O segredo da mágica da redução da dívida

Acho graça quando bolsonaristas repercutem a narrativa de que o governo fez um “ajuste fiscal”, citando, para isso, o superávit primário de 2021 e a queda da relação dívida/PIB. Faz-me lembrar dos petistas que comemoravam o “espetáculo do crescimento” de Lula. Naquele tempo, os economistas amargurados insistiam que o crescimento na base de anabolizantes cobraria o seu preço em algum momento no futuro. A recessão de Dilma confirmou os prognósticos mais sombrios. Agora, esses mesmos economistas insistem que esse “ajuste fiscal” feito com base na surpresa inflacionária pode terminar muito mal.

Vamos entender o conceito. O grau de saúde fiscal de um país é medido pela trajetória da relação dívida/PIB. Se há uma estabilidade ou tendência de queda, os financiadores da dívida tendem a ficar calmos. Por outro lado, se a tendência é de aumento sem fim, os financiadores tendem a ficar nervosos, e pedem taxas de juros cada vez maiores para rolar a dívida. Pois bem: para que essa relação caia, é necessário que o PIB cresça acima da dívida, em termos nominais. O crescimento do PIB nominal, por sua vez, tem dois componentes: o seu crescimento real mais a inflação. Já o crescimento da dívida depende do tamanho das taxas de juros e de novas dívidas.

O que aconteceu em 2021? O PIB nominal cresceu cerca de 15%, sendo 4,5% real mais 10,5% da inflação. E o que aconteceu com a dívida? Como as taxas de juros perderam a corrida para a inflação (quem tem aplicação no Tesouro Direto sabe do que estou falando), a dívida cresceu menos do que o PIB. Além disso, as receitas do governo foram turbinadas pela inflação, ao passo que uma parte das despesas ficou congelada. Não é à toa que o funcionalismo público está indo para a greve. Então, tivemos aumento do PIB nominal maior que da dívida, e aumento da receita maior que da despesa. Tudo graças à inflação, ao rendimento pífio das aplicações financeiras e ao congelamento do salário do funcionalismo.

Aqui entra a manchete da reportagem do Valor.

A surpresa inflacionária de março pode estar indicando que teremos, mais uma vez, um efeito inflacionário sobre a dívida pública, diminuindo a relação dívida/PIB em 2022 a exemplo do que ocorreu em 2021. Note, e isso é de grande importância, que não estamos falando de inflação, mas de “surpresa inflacionária”. Para que a mágica funcione, é preciso que a inflação pegue de surpresa os agentes econômicos, não dando tempo de repassar para os juros a surpresa na inflação. Se não há surpresa, a dívida cresce tanto quanto o PIB, e não há efeito sobre a relação dívida/PIB.

Em um país com instituições monetárias funcionando, o BC reage ao aumento da inflação aumentando os juros mais do que proporcionalmente. Então, no 2o tempo do jogo temos a dívida crescendo mais do que o PIB, seja porque o seu custo aumenta, seja porque a atividade econômica se desacelera, diminuindo o crescimento da arrecadação. Sem contar as reposições salariais da inflação passada. Ou alguém acha que é possível manter os salários dos servidores públicos congelados para sempre?

Assim, para manter a bicicleta em pé, é necessário sempre produzir novas surpresas inflacionárias. Esta era a dinâmica da época da hiperinflação, em que a inflação andava ”aos saltos”, sempre mantendo os agentes econômicos desfasados em relação ao grande vencedor no processo, a dívida do governo. Esta também era a dinâmica do processo de “crescimento” dos governos do PT, que necessitava de cada vez mais estímulos para manter a bicicleta em pé, até que o dinheiro acabou.

Comemorar a “redução da dívida” feita com base em surpresa inflacionária é o mesmo que comemorar gol claramente ilegal. A diferença é que, no futebol, o próximo jogo começa no 0 x 0 e não existe a obrigação de “compensar” o gol roubado. Já na economia, as distorções se acumulam de um jogo para o seguinte e, mais cedo ou mais tarde, precisarão ser compensadas. Pelo bem ou pelo mal.

