Confiança 100%

A urna eletrônica é suficientemente segura. Repare que não disse “100% segura”. Não existe nada no mundo que seja 100% seguro. Quem faz gestão de riscos sabe que o máximo que se consegue fazer é mitigar riscos, nunca eliminá-los 100%. A urna eletrônica veio substituir a votação em papel justamente para diminuir o risco de fraude eleitoral. Não eliminar, mas diminuir.

A urna com o voto impresso acoplado seria um avanço para a auditoria do voto, aumentando ainda mais a segurança do processo. No entanto, dado o atual nível de segurança, já bastante robusto, concluiu-se que o custo adicional, além de possíveis problemas mecânicos que poderiam inviabilizar um número alto de urnas, não valeriam a segurança adicional. Em nossas casas fazemos a mesma conta o tempo inteiro: reforçamos a segurança até que o custo da segurança adicional não compensa o seu custo.

A pergunta feita pela enquete da Jovem Pan tira proveito dessa falha cognitiva ao perguntar se o internauta confia TOTALMENTE no processo eleitoral.

“Totalmente”, talvez eu mesmo, que confio no processo, respondesse que não. Não dá pra confiar em nada “totalmente”. O risco sempre vai existir. Confiamos de maneira razoável. Não se trata de 100% de segurança ou zero. Há um nível de risco em que podemos nos sentir confortáveis, a ponto de entrar em um avião e ter razoável certeza de que chegaremos ao nosso destino.

O público da Jovem Pan, uma rádio de apoio ao bolsonarismo, é enviesado. Qualquer enquete terá como resultado a tese bolsonarista, qualquer que seja. O uso da palavra “totalmente” só agrava a situação, o que, provavelmente, era a intenção da rádio. A enquete só confirma o que já sabemos: os bolsonaristas não confiam na urna eletrônica. Na verdade, a urna eletrônica serve como um bom bode expiatório para colocar em dúvida o processo eleitoral. Donald Trump e seus seguidores tiveram muito mais trabalho para alegar fraude eleitoral. Precisaram inventar uma série de histórias diferentes (todas elas devidamente refutadas, escrevi um longo post a respeito) para defender a tese da fraude. Aqui no Brasil é muito mais fácil: o TSE, que não é simpático a Bolsonaro, deixa propositalmente um flanco aberto para a ação de “hackers” a serviço dos adversários de Bolsonaro. Como isso se daria em grande escala, dado todo o processo, não fica claro, mas isso é o de menos quando se trata de “provar” uma tese.

O fato é que Bolsonaro está há muito tempo preparando o terreno para a tese da fraude. Uma parcela da população, a que segue Bolsonaro, está absolutamente convencida de que o processo é fraudulento, independentemente do resultado. Portanto, resta inútil qualquer tentativa de “provar” a segurança das urnas. Quem está convencido da tese não necessita de “provas”.

A invasão do Capitólio foi o ponto alto (ou baixo, a depender da perspectiva) da tese da fraude nos EUA. Aqui, bolsonaristas mais exaltados poderão tentar algo parecido se Bolsonaro for derrotado, mas dificilmente terão mais sucesso do que o exército brancaleone de Trump conseguiu, dado que igualmente não terão apoio institucional. Restará o chororô e a disputa política para a próxima eleição. Que será igualmente apurada em urnas eletrônicas, as mesmas que deram a vitória a Bolsonaro em 2018.

PS1: figura retirada de um post de Joel Pinheiro da Fonseca.

PS2: no post citado acima, há um vídeo de um debate sobre segurança das urnas entre um técnico do TSE e Diego Aranha, o crítico mais vocal sobre a segurança das urnas eletrônicas. Vale assistir para entender melhor a questão.

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