemos deles ou não, ao passo que os valores dos outros são explicitados apenas em suas decisões.

O problema se complica quando se trata de temas que, de alguma maneira, colocam o código religioso contra a moral dos tempos. Temos basicamente dois casos atualmente: aborto e preferências sexuais.

No caso do aborto, o mandamento “não matarás”, que é, em si, pacífico, carece da definição do que é um feto. Afinal, “não matarás” não se refere a plantas ou animais, somente a seres humanos. Seria o feto um ser humano? Além disso, matar é justificado, pelas religiões, em certas circunstâncias. A guerra justa ou a defesa da própria vida são alguns exemplos. Poderia o aborto ser classificado em alguma exceção desse tipo? Enfim, este é um assunto em que a estrutura de valores morais dos ministros conta muito em suas decisões. De TODOS os ministros, não somente do evangélico.

Chegamos, finalmente, ao caso que é o foco da reportagem em destaque.

Houve empate na votação sobre o direito de transgêneros escolherem o presídio onde querem cumprir pena, masculino ou feminino. A matéria coloca o voto do novo ministro, que desempatará a questão, como um “teste de fogo” para medir o grau de sua “laicidade”. Não está escrito, mas certamente considera-se que um voto contra o direito dos transexuais indicará uma interferência de suas convicções religiosas em uma decisão que deveria ser, em princípio, laica.

O que salta aos olhos, em primeiro lugar, é que a questão está empatada. Ou seja, cinco ministros, que não são pastores presbiterianos, votaram contra o direito dos transexuais. Não, você não verá nenhuma análise sobre como a convicção religiosa desses ministros influenciou os seus votos. Foram votos técnicos, baseados na Constituição. Assim como o foram os votos a favor. O que isso significa? Que a mesma Constituição permite diferentes interpretações, não necessariamente alinhadas com o zeitgeist. Fica, então, a pergunta: por que raios um voto contra de André Mendonça será necessariamente função de suas convicções religiosas?

O que nos leva ao cerne da questão: no caso do novo ministro, o problema não é que ele seja religioso em um estado laico. O problema é que sua agenda é conservadora, o que é um pecado mortal para a inteligentzia tupiniquim. O fato de ser pastor presbiteriano somente explicita essa agenda. Fosse um leigo com a mesmíssima agenda, a oposição seria a mesma. Afinal, o problema não está na religião em si, mas nas convicções profundas das pessoas.

Mendonça vai desempatar o caso dos transexuais presidiários. Seu voto será considerado, pela intelectualidade, uma concessão às suas convicções religiosas ou uma posição a favor da condição laica do Estado brasileiro. Não será nem uma coisa nem outra. Assim como cinco ministros votaram a favor e cinco votaram contra, Mendonça votará igualmente de acordo com a Constituição e de acordo com a sua consciência. Exatamente da mesma forma como fizeram os outros 10 ministros.

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