Coisa de doente

Nem vou entrar no mérito das preferências políticas de André Fran, quem quiser saber é só dar uma googlada. O ponto não é este.

A questão é chamar de doente (ou de gado, ou de idiota, ou de esquerdopata, ou de <complete aqui>) quem pensa diferente. Cada ser humano tem sua própria escala de valores, construída desde o útero materno e forjada pelas mais diferentes experiências de vida. Não concordar com a escala de valores de alguém porque não bate com a nossa é uma coisa. Outra coisa é atribuir algum desvio de caráter ou alguma falha na saúde mental de quem pensa diferente.

Essa discussão é muito delicada. Afinal, há realmente desvios de caráter ou doenças mentais que podem levar a comportamentos socialmente indesejáveis. Por exemplo, ninguém, em sã consciência, aprovaria o comportamento dos Nardonis.

Mas há uma linha que separa o crime ou a doença da preferência política. Muitos atribuem ao mau caráter ou a uma doença o apoio a este ou àquele político, quando, na verdade, há uma diferença de escala de valores. E, por que não dizer, preferências subconscientes que fazem as pessoas simpatizar e antipatizar com políticos diferentes. Aliás, desconfio de que seja este o fator determinante, muito mais importante do que um check list de atributos morais.

Partir do pressuposto de que o outro lado é doente ou canalha não é um bom começo para qualquer discussão. Claro, se há o interesse de se ter alguma discussão. A política é o campo onde se procura chegar a consensos em meio à discórdia e é impossível fazer política em clima de torcida organizada. Os políticos profissionais sabem disso, e é por isso que se dão muito melhor entre si do que os seus respectivos apoiadores admitem.

Não se trata aqui de achar que todos os atos dos políticos são defensáveis, a depender da escala de valores de cada um. O único ponto é admitir que o outro pode não ser doente ou canalha por não concordar conosco. Isso já seria um bom começo.

O triste fim de um político

Abaixo, a votação de Geraldo Alckmin no estado de São Paulo desde que começou a concorrer em eleições majoritárias (quando há dois números, referem-se à votação no 1o e 2o turnos).

2002: 7,5 / 12,0 milhões

2006: 11,7 / 11,6 milhões

2010: 11,5 milhões

2014: 12,2 milhões

2018: 3,1 milhões

Alguns pensam que Alckmin abandonou o seu eleitorado ao aliar-se a Lula. Na verdade, foi o seu eleitorado que o abandonou em 2018. Bolsonaro conquistou 17,5 milhões de votos no estado no 1o turno, e Alckmin teve menos votos no seu estado que Haddad e Ciro Gomes.

Tendo sido abandonado pelo seu eleitor e pelo seu partido, Geraldo Alckmin agarrou-se à primeira boia que encontrou para manter-se em evidência no cenário político nacional. Era isso, ou era voltar a ser comentarista de medicina no programa do Ronnie Von.

Chico Anísio, com a sua Escolinha do Professor Raimundo, manteve em atividade comediantes em fim de carreira, dando-lhes espaço na TV e, ao mesmo tempo, fazendo um programa de sucesso ao gosto do público. Lula, a exemplo de Chico, mantém em atividade um político que, de outra forma, estaria neste momento amargando o ostracismo e, de quebra, faz um programa político ao gosto de certo público.

No entanto, os comediantes da Escolinha foram chamados a fazer o que sempre fizeram. O humor pode não ser para todos os gostos, mas não se pode acusá-los de trair a sua herança. Alckmin, ao contrário, assumiu um papel que não tem nada a ver com o seu passado. Seria como se um desses comediantes aceitasse participar de um filme pornô só para ter um emprego.

Geraldo Alckmin deu uma banana para o eleitorado que o abandonou e, ao invés de terminar a carreira de maneira digna, decidiu participar de um filme pornô. Triste fim de um político que já foi a esperança de muitos brasileiros.

