A data errada

Ontem foi 31 de março, dia da Revolução, nome pelo qual a mudança de regime de 64 era chamada quando eu estava no primário, e a data era comemorada em todas as escolas.

Note que evitei o nome “golpe” para fazer referência ao que aconteceu naqueles dias. Revendo jornais da época, você não vai encontrar essa palavra, por mais que procure. O Estadão, periódico acima de qualquer suspeita quando se trata de defender os valores democráticos, estampa em sua edição de 3 de abril a manchete: “Democratas dominam tôda a Nação”. A palavra “golpe” foi usada somente muitos anos depois, quando o evento sofreu a releitura comandada pelos ventos da história.

Ao chamar de “golpe” a deposição de Jango, a oposição a Bolsonaro perde o “big picture” e se apega a detalhes de fácil refutação histórica. E Bolsonaro, fincando pé nos acontecimentos de 31 de março e ”esquecendo-se” dos mais de 20 anos que se seguiram, perde a chance de se mostrar o democrata que afirma ser.

O verdadeiro golpe não se deu em 31 de março. Aquele movimento foi amplamente apoiado por todas as forças democráticas do país e, como diz Bolsonaro, Castelo Branco foi empossado pelo Congresso Nacional com o apoio de toda a mídia liberal. O golpe veio depois, quando Castelo não cumpriu a sua promessa de chamar novas eleições em 1965. O problema é que, como todo processo político, não há uma data a ser lembrada para esse golpe. Aos poucos, como dizia Magalhães Pinto, as nuvens da política se modificam lentamente e, quando você vai ver, a correlação de forças é outra.

A oposição a Bolsonaro deveria lhe confrontar não a respeito de 31 de março, com a fake news de que Jango foi derrubado fora da lei pelos militares, mas com o que se seguiu após 1965, quando os civis deveriam ter retomado o poder, de acordo com os princípios democráticos que nortearam a deposição de Jango. Ao confundirem as duas coisas, dá espaço a Bolsonaro para rebater facilmente com fatos históricos.

E Bolsonaro, se de fato tivesse a intenção de se mostrar um democrata, deveria condenar o regime que se seguiu ao não cumprimento da promessa de novas eleições em 1965. Ao não fazer isso e se apegar aos acontecimentos de 31 de março como representativos dos 20 anos seguintes, dá amplo espaço aos que duvidam de suas convicções democráticas. O fato de, até hoje, não ter atentado contra as instituições, não lhe serve de álibi, pois sabemos que atos são a combinação de convicção, instrumentos e oportunidade. Não ter dado o golpe não diz nada sobre a sua falta de convicção, mas somente sobre a falta de instrumentos e oportunidade. A sua convicção pode ser medida pela ausência de condenação aos 20 anos da ditadura militar.

Enfim, os dois lados dessa disputa erram ao se fixar na data de ontem. Apesar de marcar a queda de Jango, o início do novo regime somente se dá em algum momento de 1965. É neste ponto que ambos os lados deveriam focar seu embate.

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