Editorial do Estadão repercute a participação da filósofa Shoshana Zuboff em seminário patrocinado pelo Instituto FHC.
Zuboff, para quem não conhece (e eu mesmo fui apresentado à doutora hoje), é autora de um best seller sobre as redes sociais, “O Capitalismo de Vigilância”. A ideia é conhecida: as Big Techs são monopólios que usam de seu poder para, através de algoritmos, manipular as pessoas, ameaçando os pilares da democracia.
Antes de continuarmos, vamos voltar um pouco no tempo. O ano é 2008, e Barack Obama é eleito presidente em uma campanha marcada por uma novidade: o uso intensivo das redes sociais. Antes que vocês me perguntem, não, não houve nenhum questionamento sobre manipulação ou ataques à democracia. Pelo contrário. Resgatei reportagem de 2010, em que o coordenador da campanha digital de Obama é celebrado no Campus Party daquele ano, e é chamado a explicar como a coisa funcionava. Todos os elementos das campanhas modernas estavam lá: microssegmentação, formação de pequenos grupos de pessoas que chamam seus amigos, interação do candidato com potenciais eleitores.
A coisa muda completamente de figura quando Trump vence as eleições de 2016 usando exatamente as mesmas ferramentas. A intelectualidade descobre, então, horrorizada, que esses instrumentos podem ser usados “para o mal”. Para dizer que não foi a mesma coisa, apareceu a história dos “russos” que manipularam as eleições. Os russos fazem o papel do George Soros na teoria da conspiração do outro lado. É a eleição de Trump que dá a largada para a caça às redes sociais.
No Brasil, a coisa foi ainda mais extrema. Se Trump ainda tinha todo um partido trabalhando por sua candidatura, Bolsonaro ganhou a eleição presidencial sem partidos e sem estrutura, gastando uma fração do que gastaram os outros candidatos. Seu segredo? Os mesmos de Obama: microssegmentação, formação de pequenos grupos de pessoas que chamam seus amigos, interação do candidato com potenciais eleitores. A intelectualidade foi à loucura.
Chamo a atenção para essa questão política porque é a única questão realmente importante. Digamos, por hipótese, que as redes fossem proibidas, desde o início, de veicular todo e qualquer conteúdo político. Duvido que a senhora Zuboff gastasse o seu precioso tempo escrevendo sobre como as redes sociais manipulam as pessoas para vender mais produtos. E mesmo que o fizesse (afinal, acadêmicos precisam produzir artigos), duvido que alcançaria o mesmo interesse. O próprio editorial do Estadão chama a atenção para o uso político das redes, não outro. E é compreensível: afinal, o processo de escolha dos representantes é o próprio coração de uma democracia representativa.
A questão é o que fazer. Shoshana Zuboff não esconde suas preferências. Em entrevista ao falecido El País em português, a filósofa não deixa por menos: “temos que começar do zero”.
Uau! Conhecemos outras tentativas de redesenhar a humanidade da maneira “certa” e que terminaram muito errado. Dá para intuir a vocação democrática da doutora.
O editorial do Estadão destaca outra fala de Mrs. Zuboff, essa um pouco mais razoável: “a democracia é a única ordem institucional com autoridade legítima para mudar nossos rumos”. Ok, concordo, assim como concordo que as pessoas deveriam fazer o bem e evitar o mal. O diabo, como sempre, faz morada nos detalhes. Por exemplo, há críticas ao Facebook pelos seus algoritmos que escolhem qual informação chegará na timeline das pessoas e, ao mesmo tempo, critica-se o mesmo Facebook por não moderar suficientemente a rede e permitir “discursos de ódio”. O que Shoshana e seus pares gostariam de ter é um “algoritmo do bem”, que livrasse o mundo do “mal”. O problema não são os algoritmos em si, mas que sejam usados para o “mal”. Mal este, claro, que sempre está “do outro lado”.
Os totalitarismos do século XX não precisaram de redes sociais para manipular os povos. TVs, rádios e jornais sempre filtraram o que vai ao grande público muito antes das redes sociais. As redes sociais são apenas mais uma forma de manipulação da verdade. Qualquer tentativa de regulação passa por censura de conteúdo. Vamos ver como se defenderá isso no âmbito democrático.
PS.: “Quebrar monopólios” não resolve o problema de fundo. Monopólio é problema econômico, de concorrência. Não tem nada a ver com a natureza em si do business. Se o Facebook fosse “quebrado”, seus filhotes funcionariam exatamente como a mãe funciona hoje. Afinal, redes sociais e toda a internet funciona na base de análise de dados, qualquer que seja o tamanho da empresa.