O novo guru econômico de Lula

Dizem que o melhor negócio do mundo é um banco bem administrado, e o segundo melhor é um banco mal administrado. Claro, isso é folclore, banco é um negócio como outro qualquer e precisa ser bem administrado para não quebrar. O cemitério de bancos no Brasil é bem populoso.

Gabriel Galípolo, o novo guru econômico de Lula, foi presidente do Banco Fator de 2017 a 2021. Os resultados do banco nesse período foram os seguintes:

2017: prejuízo de R$ 36,7 milhões

2018: lucro de R$ 2,4 milhões

2019: prejuízo de R$ 15,5 milhões

2020: prejuízo de R$ 29,2 milhões

Em 2020, o rating do banco foi rebaixado para BB pela S&P, grau especulativo, popularmente conhecido como “junk”.

Em 2021, o guru de Lula foi gentilmente convidado a se retirar da função que exercia no banco e, desde então, tem se dedicado à sua própria “consultoria”, que é a atividade a que se dedicam aqueles que estão em “transição de carreira”.

Galípolo está sendo vendido como alguém que pode reconciliar a Faria Lima com Lula. Fica difícil entender como isso se daria com alguém que escreveu não um, mas três livros com Luiz Gonzaga Belluzzo.

Administrar a economia de um país não é o mesmo que administrar uma empresa, isso é certo. Mas a última vez que entregamos o país nas mãos de uma pessoa que conseguiu quebrar uma lojinha de R$1,99 colhemos a maior recessão da história brasileira. Conseguir quebrar um banco está em outro patamar. Se valer a regra de três, não quero nem pensar nas consequências.

Era uma casa muito engraçada, não tinha fundação, não tinha nada

Estou lendo A Moeda e a Lei, de Gustavo Franco, que conta a história monetária do Brasil desde a década de 30 com base nas várias legislações que regeram a moeda brasileira. No capítulo sobre o plano Real, Franco relembra a primeira iniciativa de FHC como ministro da Fazenda, a edição do PAI, Programa de Ação Imediata. Copio a seguir a exposição de motivos do PAI, que fazem a fundação do Plano Real:

– O Brasil só consolidará sua democracia e reafirmará sua unidade como nação soberana se superar as carências agudas e os desequilíbrios sociais que infernizam o dia a dia da população.

– A dívida social só será resgatada se houver ao mesmo tempo a retomada do crescimento autossustentado da economia.

– A economia brasileira só voltará a crescer de forma duradoura se o país derrotar a superinflação que paralisa os investimentos e desorganiza a atividade produtiva.

– A superinflação só será definitivamente afastada do horizonte quando o governo acertar a desordem das suas contas, tanto na esfera da União como dos estados e municípios.

– E as contas públicas só serão acertadas se as forças políticas decidirem caminhar com firmeza nessa direção, deixando de lado interesses menores.

Note a construção do edifício da estabilização. Ele começa com o teto e vai descendo até as fundações. O objetivo final é retomar o crescimento econômico, que permita resgatar a dívida social e reafirmar o Brasil como nação soberana. Para tanto, é preciso combater a inflação e, para isso, é preciso arrumar as contas públicas. Essa é a ordem: contas públicas arrumadas, inflação baixa, crescimento, resgate da dívida social, soberania.

O Plano Real trocou a inflação por juros altos. Comentei hoje mais cedo que o novo guru de Lula, Gabriel Galípolo, está muito preocupado com os juros altos. Este é o problema do diagnóstico desenvolvimentista, tentar começar a construir o edifício pelo teto. A coisa funcionaria mais ou menos da seguinte forma: o governo faz dívida para investir no resgate da dívida social, este resgate gera crescimento, este crescimento faz com que a dívida pública diminua, jogando os juros para baixo, o que, por sua vez, retroalimenta o crescimento, em um círculo virtuoso. O problema dessa construção é iniciar com o aumento da dívida, o que pressiona os juros para cima. Por isso, Galípolo se diz preocupado com a escalada dos juros, o que sugere alguma medida heterodoxa inicial para segurar os juros enquanto a mágica do crescimento não funciona. Já vimos esse filme antes.

Não à toa, Galípolo propõe a moeda única sul-americana como ideia para robustecer a nossa “soberania monetária”. Ou seja, uma construção que começa com o teto (a soberania), sem nenhuma menção à fundação (a organização das contas públicas). Típico.

O nosso edifício foi construído pela metade. Estamos longe de uma hiperinflação, mas estamos igualmente longe de termos inflação e juros civilizados. Nos demos por satisfeitos tendo uma fundação meia-boca, o que nos leva a ter um edifício fraco: nosso crescimento é medíocre, nosso resgate da dívida social é exasperantemente lento e a nossa moeda é respeitada somente dentro de nossas fronteiras, e olhe lá. Precisamos de um novo Plano Real, que enfrente o desajuste das contas públicas de frente. Sobre este fundamento, o restante do edifício poderá ser construído com segurança. Sem isso, continuaremos em busca de soluções mágicas, que prometem o céu e entregam o inferno.

O índice de sofrimento e as chances de Bolsonaro

O economista Arthur Okun criou um índice muito simples mas poderoso para medir o humor da população. Trata-se do “Misery Index”, que você vai ver por aí traduzido como “Índice da Miséria”, mas que eu prefiro traduzir como “Índice do Sofrimento”.

O Índice do Sofrimento nada mais é do que o resultado da soma do índice de desemprego com a inflação acumulada nos últimos 12 meses. A idéia é medir o quanto o povo está sofrendo do ponto de vista da atividade econômica e da inflação, as duas principais variáveis macroeconômicas que influenciam o dia a dia do cidadão. O gráfico abaixo mostra o Índice do Sofrimento calculado desde o ano 2000 até fevereiro de 2022, quando temos os últimos dados de inflação e desemprego.

A linha vermelha mostra uma previsão deste índice, considerando as projeções para a inflação e para o desemprego segundo o relatório Focus do Banco Central. Além disso, destaco os meses das eleições e o do impeachment de Dilma Rousseff.

Em primeiro lugar, podemos observar que, nas três eleições em que houve continuidade do partido incumbente (2006, 2010 e 2014), o Índice do Sofrimento estava abaixo de 14. Por outro lado, nos dois casos em que houve troca de partido (2002 e 2018), o Índice estava acima de 16. Por ocasião do impeachment, estava acima de 20.

Pois bem. Hoje, o Índice do Sofrimento está acima de 22, em pior situação do que na época do impeachment. Não é à toa que a popularidade do presidente está em baixa. A boa notícia para Bolsonaro é que o índice tende a cair ao longo do ano, chegando nas eleições um pouco acima de 18. A má notícia é que, neste nível, o partido incumbente não conseguiu fazer o sucessor em 2002. Ou seja, a considerar esta estatística, a popularidade do presidente vai melhorar ao longo do ano, mas não na velocidade e intensidade suficientes para lhe dar um novo mandato.

Claro que esta é uma interpretação unidimensional da realidade, e baseada em poucos pontos, dado que o histórico é curto. Mas, sem dúvida, é um alerta para a campanha do presidente, que precisará de muito mais esforço do que o normal para conseguir se reeleger.

Um giro de 360 graus

“Lula ajusta rota na economia”.

Este é o desejo da jornalista, não a realidade. Você lê a coluna e não consegue tirar uma só linha de mudança em lugar algum. Minto. Há sim uma pseudosinalização: Gleisi afirmou que Roberto Campos Neto continua à frente do BC no governo Lula. Bem, essa é a lei. Note que Gleisi não afirmou que o PT desistiu de combater a autonomia do BC. Apenas informou aos interlocutores que vai respeitar a lei e manter Campos à frente do BC no início do mandato. Bem, só faltava dizer que não cumpriria a lei.

O ponto é que a própria coluna se contradiz, aparentemente sem notar que o fez. Cita a preocupação do novo “conselheiro econômico” de Lula, o economista Gabriel Galípolo, com a “subida mais forte dos juros”. Ora, os juros são assunto do BC, não do governo. Quer dizer, é assunto do governo, na medida em que os juros são afetados pela política fiscal. Mas note que Galípolo, de acordo com a colunista, não se mostra preocupado com o déficit, mas com os juros. Ou seja, a sua visão é de que é papel do governo tratar desse “assunto dos juros altos”, o que cheira a algum tipo de intervenção em um campo onde o BC tem, teoricamente, autonomia. E antes que digam que a preocupação do economista pode se referir ao spread bancário, leiam novamente: Galípolo refere-se à “mudança de patamar de juros” que impede o “planejamento dos negócios”. Os spreads não subiram, sempre foram altos. O que subiu recentemente foi a taxa Selic, de responsabilidade do BC. Para bom entendedor, pingo é letra.

Por fim, uma palavra sobre o novo Posto Ipiranga de Lula. Há alguns dias, escrevi um artigo sobre a ideia de uma moeda comum sul-americana, exposta em artigo de autoria de Fernando Haddad e um outro economista do PT que não nomeei. Este outro economista, co-autor da brilhante ideia, é Gabriel Galípolo. Este artigo é um bom cartão de visitas do economista. Para quem precisa “ajustar a rota na economia”, talvez não seja um bom começo.

Motoristas “irregulares”

O que são “motoristas irregulares”? São aqueles que não têm a autorização de alguma autoridade para circular. Não têm o chamado “registro”.

O Uber, quando começou, foi acusado pelas associações de taxistas de ser “irregular”. Os motoristas da plataforma não tinham o “registro” requerido para carregar passageiros. A lógica do mercado foi soberana, neste caso. Em um mercado onde a oferta é restrita e os preços são regulados, falta o produto. Era esse o mercado de táxis no Brasil antes do advento do Uber. Não à toa, um “registro” de taxista chegava a valer algumas centenas de milhares de reais em São Paulo. Este era o valor para a “reserva de mercado”.

O Uber chegou para acabar com essa lógica, aumentando a oferta de motoristas. A única forma de fazê-lo era empregando motoristas “sem registro”. A bem da verdade, essa é a situação até hoje. Um motorista do Uber, para se cadastrar na plataforma, precisa apenas ter um carro em determinadas condições. Não é necessário um “registro” junto às autoridades.

Agora, os usuários do Uber vêm enfrentando o mesmo problema que os usuários de táxis enfrentaram no passado: escassez de oferta. Com as margens apertadas pelo aumento do combustível, os motoristas têm “selecionado” as viagens que lhe interessam, quando não dispensado totalmente a intermediação da plataforma, como é o caso dos motoristas “irregulares” de Guarulhos. Estes motoristas estão apenas atendendo a uma demanda reprimida, que não é atendida pelos táxis ou pelo Uber.

A reportagem não cita reclamação de um usuário sequer, a não ser um em um site de reclamações, que diz que pagou R$600 em uma corrida, mas não deixa claro quais foram as circunstâncias. Quem se coloca contra são os suspeitos de sempre, os taxistas, que veem ameaçado o seu monopólio em Guarulhos, parcialmente reconquistado em função da deterioração do Uber.

Chamar de “irregulares” esses motoristas é prestar homenagem ao Brasil cartorial, que demanda o carimbo da “otoridade” para qualquer atividade econômica. Os usuários que pegam carona com um desses motoristas o fazem de caso pensado. Estão dispostos a eventualmente pagar mais para ter o conforto de chegar mais cedo em casa. Quem não quer pagar a mais, pode continuar aguardando um táxi (que é caro também) ou tentar a sorte no Uber. Existe uma demanda, por isso a oferta está lá. Mas, pelo visto, no Brasil, continua sendo pecado atender à demanda do consumidor.

Não há termos de comparação

Há um certo afã em se colocar Lula e Bolsonaro como igualmente prejudiciais ao Brasil em todos os campos possíveis, ainda que de formas diferentes. No campo econômico, isso é verdade em alguns campos, como o da disciplina fiscal ou o da proteção a corporações do serviço público, mas não o é, de maneira alguma, em outras. É o caso da Petrobras, foco do editorial do Estadão de hoje.

Segundo o editorial, ambos os políticos querem “prejudicar a companhia em nome de seus projetos pessoais de poder”.

Na superfície, parece isso mesmo: Lula usou a empresa como um puxadinho do governo, ao passo que Bolsonaro troca de presidente como quem troca de cueca, ao sabor de suas conveniências políticas.

Mas isso é só na superfície. Se analisarmos mais a fundo, veremos diferenças fundamentais de visões de mundo. O próprio editorial lembra que a Petrobras gerou R$ 120 bilhões de prejuízo durante os governos do PT para fazer política monetária e política industrial do governo. A roubalheira, no valor de R$ 6 bilhões, foi somente a cereja do bolo. Por outro lado, Bolsonaro indicou dois presidentes para a estatal que respeitaram a sua dinâmica empresarial, e havia indicado um terceiro na mesma linha. A troca de presidentes, portanto, não foi pela política de preços ou pela desmobilização que a empresa vem adotando desde o governo Temer. Foi simplesmente para jogar o boi de piranha no rio.

Alguns dirão que a Petrobras só está praticando preços de mercado porque é obrigada a tanto por uma lei aprovada no governo Temer. Justo. Mas também é verdade que Bolsonaro não se movimentou para alterar a lei, como Lula já prometeu que o fará se eleito, em seu projeto de fazer a Petrobras great again.

É óbvio que o troca-troca de presidentes é prejudicial à companhia. Mas não há termo de comparação entre um político atrapalhado, que vê a Petrobras como um estorvo ao seu projeto de poder, e outro que fez da empresa o pivô de seus projetos megalomaníacos de poder. Neste caso, os efeitos perversos dessas duas visões de mundo para os acionistas minoritários e para o próprio Tesouro são completamente diferentes.

A verdadeira consciência social

Tenho um amigo que votou em Bolsonaro em 2018 e vai votar em Lula em 2022. Não pude acompanhar o seu processo de transformação, mas hoje ele se diz com muito mais “consciência social”. Ele continua usufruindo de todos os confortos de sua vida de pequeno burguês, mas passou a falar mal da “classe média” e do “imperialismo estadunidense”. Foi então que me caiu uma ficha.

Muitos apontam esse comportamento como hipócrita ou contraditório. Seria o popular “socialista de iPhone” ou “esquerda caviar”. Nada mais errado. Estes pequenos luxos são absolutamente compatíveis com a vida de quem tem “consciência social”. Ter “consciência social” não significa abrir mão da vida classe média, ou abrigar sem-teto ou menores infratores em casa ou viver em Cuba. Essas coisas são irrelevantes quando se tem “consciência social”.

E no que consiste, então, essa “consciência social”, se não em atos concretos? Simples: em empurrar a sociedade para um “outro mundo possível”. E como se faz isso? Votando em candidatos alinhados com essa agenda, que implementarão a desconstrução da “classe média escravagista, patriarcal, heteronormativa”.

Assim, a única forma de uma pessoa demonstrar que tem “consciência social” é o seu voto. Os seus atos pouco importam. Nesse sentido, por exemplo, a filantropia burguesa não passa de uma forma hipócrita de “consciência social”, se a pessoa que faz caridade não vota em um partido de esquerda. De que adianta dar migalhas do que cai da mesa dos ricos se não se vota em candidatos que vão “mudar as estruturas da sociedade”?

Escolas como a Avenues, quando convidam políticos de esquerda para dar palestras, estão justamente procurando desenvolver a “consciência social” dos seus alunos. E essa “consciência social” os levará ao ato que define a “consciência social”: o voto em candidatos de esquerda.

É irrelevante o fato de governos de esquerda terem sido desastrosos para os pobres em países como Brasil, Argentina e Venezuela. Isso é apenas um detalhe, assim como o iPhone. O que importa é desfilar “consciência social”, almejando “um outro mundo possível”, somente possível quando entregamos o governo nas mãos de políticos de esquerda. Portanto, se você ainda vê contradição e hipocrisia na “esquerda caviar”, é porque você não entendeu o real significado de “consciência social”.